
'Eu não posso dizer que eu vivenciei a guerra como muitas pessoas vivenciaram'
Nove mulheres revelam os motivos que as levaram até o Brasil e quais foram suas experiências no país. Nem todas as histórias de migração são iguais.

Eu não seria capaz de estar aqui hoje se eu não tivesse tido o suporte de toda a minha família.
Meu pai faleceu em 2018, quando eu estava vivendo em Boa Vista/Brasil, e eu não tive a oportunidade de voltar ao meu país para o seu funeral. Eu me mudei para São Paulo. Em Boa Vista eu estava sozinha; em São Paulo eu tenho alguns familiares.
Eu estava falando do meu pai por causa do que ele me disse quando eu comecei a estudar. Você escolhe o que você vai estudar no seu terceiro ano do ensino médio no meu país, e eu queria estudar Latim, filosofia, e direito, mas a minha verdadeira paixão era o jornalismo. Meu pai era um homem de negócios, e ele me disse: “Você quer estudar Latim? Ok, eu irei te dar suporte de qualquer forma, mas eu gostaria de te dar uma opção, eu gostaria que você estudasse economia para vir trabalhar comigo depois”. O Curso de economia era três anos de estudos técnico e depois você iria para a faculdade aprender contabilidade e o que mais fosse relacionado à economia. No primeiro momento, eu não gostei muito da ideia, mas eu o fiz mesmo assim e terminei amando o curso que eu tinha feito. Isso é uma coisa que eu sempre vou agradecer ao meu pai, ele apoiou o meu estudo e eu realmente amei aquele curso.
Eu nasci no Congo oriental. Meu pai era de lá, minha mãe também, toda a minha família. Muitos dos meus familiares ainda continuam morando lá. Em 2007, nós nos mudamos para a capital, Kinshasa, por causa dos conflitos no leste do Congo. Eu não posso dizer que eu vivenciei a guerra como muitas pessoas – na guerra, a guerra dos homens, muitas mulheres são estupradas, crianças são forçadas ao trabalho e recrutadas pelo exército. Nós morávamos em Goma, próximo à fronteira com Ruanda, e os conflitos aconteciam no interior da província. No entanto, nós tivemos que sair de onde eu nasci por causa de uma erupção vulcânica. Nós tivemos que fugir.
Quando eu olho para trás hoje, eu rio da situação que passamos, mas é uma história trágica. Existem pessoas na cidade que monitoram as atividades do vulcão e nos mantem informados. Um dia, minha mãe chegou em casa e disse: “Nós precisamos ir embora agora”. Nós cruzamos a fronteira para Ruanda e ficamos por lá alguns dias. Quando cruzamos a fronteira de volta para o nosso país, encontramos a nossa casa destruída, tudo havia sido destruído. Meu pai vivia viajando por causa do seu trabalho, que era um negócio internacional, e ele não estava em casa. Minha mãe perguntou: “Nós não temos nada mais, o que vamos fazer?” Essa foi a minha primeira experiência com crise humanitária. Eu me lembro de ver as Nações Unidas, a Cruz Vermelha, Caritas; isso é uma coisa que a gente só via em filmes e documentários.
A cidade de Roraima se tornou algo que carrego no meu coração.
A casa onde fomos morar depois da erupção do vulcão era perto do exército. Às vezes nós estávamos dormindo e começávamos a ouvir tiros. Eles gritavam: “Tirem as crianças das casas, uma bomba vai explodir”. Nós vivíamos com medo de nossas casas serem atacadas. Às vezes, acordávamos no meio da noite com homens batendo na porta dizendo para fugirmos dali. Entravamos num carro e eles ficavam rodando, depois diziam: “Está tudo ok agora, vocês podem retornar para casa”. Nós não dormíamos nessas noites.
Nós conseguíamos ouvir o conflito chegando perto de Goma – de lá, ouvíamos as bombas explodindo. Eu não desejo isso para ninguém. Eu tinha um tio que trabalhava em um hospital na cidade. As pessoas iam até o hospital para ver os seus familiares e se deparavam com as mulheres que estavam sendo tratadas lá, vítimas da guerra. Existiam quartos reservados para as mulheres que haviam tido traumas físicos e psicológicos, que foram abusadas na guerra. As crianças perguntavam às suas mães o que essas mulheres tinham e porque estavam tão tristes. Mas, muitas vezes, as mães não conseguiam explicar. Naquele tempo, nós não falávamos sobre isso. Era considerado um tabu, no sentido de não falar para não acordar a dor, mas não poder falar a respeito, também é doloroso.
Às vezes, nas escolas havia seminários apenas para meninas, neles se falava sobre o que precisávamos fazer quando nos sentíssemos desrespeitadas; como agir naquele momento, com quem conversar.
Eu queria ser jornalista, para discutir essas questões, mas eu comecei a pensar que esse tipo de jornalismo não me levaria muito longe. Eu pensei: “Eu quero estudar política primeiro, para entender porque essas coisas acontecem, eu quero estudar a guerra, eu quero ser especialista nisso”. Foi assim que encontrei Relações Internacionais, onde nós estudamos a guerra e a paz, como a guerra e a paz são perpetradas. Então, eu tentei uma bolsa de estudo na embaixada do Brasil. Eu estava em Kinshasa, e a embaixada do Brasil estava distribuindo bolsa de estudo para alunos que tinham notas boas no ensino médio. Nós tínhamos que fazer um teste antes de vir para o Brasil.
Eu cheguei no aeroporto de Roraima e parecia que você estava entrando dentro de um forno – lá é muito quente. Eu comecei a conhecer as pessoas e saber mais sobre o lugar, e a cidade começou a se tornar algo especial para mim, algo que eu carrego em meu coração. Se Roraima fosse um país, ele seria minha segunda nacionalidade.
Eu sou uma imigrante no Brasil. Graças a Deus eu sou estudante. Mas, infelizmente, essa não é uma realidade para muitos imigrantes aqui. Então, eu fico pensando que o meu lugar não é na universidade. Não é que eu não goste – estudar é minha paixão – mas eu sei que o meu trabalho é fora, onde as pessoas precisam da minha contribuição. Eu sei que muitas pessoas estão ajudando os migrantes, mas eu sinto que eu tenho que fazer algo aqui. Essa é a responsabilidade que eu tenho. Eu tenho esse espaço de fala e eu preciso tomar vantagem sobre isso.
M. Z., cinco anos no Brasil
Esta série foi apoiada financeiramente por Humanity United.
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