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O fim do relato progressista na América Latina

Os protestos contra Dilma Rousseff marcam um ponto de inflexão na ruptura entre governantes e governados em Brasil, um processo que paulatinamente se estende aos países latino-americanos. Español. English

Salvador Schavelzon
15 Setembro 2015
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Barack Obama, Michelle Obama e Dilma Rousseff. Asuntos del Sur. Todos os direitos reservados.

Pode-se falar de final de ciclo para os governos progressistas da América Latina? Quando os triunfos eleitorais se sucederam recentemente no Uruguai, Brasil, El Salvador e Bolívia, a pergunta pareceu dissipar-se. Mas regressou por outros caminhos. Não necessariamente através das também recentes derrotas em grandes cidades ou regiões do Brasil, Equador, Argentina ou Bolívia. Estas têm tido certo peso simbólico mas parecem remeter-se a um novo equilíbrio mais que à interrupção do apoio a nível nacional. Longe das urnas, mais bem, um possível momento de mudança ainda indeterminada parece perceber-se  no esgotamento de um modelo e na transformação interna da narrativa política progressista, plurinacional ou bolivariana.

Tanto à esquerda como à direita do espaço político em que os governos progressistas se estabelecem como centro, assistimos uma reordenação de forças e mobilização em vários países. O mapa da situação política não é homogêneo nem pode ser generalizado, mas certa inquietude é transmitida desde a razão “governista”, termo utilizado no Brasil para referir-se à defesa militante do governo que não aceita nem a mais mínima crítica. Nesse país, após as primeiras medidas de governo que seguiram ao triunfo por mínima diferença nas eleições de outubro de 2014, o “governismo” mostra uma notável dificuldade para sustentar o “relato” no qual se apoia.

De facto, quiçá seja o Brasil onde o problema do fim de ciclo se mostra com maior claridade. Ao final, as mobilizações opositoras de cunho expressivamente conservador na Argentina e na Venezuela vêm-se sucedendo sem que o apoio aos governos deixe de ser firme e provavelmente suficiente para ganhar outra eleição. Fortes mobilizações camponesas e indígenas no Equador e na Bolívia, por outra parte, não mermaram até agora o voto maioritário de Morais e Correia. No Brasil, as últimas medidas de abril e maio sobre a imagem positiva de Dilma Rousseff chegaram ao 7% num dos grandes institutos e perto de 10% noutros. Lula dá Silva, o provável candidato para 2018, não deixa de ser afetado pelo descontentamento. É que, além de uma oposição indignada, a crítica ao governo atingiu rapidamente a massa de votantes próprios. Para o “governismo” mais cínico, no entanto o neoliberalismo é uma fase já deixada atrás e a falta de popularidade deve-se exclusivamente a uma crise na que não têm responsabilidade, e ao trabalho dos grandes meios.

Na realidade, a popularidade de Dilma Rousseff já tinha sido baixa em junho de 2013 e durante a copa do mundo, dois momentos em que a indistinção do PT com o poder empresarial e os partidos conservadores com os que co-governa, ou da oposição, se mostravam evidentes desde as ruas. Esta imagem de frente conservador onde o progressismo se integra é a base da situação política que avaria o relato. Em sentido oposto, a eleição presidencial de 2014 permitiu ao PT recuperar os seus votantes históricos numa notável polarização do eleitorado que eliminou Marinha Silva associando-a ao neoliberalismo, e a Aécio Neves. Um voto desencantado, no entanto, foi seguido por uma verdadeira indignação em frente à formação do gabinete de ministros e as primeiras medidas. A presidenta assumiu políticas de ajuste e austeridade, de sentido notavelmente contrário ao prometido na campanha eleitoral que ainda ressoava nos ouvidos dos Brasileiros.

Por intermediação de Lula o PT incorporou o responsável económico do programa da oposição, e começou um recorte de despesas que pesaria especialmente sobre a classe trabalhadora e a educação. Outra nomeação de impacto foi o de Katia Abreu para o Ministério de Agricultura, homenageada tempo antes pelos povos indígenas com o prêmio de “Miss Motosserra de Ouro”, pelo seu papel na defesa de crimes ambientais e o avanço do agronegócio sobre terras indígenas, duas causas de ampla sensibilização na cidade.

Ao mesmo tempo, os gestos para os mercados não serviram para neutralizar manifestações de centos de milhares de pessoas que pediam a destituição de Dilma, que com um discurso anticorrupção sinalizam a possibilidade de um encerrar do ciclo pelo caminho mais conservador. Estas vozes que saíram à rua, expressam-se também num congresso onde aumenta a influência da bancada “da Bala, o Boi e a Biblia (BBB) ”, com controle da câmara de deputados e com muita mais influência sobre o governo que os movimentos sociais. Sectores conservadores na base do governo e a oposição conseguiram que o governo cessasse iniciativas educativas anti-homofóbicas em curso, e preparam-se nesta semana para aprovar uma emenda constitucional que reduza a 16 anos a idade a maioria penal, após ter aprovado a generalização da terceirização para todos os sectores da economia, dantes restringida.

Tendo-se afastado do projeto de mudanças que o levou ao poder, sem capacidade para mobilizar nem para parar institucionalmente reformas conservadoras, e sendo partícipe das mesmas em alguns casos como o da deterioração dos direitos do trabalho, o fim de ciclo dá-se com o progressismo no comando, que inclusive poderá voltar a ganhar num confronto eleitoral com os sectores com os que, na realidade, co-governa.

Culto à tecnocracia

Ainda que uma derrota na Venezuela ou na Argentina seria significativa para a liga de presidentes do espaço que inaugurou Chávez em 1999 e hoje governa vários países, o fim de ciclo passa nos diferentes países pela aceitação de um modelo conservador avaliado como condição necessária para a estabilidade e continuidade política. Os questionários e o cálculo eleitoral determinam assim o projeto político, que tende ao culto do institucional e a tecnocracia, ainda que mantenha um discurso que constrói seu eléctrodo a partir da ênfase no social. Na Argentina, nesse sentido, o kirchnerismo dispõe-se a defender na campanha a um candidato que nunca gozou de sua confiança, mas que se aceita por medir melhor nos questionários. Daniel Scioli, lançado politicamente por Menem, demonstra que o peronismo segue sendo mais que o kirchnerismo e apresenta-se desde posições políticas que não se diferenciam das de seus rivais do espaço conservador.

A velha política também se introduz no MAS na Bolívia, desde uma visão hegemonista que o leva a recorrer a figuras mediáticas ou recicladas da oposição, como se as decisões eleitorais e acordos não tivessem consequências na gestão e rumo político. Assim, abandonam-se objetivos que vão para além da ocupação das instituições, substituindo a mobilização popular pela incorporação de posições, visões e demandas do inimigo, deixando atrás os tempos que seguiram à eleição de Evo Morales nos que teve tentativas de propor reformas mais contundentes ou questionar a forma e funcionamento do Estado, para além de quem ocupasse o cadeirão.

A impossibilidade de regeneração e volta às origens, por outra parte, limita-se desde a própria dinâmica do sistema político, que financia as campanhas desde o sector empresarial; ou na dependência estatal de rendimentos produto do pior desenvolvimento e o extrativismo, base também de alianças espúrias com caudilhos locais e capital multinacional sem responsabilidade nem horizonte para além da busca de volta mais rápida possível dos investimentos. Boa parte das políticas sociais são fruto destes rendimentos, pelo que a marca e popularidade destes governos associa-se intimamente com estes tipos de exploração económica sumamente dependente do preço internacional e com consequências ecológicas desastrosas.

Num balanço devem destacar-se medidas importantes, como o avanço na articulação regional; a declaração de inconstitucionalidade das leis de impunidade da ditadura e a atribuição universal por filho em Argentina; alguns elementos das constituições de Bolívia e Equador; negociações soberanas da dívida; redução da pobreza e a intervenção social e de infraestrutura em bairros. O final de ciclo também se relaciona com a interrupção dessas agendas, no entanto, com um aumento da pobreza na Argentina, e da desocupação no Brasil, além dos limites das lutas empreendidas, que não incorpora no reconhecimento de direitos e defesa de garantias às periferias e povos indígenas que enfrentam grandes obras e expulsões de territórios. Alguns tabus desta época romperam-se com negociações de pactos bilaterais em Equador, e com o encarceramento de opositores na Venezuela. O balanço também é negativo na prometida industrialização e saída do modelo de economia primária dependente de preços das commodities.

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Daniel Scioli e Mauricio Macri Asuntos del Sur. Todos os direitos reservados.

O novo marco ideológico

Chegado o momento de falar de modificações estruturais da desigualdade e a matriz económica, os governos progressistas parecem transformados pelo poder e as instituições, em vez do inverso. Enquanto receitas ortodoxas anunciam novamente sua chegada, afastam definitivamente a possibilidade de fortalecer processos que desde o Bom Viver apostem por outro enfoque. Ao mesmo tempo, um novo marco ideológico assumido por boa parte do progressismo para encarar a fase política atual, garante popularidade e a permanência no poder, mas à custa de abandonar princípios anticapitalistas e demandas vindas das mobilizações que abriram o ciclo político progressista. Isto é claro se vemos o avanço de três elementos: a ideologia do consumo, o consenso do desenvolvimento e a agenda política trazida pelos sectores religiosos.

A propaganda “governista” apresenta o crescimento em índices de consumo como acesso de milhões à classe média. Além de abandonar agendas camponesas, indígenas e operárias, a discussão deixa de lado a revisão de prioridades na economia e a forma de distribuição –que continua beneficiando em maior medida os mais ricos. Também não complementa o acesso ao consumo com um acento no acesso a saúde, educação e transporte de qualidade, que permanecem alheios às maiorias.

A chegada do Papa Francisco ao Vaticano, dias após a morte de Chávez, já supôs retrocessos na legislação progressista, travando mudanças no Código Civil argentino, e dando legitimidade à ruptura de governos com lutas de minorias que historicamente a esquerda defendeu, cortando incipientes avanços em alguns dos países. A transformação que converteu Bergoglio de autoridade de uma igreja conservadora que fecha mostras de arte ou não assume uma posição crítica durante a ditadura, a líder do progressismo, não fala somente de uma operação de comunicação, senão também do fim de ciclo do progressismo como o conhecemos até agora. O consumo e a agenda conservadora ligam-se com a incorporação de um ponto de vista estatal e hiperpresidencialista, articulando com identidades políticas nacionalistas, com suas variantes batllistas no Uruguai, peronista na Argentina, emenerrista na Bolívia, quando não das próprias ditaduras, se nos focarmos no modelo “desarrolista” adoptado.

Quiçá deva tomar-se em sério a proposta de fundar uma nova internacional liderada pelo Papa Francisco, apresentada por Gianni Vattimo e aplaudida por atores do progressismo “governista” no Foro pela Emancipação e a Igualdade que teve lugar em março de 2015 em Buenos Aires. Rafael Correia, nessa direção, assumiu neste ano uma defesa sobreactuada e repentina contra o que chamou “agenda abortista”, para impedir a regulação legislativa deste tema, e de “ideologia de género” contra direitos de minorias. O posicionamento soma-se a suas já clássicas polémicas contra ambientalistas e indígenas.

A política que intervém nos antagonismos sociais, raciais e de impulso descolonizador, é assim substituída por valores conservadores desde uma ideia de confraternização e conciliação que no fundo deixa de lado a luta contra a desigualdade, para além do assistencialismo que enquadra e desmobiliza os sectores populares desde o paternalismo estatal ou religioso. O novo horizonte vem acompanhado de um tratamento da dissidência como radicalismo contrário aos interesses da nação. No plano geopolítico, o aumento da repressão e criminalização de dissidentes articula-se com a visão para oriente, acercando no discurso e a economia a regimes autoritários como o da Rússia e da China, também já despossuídos de um horizonte anticapitalista e emancipador.

Substituindo a classe trabalhadora e movimentos sociais ou indígenas por família e classe média; o progressismo e a esquerda no poder deixam de ser pelo caminho da segurança e o consumo de novos nacionalismos “desarrollistas”. Este movimento é claro no Nicarágua, onde Daniel Ortega e o sandinismo regressaram ao governo em 2007. A aproximação com a igreja com a qual se enfrentou nos 70, dá-se junto à aprovação de uma lei que proíbe o aborto em qualquer situação. No final do 2014, o congresso aprovou também sem debate nem socialização da informação uma lei que dá origem à construção de um canal interoceânico, cedendo direitos soberanos por 50 anos a uma empresa chinesa, reprimindo e criminalizando camponeses e populações que serão deslocadas. O ciclo político também se interrompe quando a política de desenvolvimento aproxima governos bolivarianos, progressistas ou de esquerda às giras nacionalistas e liberais do Peru, Colômbia ou México, sem distinção na instrumentalização do poder estatal para garantir um modelo para nada progressista.

Mais que um horizonte anti ou pós extrativista como alternativa de poder num novo ciclo, vemos aparecer novas direitas com discursos renovados “para a gente” e “pós-ideológicos” com a bandeira que perdeu a esquerda da ética contra a corrupção. Sem participação e buscas de outra política que liguem lutas territoriais com as lutas nas cidades, o novo ciclo acabará cedendo lugar a um regime autista e individualista que combine ou alterne um nacionalismo social de discurso religioso e um republicanismo individualista de discurso anti-estatal indignado.

Este artigo foi publicado por primeira vez em “Asuntos del Sur".

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