
Moscou, 1990: quando viajantes trotskistas encontraram a realidade soviética
Um breve momento de cooperação em meio ao colapso soviético nos faz lembrar da necessidade da solidariedade internacional.

Trinta anos atrás, em agosto, estudantes russos, pesquisadores, representantes de um sindicato de mineiros independentes recém-formado e ativistas políticos se reuniram em Moscou para um seminário para ressuscitar a memória de Leon Trotsky.
Eles se juntaram aos devotos de Trotsky da Europa ocidental, que chegaram à União Soviética na esperança de tornar as ideias de seu herói relevantes, em um momento em que a democratização, os movimentos pelos direitos nacionais e uma corrida em direção à economia de mercado colapsavam o país.
Eu era um deles. Eu aterrissei no aeroporto Sheremetyevo de Moscou, minha mala lotada de panfletos de Trotsky denunciando o stalinismo, reimpressos por trotskistas húngaros exilados na França. Os funcionários da alfândega que a inspecionaram estavam mais preocupados em verificar que eu não era um comerciante do mercado negro do que em julgar se os panfletos poderiam ser sediciosos.
Por décadas, Trotsky foi rotulado como o traidor supremo da União Soviética, que ajudou a fundar. Mas desde meados da década de 1980, jornalistas e historiadores soviéticos, autorizados pela política de "abertura" de Mikhail Gorbachev ("glasnost"), questionaram publicamente o mito oficial de que Trotsky era um agente dos inimigos imperialistas da União Soviética.
O evento, realizado no Hotel Sputnik no Prospecto Leninsky em Moscou, marcou o 50º aniversário do assassinato de Trotsky no México em 1940 – cometido por um agente stalinista, fato que os cidadãos soviéticos estavam apenas descobrindo graças à "glasnost". Junto a Lenin, Trotsky liderou o primeiro governo soviético, comandando o Exército Vermelho à vitória na guerra civil de 1919-20, apenas para ser posteriormente afastado por Stalin em uma luta pelo poder. Ele foi levado ao exílio em 1928.

“Pela primeira vez desde 1929, os seguidores de Trotsky se reunem aqui. De forma completamente legal ”, relatou um dos jornais soviéticos de maior circulação, o Komsomolskaya Pravda.
“Mas, pelo Senhor, os trotskistas não são a última coisa de que precisamos, com seu ódio pela propriedade privada, seu esquerdismo e suas esperanças de uma revolução proletária mundial?”
O objetivo nominal do evento do Hotel Sputnik – estabelecer uma seção soviética da Quarta Internacional (QI), a organização política fundada por Trotsky em 1938, pouco antes de sua morte – era inatingível.
Os trotskistas, tendo sido expulsos dos partidos comunistas controlados por Moscou por discordância, viam a Quarta Internacional como continuação do trabalho da Internacional Comunista, formada em Moscou em 1919 como o “partido mundial da revolução socialista”.
A lógica subjacente ao nosso evento de 1990 – que se os reacionários stalinistas e trabalhistas que dominaram o movimento dos trabalhadores pudessem ser substituídos por verdadeiros revolucionários, a derrubada de 1917 poderia ser replicada internacionalmente – era falsa. A Quarta Internacional nunca ganhou seguidores em massa; a “agonia de morte do capitalismo” em que se baseava foi, durante o boom do pós-guerra, substituída por uma nova onda de expansão capitalista brutal e violenta.
Mesmo assim, as ideias de solidariedade internacional e auto-organização da classe trabalhadora com as quais os trotskistas ocidentais cresceram ressoaram conforme as doenças terminais da União Soviética se instalaram.
O historiador Alexei Gusev, que participou do evento no Sputnik Hotel como estudante, lembra que os ativistas europeus “demonstraram que 'o Ocidente' – inspiração para muitos russos que se opunham ao Partido Comunista da União Soviética – não era apenas o capitalismo, Thatcher e Bush".
“Eles mostraram que também havia uma esquerda ativa que se opunha tanto ao estalinismo como ao capitalismo”, lembra Gusev.
A ideia da revolução socialista mundial era inspiradora – e o sectarismo dos visitantes trotskistas, que não concordavam entre si, era notável, acrescenta Gusev.
Após o seminário, Gusev e seus companheiros formaram um grupo trotskista que “defendia uma revolução anti-burocrática na URSS, por soviéticos da classe trabalhadora e por uma economia planejada democraticamente. Nossos objetivos imediatos eram o controle dos trabalhadores sobre a produção, a liquidação da KGB (polícia de segurança), a democratização do exército, a expropriação da propriedade do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) e o direito dos povos soviéticos à autodeterminação”.
Nossas tentativas de solidariedade internacional abriram outro “oeste” – não apenas para jovens ativistas de Moscou, mas também para os militantes sindicais de mineiros independentes também presentes.
Essas páginas, ou talvez notas de rodapé, na história da sociedade civil russa e internacional parecem importantes por razões completamente diferentes daquelas que eu imaginava na época
No ano anterior, os mineiros haviam participado da maior onda de greves da história soviética. Eles abandonaram suas ferramentas espontaneamente, exigindo melhores salários e condições e reformas políticas. O sindicato "oficial" dos mineiros patrocinado pelo governo soviético se opôs a esta revolta. Comitês de greve no local de trabalho e assembleias locais se uniram para formar o novo sindicato independente – o primeiro na União Soviética desde os anos 1920 a não ser estrangulado ao nascer pela ação policial.
Mas os representantes sindicais dos mineiros independentes suspeitavam da União Nacional dos Mineiros (Grã-Bretanha) (NUM, na sua sigla em inglês), cujos líderes não deram nenhuma palavra de apoio às suas greves ou aos mineiros poloneses que aderiram ao movimento Solidarność na década de 1980. O NUM estava formalmente ligado ao sindicato "oficial" dos mineiros soviéticos: parecia, do ponto de vista dos grevistas soviéticos, estar literalmente do lado dos patrões.
Logo depois de nossa reunião no Hotel Sputnik, e graças aos contatos feitos por meio dela, militantes mineiros britânicos que estiveram na vanguarda da grande greve dos mineiros de 1984-85 chegaram à União Soviética. Ao contrário dos funcionários nacionais do NUM, eles buscaram cooperação com seus homólogos russos, ucranianos e cazaques, assim como os da África do Sul.
Quando Dave Temple, um mineiro trotskista de Durham, chegou à cidade mineira de Pavlograd, no leste da Ucrânia, os mineiros locais o apelidaram de “Colombo” em uma provocação irônica sobre império. Uma maior delegação da mina de carvão de Durham chegou logo em seguida. “Foi chocante”, disse-me o falecido David Hopper, então secretário-geral do sindicato dos mineiros de Durham, após uma visita a uma mina subterrânea. “O regime de segurança era diabólico. Essas foram as condições sobre as quais nossos avós nos falaram.”
Era uma visão preocupante do "estado dos trabalhadores" que muitos sindicalistas britânicos pensavam estar por trás da cortina de ferro. Nesse sentido, Durham aprendeu com Pavlograd e vice-versa.
De volta a Moscou, em agosto de 1991 – um ano após o seminário do Hotel Sputnik – a ala revanchista do PCUS tentou, em pânico, reverter as reformas de Gorbachev em um golpe que ruiu depois de três dias. Quando milhares de manifestantes se reuniram no prédio do parlamento da federação russa, nós trotskistas nos juntamos a eles, nossas bandeiras vermelhas alarmando a multidão esmagadoramente liberal. Questionados sobre “o que vocês comunistas estão fazendo aqui?”, meus amigos russos responderam: “somos comunistas, mas favorecemos a democracia e os direitos civis”.
Gusev, agora professor de história, diz que houve "não pequeno grau de utopismo" e "idealização do bolchevismo" entre os trotskistas russos na década de 1990. No entanto, “não posso dizer agora que nossa atividade foi inútil”, acrescenta. Naquela primeira década pós-soviética, grupos trotskistas participaram do movimento sindical independente da Rússia e recuperaram histórias desconhecidas de dissidência soviética por meio de seminários e projetos de publicação. Em Moscou, uma nova biblioteca foi estabelecida, em homenagem ao colaborador e crítico de Trotsky, Victor Serge. Grupos anarquistas e sindicalistas empreenderam atividades paralelas e às vezes conjuntas.
A esquerda independente ofereceu uma forma alternativa de se opor ao ataque neoliberal na Rússia sem abraçar o estatismo e o nacionalismo
Depois da dissolução da União Soviética, em 26 de dezembro de 1991, Boris Yeltsin impulsionou o lançamento precipitado da Rússia à privatização e à abertura ao capital estrangeiro. Trouxe pobreza e sofrimento para milhões. O sucessor do PCUS juntou-se à direita nacionalista em uma oposição "frente marrom-avermelhada". A esquerda independente, na qual meus amigos eram ativos, ofereceu uma forma alternativa de se opor ao ataque neoliberal na Rússia sem abraçar o estatismo e o nacionalismo.
Essas páginas, ou talvez notas de rodapé, na história da sociedade civil russa e internacional parecem importantes por razões completamente diferentes daquelas que eu imaginava na época. A nível pessoal, muitas de minhas ilusões sobre a experiência soviética – compartilhadas, tenho certeza, com muitos esquerdistas ocidentais – foram destruídas. Essas ilusões não eram sobre os crimes de Stalin, aos quais eu sempre recuei de horror. Era uma coisa atual: a crueldade cotidiana deste "estado dos trabalhadores" para com seus cidadãos. As condições semelhantes às do gado no transporte público; a completa ausência de absorventes para as mulheres; a insensível indiferença dos regimes de segurança no local de trabalho que tanto atingiu os mineiros de Durham.
Logo, havia o senso de comunidade. Assumimos uma “consciência da classe trabalhadora soviética” geral que simplesmente não existia após três gerações de brutalização e atomização. E havia a história soviética, tão bem encaixada nas ideologias dos esquerdistas ocidentais, mas tão confusa e visceralmente presente para os russos que poderiam estudá-la sem censura pela primeira vez.
Para preparar este artigo, entrei em contato com Alexei Zverev, da associação Memorial, que presidiu o evento do Hotel Sputnik. Conforme ele conta, ele estava feliz por ter ajudado a "resgatar a verdade histórica sobre Trotsky dos destroços do stalinismo" e examinar os lados "claros" e "sombrios" dos personagens de Lenin e Trotsky. (Em 1989, a Memorial, a associação dedicada a recordar as vítimas da repressão stalinista, realizou uma reunião pública intitulada "Dê a palavra ao camarada Trotsky"). Politicamente, porém, o evento no Sputnik Hotel foi "mais problemático" para Zverev: a experiência da Rússia “Serve como um antídoto para qualquer tipo de esquerdismo”, diz ele, apontando para o “número colossal de vítimas do período Lenin-Trotsky, que foi seguido pelo stalinismo”.
Nossa conversa fez Zverev lembrar de uma carta de Vladimir Chertkov, um colaborador próximo de Leon Tolstói, a um dos líderes bolcheviques. O idealismo equivocado dos bolcheviques teria sido comovente se não tivesse, "através da violência, gerado tanto mal e injustiça, se não tivesse levado milhões de pessoas a sofrer tanto", escreveu Chertkov.
Essas discussões – sobre o que a revolução de 1917 significou, por que foi adiada e como estava relacionada com o desastre stalinista que a seguiu – foram reprimidas na União Soviética por décadas. Seus cidadãos não podiam falar uns com os outros, muito menos com pessoas de outros países, sobre nada disso.
Nosso encontro em 1990 foi uma tentativa – embora ingênua e fomentada por ilusões – de levar adiante essa discussão, na sociedade civil, e não na academia. E continuou em seminários, conferências e publicações sob as difíceis condições moldadas pela crise econômica da Rússia de 1993-1995.
Não sabíamos que o longo inverno de Putin, que usa a história soviética como um cassetete para reforçar a reação nacionalista e estatista, se aproximava. Mas nosso seminário acabou sendo uma espécie de preparação para isso.
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