
Crianças recém-libertadas em Janeiro de 1945 do campo Auschwitz-Birkenau.
"Um país não é só aquilo que faz, mas também aquilo que tolera.”
– Kurt Tucholsky
Deparei-me com o Holocausto pela primeira vez quando tinha catorze anos. Confundi Maus, uma obra que narra a luta pela sobrevivência nos campos de extermínio nazis, com um romance gráfico comum, e comprei-o durante uma das minhas visitas a uma histórica livraria na baixa de Lisboa. Foi uma leitura difícil, ignorante como eu era em relação ao que motivou a guerra e as atrocidades cometidas pelo Terceiro Reich. Demorei algum tempo a perceber o que pretendia o autor ao representar os nazis como gatos, os judeus como ratos e os polacos como porcos. Apercebi-me, finalmente, que os personagens podiam parecer animais, mas que eram na realidade pessoas. As vítimas, os perpetradores e os espectadores eram complexos e imprevisíveis, capazes do melhor e do pior, de actos de altruísmo e de cobardia.
Não interiorizei o conceito do Holocausto até ter lido o diário de Anne Frank. Enquanto Maus questionou o meu entendimento do mundo, o diário da pequena refugiada em Amsterdão alterou a forma como eu percebia o meu lugar no mesmo. Se Anne podia ser enviada para morrer num lugar terrível, longe da sua família e dos seus amigos, o que impedia que outros fizessem o mesmo no meu país?
Um terço dos europeus diz saber pouco sobre o que aconteceu em Auschwitz.
Nalgum momento o tema ficou perdido numa das muitas regiões da minha mente. Mas nunca foi esquecido. O meu último trabalho no liceu foi sobre o Holocausto. E antes de terminar o curso, estava determinado a saber mais. Suponho que a minha curiosidade como escritor político, temperada pelo meu ainda insípido sentido de responsabilidade política, tornou impossível adiar a visita por muito mais tempo. Depois de ler Se Isto é um Homem de Primo Levi decidi que tinha chegado finalmente o momento, e decidi visitar Auschwitz no ano seguinte.
Era um dia de Inverno. Saí do autocarro sem uma palavra. Não havia nada que eu pudesse dizer. Não havia nada que os meus amigos quisessem ouvir. Mais de um milhão de pessoas passaram fome, foram torturadas e assassinadas naquela região escura e ventosa do sul da Polónia, perto de Oświęcim. Deixámos para trás a placa “Arbeit Macht Frei” e continuámos na direcção do pátio. O silêncio era insuportável, e quando nos aproximámos do final do mesmo, onde milhares de prisioneiros foram executados, fomos lembrados dos custos de tolerar o intolerável.
A visita durou várias horas. Incluiu o campo principal, os blocos dois e três, o quartel no campo de Auschwitz II-Birkenau, o crematório e as câmaras de gás. O campo obriga os visitantes a reconhecer que isto aconteceu, e que foi assim que aconteceu. Cada um dos muitos edifícios tem milhares de histórias para contar. Cada centímetro fala de perdas indescritíveis e de sacrifícios inimagináveis. Não há como esquecer que a loucura humana e a indiferença tornaram isto possível. Do arame farpado ao quartel. Do portão principal ao pátio. Das câmaras de gás ao crematório. Quando entramos sabemos bem porque estamos lá.
As fotografias representam pessoas reais, com nomes reais e famílias reais. Rudolf Brumlík, Rosette Wolczak, Lea Deutsch, Benjamin e Lina Fondane. Homens, mulheres e crianças separados uns dos outros. Pessoas que morreram sem motivo. Pessoas que não podem ser esquecidas.
O campo obriga os visitantes a reconhecer que isto aconteceu, e que foi assim que aconteceu.
Uma derrota inevitável?
Setenta anos depois de uma das piores atrocidades que o mundo já testemunhou, queremos acreditar que o que aconteceu em Auschwitz-Birkenau, Belzec, Chelmno, Majdanek, Sobibor e Treblinka não pode voltar a acontecer. Dizem-nos que o mundo está a tornar-se cada vez mais pacífico, e que a razão evitará que voltemos a discriminar as pessoas por causa das suas ideias, crenças e local de nascimento.
A maioria das pessoas pode preferir essa narrativa. No entanto, a ascensão do populismo e o colapso do centro-esquerda lembram-nos que o mundo não está a ficar mais seguro para todos. A desigualdade está a aumentar, as nossas sociedades estão a ficar mais polarizadas e assistimos ao ressurgimento global do nacionalismo. Os nossos políticos podem ter outras prioridades, mas à medida que aumenta o apoio aos partidos de extrema-direita e a hostilidade contra os imigrantes, olhar para o outro lado é uma afronta à memória daqueles que morreram há setenta anos.
Em Itália, o governo prometeu deportar quinhentos mil imigrantes ilegais, manipulando as ansiedades dos seus cidadãos e usando seres humanos como moeda de troca. Na Alemanha, a extrema-direita passou de ser um actor marginal a um actor importante na política nacional e federal. Na Áustria, o Partido da Liberdade entrou numa coligação com o governo, apesar duma onda de escândalos anti-semitas, enquanto os democratas suecos anti imigração obtiveram dezoito por cento dos votos nas últimas eleições gerais, apesar de ligações a movimentos neonazis. As coisas não estão melhores em França, onde Marine Le Pen comparou os muçulmanos rezando nas ruas à ocupação nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Na Hungria, o presidente disse que não quer que seu país seja multicor e prometeu protegê-lo dos imigrantes muçulmanos. E em Espanha, um partido de extrema-direita ganhou doze lugares no parlamento andaluz, tendo sido felicitado por um ex-líder do Ku Klux Klan.
A ascensão do populismo e o colapso do centro-esquerda lembram-nos que o mundo não está a ficar mais seguro para todos.
Muitos ainda acreditam que o desastre está longe da Europa. No entanto, de acordo com uma sondagem da CNN publicada em Novembro, a memória do Holocausto está a desaparecer e a nossa consciência está mais uma vez a ficar dormente. Um terço dos europeus diz saber pouco sobre o que aconteceu em Auschwitz. Em França, uma de cada cinco pessoas entre os dezoito e trinta e quatro anos afirma nunca ter ouvido falar do Holocausto. De acordo com a mesma sondagem, dez por cento dos europeus admitem ter visões desfavoráveis dos judeus. Trinta e sete por cento diz o mesmo sobre os muçulmanos e trinta e seis por cento dos europeus admite ter opiniões desfavoráveis sobre os imigrantes.
Tal como Camus previu, o fim da guerra não foi uma vitória definitiva contra a loucura, o tribalismo e o fascismo. A luta terá que ser travada uma e outra vez.

Crianças alemãs a ler “O Cogumelo Venenoso”, um dos livros adoptados pelas escolas alemãs como propaganda anti-semita. Photo Tractatus/Flickr. Alguns direitos reservados.
Uma lição interminável?
Devia ser óbvio que ninguém se esconde no coração duma cidade ocupada a menos que tenha uma alternativa. Assim como que ninguém decide atravessar o Mediterrâneo com seus filhos a menos que esteja desesperado. Anne Frank morreu porque sua família não obteve os vistos necessários para partir para a América; ela morreu porque o Ocidente foi indiferente ao seu sofrimento.
Na Europa, a indiferença ao sofrimento tornou-se num assunto capital depois da guerra. Muitos políticos e académicos aperceberam-se que os jovens tinham que ser conscientes do que aconteceu nos campos de concentração, quem foi perseguido e os perigos de adoptar políticas de exclusão. Foram construídos lugares simbólicos e memoriais para honrar os mortos, e para lembrar aos vivos que nunca estamos suficientemente longe do próximo desastre.
É responsabilidade das escolas e das universidades garantir que os jovens estão informados e ajudá-los a desenvolver uma bússola moral que lhes permita navegar as poluídas águas do debate público. As universidades não devem ser unicamente testes de inteligência de quatro anos: a educação deve versar também sobre o crescimento pessoal e a responsabilidade social dos seus alunos. Visitar campos de concentração e outros lugares simbólicos pode ajudar os estudantes a reconhecer os riscos e as consequências da intolerância, o valor do pluralismo e os perigos de permanecer indiferente numa democracia.
As universidades não devem ser unicamente testes de inteligência de quatro anos.
Porque as instituições democráticas dependem de valores, e os valores só podem perpetuar-se se forem defendidos, cultivados e ensinados. Se queremos que os nossos cidadãos ajudem aqueles que precisam não podemos esquecer a nossa história, nem podemos permitir que outros a reescrevam.
O Holocausto e o assassinato de milhões de pessoas durante a guerra não foram um acidente. Não foi um episódio isolado de loucura e crueldade humana. Tudo começou com palavras. Foi alimentado pela intolerância. Foi permitido pelo medo e pela indiferença. E voltará a acontecer se não prepararmos os nossos filhos para resistir à retórica dos charlatães que antepõem os seus interesses aos seres humanos.
Foi lendo sobre a vida e os tempos de Vladek Spiegelman em Maus, uma obra-prima que pode mudar a vida de milhões, que fiquei a saber que os seres humanos são capazes de qualquer coisa. Foi graças ao desespero silencioso de Primo Levi, que dormia numa cama estreita demais para ter medo, que decidi aprender mais sobre o Holocausto. E é por causa de pessoas como Chiune Sugihara e Irena Sendler, que não ignoraram o sofrimento dos outros, que continuo a acreditar que estamos perante uma lição interminável, e não perante uma derrota inevitável.
As instituições democráticas dependem de valores, e os valores só podem perpetuar-se se forem defendidos, cultivados e ensinados.
Não há palavras para descrever o que supõe entrar em Auschwitz. Visitar os blocos e as câmaras de gás. Nada nos prepara para ver as toneladas de cabelo humano, transformando-se em pó detrás duma vitrina. Para ouvir que entre 150.000 e 200.000 crianças morreram no campo entre 1940 e 1945. Mas visitar o acampamento acaba por dizer-nos mais sobre nós mesmos do que aquilo que poderíamos imaginar. E deve ser uma paragem obrigatória para todos os cidadãos europeus, lembrando-nos que a coragem moral requer empatia, convicção e bravura.
Foi entre as latas vazias de Zyklon B e centenas de escovas de dentes que finalmente entendi o que Anne Frank quis dizer quando escreveu que uma única vela pode desafiar e definir a escuridão.
Oxalá nunca permitamos que essa vela se apague.
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