
Mulheres de todos os cantos ocupam Brasília: a Marcha das Margaridas

Nos dias 13 e 14 de agosto, Margaridas de todo o país encheram Brasília para realizar a 6ª Marcha das Margaridas. Quem são as Margaridas? Não são flores. Seu nome é um tributo a Margarida Maria Alves, líder sindical assassinada por sua luta pelos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais em Alagoa Grande, Paraíba, em 1983. Como elas mesmas explicam: tentaram silenciá-la, mas Margarida virou semente. Portanto, as Margaridas são, acima de tudo, mulheres que lutam por direitos e cidadania.
São as mulheres do campo, das florestas, das águas e da cidade, categoria usada para reunir as diferentes situações experienciadas pelas mulheres que participam da Marcha: “mulheres da classe trabalhadora, mulheres rurais, urbanas, agricultoras familiares, camponesas, indígenas, quilombolas, assentadas, acampadas, sem-terra, assalariadas rurais, extrativistas, quebradeiras de coco, catadoras de mangaba, ribeirinhas, pescadoras, marisqueiras, caiçaras, pescadoras, faxinalenses, sertanejas, vazanteiras, caatingueiras, criadoras em fundos de pasto, raizeiras, benzedeiras, geraizeras, negras na grande maioria”.
A Marcha teve início no ano 2000 e este ano saiu pelas ruas da capital federal pela sexta vez. Desde 2003, a Marcha acontece periodicamente a cada quatro anos, precedida por um processo mobilizador que inclui formação política, mobilização, negociações e arrecadação de fundos. O encontro em Brasília para marchar, portanto, é a culminação de um longo processo organizativo. Muito diferente de muitos dos protestos de rua mais comuns atualmente, vários deles conclamados pelas redes sociais, a Marcha das Margaridas é protagonizada por movimentos sociais organizados e é resultado do trabalho dedicado de lideranças sindicais e sociais em âmbito nacional, estadual e local.
O debate político da Marcha das Margaridas falam dos contextos rurais nos quais as mulheres sofrem múltiplas formas de dominação
A coordenação geral da Marcha das Margaridas fica a cargo da Secretaria de Mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que lidera a Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Contag, composta pelas Secretarias de Mulheres das 27 federações estaduais filiadas a Contag. A coordenação ampliada da Marcha conta com a parceria de movimentos sociais, feministas e de mulheres, centrais sindicais e organizações internacionais. Em 2019, 16 organizações parceiras compuseram a organização da Marcha.
A Marcha das Margaridas tem mobilizado, em suas diferentes edições, entre 20.000 e 100.000 mulheres para Brasília e de acordo com a comissão organizadora é a maior ação de mulheres do campo da América Latina.
Solidariedades feministas em expansão
Apesar da centralidade em que a identidade de classe e gênero e a territorialidade rural assume no sujeito político da Marcha das Margaridas, as Margaridas vêm incorporando outras diferenças que são marcadores importantes das desigualdades entre as mulheres trabalhadoras no Brasil. Adotando uma epistemologia feminista, segundo a qual a posicionalidade dos sujeitos na estrutura social orienta seu conhecimento sobre o mundo, os documentos que informam o debate político da Marcha das Margaridas falam dos contextos rurais nos quais as mulheres sofrem múltiplas formas de dominação e a partir dos quais elas constroem suas lutas e diversas identidades políticas. Estes contextos incluem, por exemplo, a convivência com o semi-árido, as atividades extrativistas, o impacto dos grandes projetos de infra-estrutura e energia, a violência em conflitos pela terra. Ao levar em conta essas diversidades, ao longo dos anos, a identidade política de “mulheres trabalhadoras rurais” foi se expandindo para, “mulheres do campo e das florestas”, em 2007, “mulheres do campo, das florestas e das águas”, em 2015, e, no ano passado, “mulheres do campo, das florestas, das águas e das cidades”.
As Margaridas marcham lutam pelos direitos da classe trabalhadora em geral e, em especial, pelos direitos das mulheres trabalhadoras rurais
Isso reflete também um trabalho de articulação política dos sindicalismo rural liderado pela Contag com as parceiras. A grande novidade desta edição foi a união com a Primeira Marcha das Mulheres Indígenas, que reuniu 3 mil mulheres, acampadas em Brasília desde 9 de agosto, e que tomaram as ruas no dia 13 de agosto, em defesa de seus territórios e seus direitos. No dia 14, foi o momento se se somarem à marcha com as Margaridas. Novas parceiras também se uniram à luta em 2019, como o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), ambas ligados à Via Campesina.
Muito mais do que um movimento de mulheres, a Marcha das Margaridas é um espaço de articulação feminista, onde diversas correntes dialogam e colaboram, sempre pautadas por um feminismo popular, construído no debate político entre movimentos sindicais, sociais, feministas, de mulheres e organizações internacionais. E quais são as demandas das Margaridas?
A plataforma política da Marcha das Margaridas
O lema da Marcha no ano 2000 foi: “2000 razões para marchar: contra a fome, a pobreza e a violência sexista”. Os temas centrais da Marcha permaneceram os mesmos nas edições seguintes, em 2003 e 2007. A partir de 2011, o lema passou a ressaltar a luta por desenvolvimento sustentável com justiça, autonomia, igualdade e liberdade. Em 2015, o tema da democracia se juntou aos anteriores, em uma clara resposta à ameaça de retrocessos democráticos existentes naquele momento e que se confirmou após a Marcha com o golpe contra a Presidenta Rousseff. Entre 2000 e 2015, a Marcha elaborou tou duas pautas: uma dirigida ao Estado e outra direcionada ao próprio movimento sindical. Em linhas gerais, as pautas entregues ao Estado incluíram demandas por políticas de acesso à terra para mulheres, políticas de crédito, políticas sociais para o campo, como saúde, educação e moradia de qualidade. A transformação das relações sociais, sobretudo, da ordem de gênero dominante, que assigna às mulheres os trabalhos do cuidado e da reprodução, é outro eixo central de demandas. As Margaridas lutam por autonomia econômica e renda para as mulheres no campo, pelo reconhecimento de seu trabalho como produtoras rurais e pelo acesso à renda de seu trabalho. Para transformar a sociedade, defendem uma educação não-sexista e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ao longo das edições, a Marcha das Margaridas incorporou temas como o acesso à água e aos bens comuns, a promoção da agroecologia, da soberania alimentar, da soberania energética. Questiona, assim, processos de mercantilização da natureza, o predomínio da lógica do lucro no sistemas agro-alimentares, e os efeitos negativos do atual modelo de desenvolvimento agrário capitalista para a saúde, o meio ambiente, a classe trabalhadora, e especialmente as mulheres. Em conjunto com movimentos rurais, a Marcha defende um modelo alternativo de desenvolvimento rural, pautado na justiça social e ambiental.
Ao mesmo tempo, as Margaridas prepararam uma pauta interna que visa democratizar os espaços de poder de onde vieram: o movimento sindical. Por isso, também construíram uma pauta dirigida ao próprio movimento sindical, na busca por mais democracia interna no movimento. Em 2019, a Marcha optou por não elaborar e entregar uma pauta política para o Estado, por entender que o atual governo não negociaria as demandas políticas das Margaridas. Como alternativa, lançaram uma platafora política das Margaridas, na qual apresentam à sociedade, a agentes do governo e a organizações sociais o projeto político de sociedade defendido pela Marcha. No centro dessa plataforma está a luta por soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violência, lema das Margaridas em 2019.
Em suma, as Margaridas marcham em luta pelos direitos da classe trabalhadora em geral e, em especial, pelos direitos das mulheres trabalhadoras rurais. Porém, em defesa de pautas que visam o bem comum e a justiça social, sua plataforma política acolhe demandas de vários outros movimentos sociais. Em seu longo processo de mobilização, foram tecendo solidariedades e ampliando suas demandas, onde se vêm representadas cada vez mais mulheres.
Uma conjuntura única: o que está em jogo?
Em muitos aspectos, a 6ª edição da Marcha das Margaridas foi única. Após as reformas nos direitos trabalhistas e sindicais, o movimento sindical de trabalhadores e trabalhadoras rurais liderados pela Contag perdeu importante fonte de recursos e autonomia. Ademais, com a eleição de um governo abertamente contrário aos movimentos sociais progressistas, não se poderia contar com nenhum tipo de apoio do governo para a realização da Marcha das Margaridas. Mais do que isso, não se poderia esperar, como nas edições anteriores, um momento oficial de interação com os representantes do governo federal para receber e negociar a pauta de demandas, e por conta do discurso de ódio contra os movimentos do campo progressista, temia-se ser recebidas com violência.
Margarida Maria Alves respondia às ameaças de morte que sofria: “da luta eu não fujo”
Em 2019, o grito de ordem era resistir à destituição dos direitos, em uma clara conjuntura de retrocesso, após anos em que a trajetória das Margaridas tinha sido ascendente, de muitas vitórias, fruto de suas lutas, como o o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural, a criação de programa de crédito para mulheres, a possibilidade do cadastramento dos assentamentos em nome do casal, ou no nome da mulher quando esta for solteira, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. O golpe que destituiu a Presidenta Dilma Roussef e a eleição do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro foram duros para a população trabalhadora brasileira, especialmente as mulheres rurais: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do teto dos gastos públicos, que afetou a saúde e a educação, os cortes nos mercados institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a reforma da previdência, o aumento do desmatamento e da violência no campo, o aumento dos feminicídios.
Nesta conjuntura única, as palavras de ordem que coloriam Brasília eram a defesa da democracia, da previdência , do Sistema Único de Saúde (SUS) e de outras políticas sociais; a denúncia contra o feminicídio e a violência contra as mulheres; a demonstração de força da região Nordeste, que veio com a maior delegação para Brasília; a denúncia dos crimes ambientais cometidos pelas mineradoras frente ao desmonte da já fragilizada política ambiental brasileira; a denúncia do uso indiscriminado de agrotóxicos, que envenenam os campos, as florestas e as águas; Lula Livre foi também um grito de luta que ecoou pela Marcha das Margaridas, que culminou com Fernando Haddad lendo uma carta escrita pelo ex-Presidente.
Margarida Maria Alves respondia às ameaças de morte que sofria: “da luta eu não fujo”. A Marcha das Margaridas segue o legado de Margarida Alves e reafirma a liderança das mulheres e o poder mobilizador do feminismo para construir alianças para a defesa de projetos comuns como “a luta por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violência”, lema da Marcha em 2019.
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