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Pós-conflicto na Colômbia (3): a paz, meio século depois

As negociações com as FARC estão demasiado avançadas para que alguém possa dar um passo atrás. Español. English

Mariano Aguirre
12 Janeiro 2016
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Diálogos de paz entre o Governo da Colômbia e as FARC-EP, Havana, Setembro 2015. Yenni Muñoz/Cuba Minrex/Flickr. All rights reserved.

Na que foi a guerra de guerrilhas mais longa na história das Américas, e depois de meio século de insurgência rural, a Colômbia está perto de entrar numa nova fase que poderia chegar a convertê-la num modelo para outros países que lutam para deixar atrás os seus conflitos.

Nos últimos meses, Juan Manuel Santos, o presidente da Colômbia, e Rodrigo Londoño Echeverri (nome de guerra: Timochenko), líder de um dos grupos rebeldes marxistas colombianos, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), chegaram a dois acordos decisivos sobre justiça transicional e o destino de perto de 50.000 pessoas desaparecidas durante a guerra.

O processo parece ter chegado a um ponto no qual nenhuma das partes pode já dar marcha atrás, e um acordo de paz poderia alcançar-se em março de 2016. Se isto acontecer, o governo tem previsto celebrar um referendum sobre o mesmo no prazo de dois meses.

As duas partes iniciaram as negociações de paz em agosto de 2012 através da assinatura dum acordo para pôr fim ao conflito e construir uma paz estável. Acordaram negociar sobre cinco temas: desenvolvimento rural; participação política; fim do conflicto armado e abandono das armas por parte das FARC; narcotráfico e cultivo de drogas ilícitas; e direitos das vítimas do conflicto.

Negociaram-se acordos sobre as três primeiras questões no primeiro ano e meio. A sua aplicação não será fácil, ao tratar-se de temas tão sensíveis como os direitos sobre a terra, minorias, as indústrias extrativas e os poderosos narcotraficantes. Mas apesar de graves crises políticas, as partes mantiveram a sua implicação no processo de paz, ás vezes graças ao papel proativo da Noruega e de Cuba, os dois facilitadores do processo. Um segundo movimento guerrilheiro colombiano, o Exército de Libertação Nacional (ELN), negou-se a participar, mas continuam os esforços para convence-los a unirem-se às conversações.

Alcançar um acordo sobre justiça transicional foi difícil. As FARC disseram que não estavam dispostas a participar nas negociações se os seus líderes terminassem por ir para à prisão por crimes contra a humanidade. 

Do mesmo modo, as forças armadas, ainda admitindo algumas violações de direitos humanos durante a guerra contra a insurgência, insistiram em que obedeciam às ordens de governos democráticos e não estavam dispostas a ver como alguns dos “seus oficiais terminam na prisão, enquanto que os líderes das FARC acabam no Parlamento”.

Colômbia é parte e ratificou o Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional, o que significa que a amnistia para os líderes de ambos lados não é uma opção que possa ser comtemplada.

As aproximações

As conversações de paz na Colômbia, tendo aprendido as lições de – entre outras –as negociações no El Salvador, África do Sul e Irlanda do Norte, adoptaram características inovadoras, em particular a incorporação das vítimas e a questão de gênero. As negociações levaram-se a acabo tão só entre as duas partes principais, mas as vozes e a influência doutros sectores da sociedade colombiana e as opiniões de peritos internacionais tiveram um peso importante.

Igualmente importante foi a criação de subcomissões. O governo colombiano e as FACR estabeleceram subcomités para discutir questões como o cessar fogo, o abandono das armas e a reintegração dos guerrilheiros na vida civil. Também estabeleceram uma comissão histórica para examinar as origens do conflicto e os sofrimento das vítimas afetadas. Um avanço importante foi a criação de uma subcomissão de gênero que recebe propostas de organizações de mulheres e de lésbicas, gays, bissexuais, transgenero e intersexuais.

A presença das vítimas tornou as negociações mais complexas, mas ao mesmo tempo deram ao processo mais profundidade e criatividade que noutras conversações de paz. Delegações de vítimas de todas as partes – a guerrilha, os paramilitares e as forças armadas— estiveram presentes na Havana durante seis meses. Em paralelo, as Nações Unidas e a Universidade Nacional da Colômbia organizaram foros que permitiram às vítimas dar o seu testemunho. Quase 24.000 foram as vítimas às quais se lhes deu a oportunidade de apresentar propostas e ideias aos negociadores. Calcula-se que à volta de 7 milhões de pessoas se consideram vítimas do conflicto.

As partes negociadores e os facilitadores consultaram regularmente com peritos legais para encontrar fórmulas para resolver o conflicto. O acordo de 23 setembro de 2015 sobre justiça transicional incluiu os seguintes pontos:

O acordo baseia-se em “dizer a verdade”: qualquer indivíduo (guerrilheiro, militar ou civil) que reconheça a sua participação em delitos graves receberá uma sentença de prisão entre cinco e oito anos. Se o indivíduo não reconhece dito crime, a pena pode chegar aos 20 anos.

Mas os crimes que lesam a humanidade, como tortura ou assassinatos, não podem ser amnistiados. Viçenç Fisas, da Escola de Cultura da Paz em Barcelona (Espanha) tem vindo a assessorar as partes durante muitos anos. Ele pensa que “a paz tem sempre um preço. E esse preço é a magnanimidade na aplicação da justiça quando há verdade, vontade de reparar, compromisso de não reincidir e o desejo de pedir perdão pelos crimes cometidos”.

As partes acordaram criar uma “jurisdição especial para a paz” que se encarregará dos crimes cometidos durante a guerra. Haverá penas alternativas para as FARC (ainda por definir). O regime de justiça transicional será aplicado a todos os atores armados que se viram involucrados no conflito interno.

As FARC abandonarão as armas, no prazo máximo de 60 dias depois da assinatura do acordo. O governo garantirá o pleno “retorno à vida civil” dos membros das FARC. Em quanto ao acordo sobre as pessoas desaparecidas, estabelecer-se-ão dois mecanismos. O primeiro põe em prática “medidas humanitárias imediatas para a procura, localização e entrega digna dos restos de pessoas que se assumam como desaparecidas devido ao conflicto armado interno ou no seu contexto”. O segundo conjunto de medidas estabelece uma unidade especial para a procura de pessoas que se presumem como desaparecidas.

Pontos discutidos

O regime de justiça transicional dividiu os peritos legais e os ativistas de direitos humanos. Virgínia Bouvier, del Instituto Estado-unidense para a Paz, considera que: em nenhum outro processo de paz no mundo as vítimas ocuparam um papel tao central. Temos aqui um desenho de justiça transicional que é tanto histórico como inovador. Dá prioridade a dizer a verdade, mas não evita a necessidade de justiça. O modelo é inovador em quanto que inclui a justiça restaurativa e se centra nos danos infligidos a pessoas e comunidades através dum processo de diálogo e cicatrização. Vale a pensa observar com atenção já que poderia proporcionar novos modelos para outras zonas de conflicto que tentam sair da guerra”.

No entanto, para a Human Rights Watch, o acordo “negaria justiça a milhares de vítimas de graves violações de direitos humanos e do direito humanitário ao permitir que os agressores se livrassem de um castigo substancial. Enquanto o Foro Especial para a Paz ofereceria importantes incentivos para que os violadores confessassem os seus crimes, também permitiria aos responsáveis por atrocidades massivas escapar à prisão”.

Por sua parte, a Corte Penal Internacional assinala “com otimismo que o acordo exclui a concessão de qualquer amnistia para com os crimes de guerra e os crimes contra a humidade” e que está desenhado, entre outras coisas, “para por fim à impunidade dos crimes mais graves”.

No dia 15 de Dezembro as partes alcançaram um acordo sobre um sistema integral de verdade, justiça, reparação y não repetição, que se estabelecerá formalmente uma vez alcançado um acordo definitivo.

Os objetivos e formas de implementação estão incluídos num manuscrito de 63 páginas nas quais se comtempla a salvaguarda dos direitos das vítimas; garantir a não repetição; ter uma aproximação territorial, diferencial e de género; prover segurança jurídica para os processados; promover a convivência e a reconciliação; e que o acordo tenha legitimidade.

O sistema inclui uma Jurisdição Especial para a Paz (JEP), cuja máxima instância será o Tribunal para a Paz, que será o encarregado de julgar os crimes cometidos no marco do conflito. O Tribunal para a Paz poderá julgar os combatentes das FARC, membros das forças de segurança do estado, e civis (“colombianos comuns e os empresários que de alguma forma tenham violado a lei durante a guerra”).

A Jurisdição Especial para a Paz, terá competência sobre todos os atores que tenham participado de maneira direta ou indireta na guerra, incluindo os agentes do Estado “que tenham cometido delitos graves por causa do conflicto” e sobre financiadores e colaboradores dos grupos paramilitares. “Para os agentes do estado, em especial militares e polícias, o Estado desenvolverá um regime especial, simultâneo, equilibrado e equitativo”, indicou Humberto de la Calle, chefe negociador do governo colombiano na Havana. O governo considera que os militares devem receber um tratamento diferenciado uma vez que se tratam de “agentes em exercício legítimo de força e as suas ações se presumem legais”.

No dia 22 de dezembro, a Human Rights Watch realizou uma nova análise dos detalhes del acordo, indicando que o governo e as FARC anunciaram em setembro que as sanções sob “condiciones especais” não implicariam penas de prisão. O acordo de 15 de dezembro garante que em “nenhum caso” estas condições consistiram em “prisão” nem em “medidas equivalentes”, e limita todas as restrições e liberdade a aquelas que sejam “necessárias” para executar projetos de reparação e restauração.

Por sua parte, o comité de representantes das vítimas presentes na Havana no dia 15 de dezembro indicou que estarão “atentos observadores do estrito cumprimento os acordos que se assinaram”.

Nelson Camilo Sánchez León, perito em DeJustiça considera que “analisado globalmente (tanto pelo procedimento já referido, como pelo seu conteúdo), o acordo é robusto e parece ter a potencialidade, se for executado de forma honesta e efetiva, de contribuir para a reconstrução dos projetos de vida das vítimas, assim como a fortalecer a democracia colombiana. Evidentemente, não é a fórmula perfeita. Também não é o exemplo para o mundo que alguns predicam. É um acordo que tem a possibilidade de ser operativo e que está pensado para uma realidade especifica, com as limitações e as vantagens dum contexto especial: o colombiano. ”

Os spoilers

Existe uma forte oposição interna por parte do ex-presidente Álvaro Uribe. Durante o seu mandato reorganizou as forças armadas, com Juan Manuel Santos como ministro da Defesa, e lançou uma forte ofensiva que debilitou a insurgência. Uribe representa o sector rural conservador que se opõe a qualquer reforma na propriedade das terras e às mudanças num sistema político em que os liberais e os conservadores se alternavam no poder sem mudar o status quo. Também é popular entre os sectores da sociedade que não acreditam que as FARC respeitem os acordos de paz.

As milícias e os paramilitares estiveram presentes initerruptamente na história da Colômbia devido a debilidade dum Estado que nunca teve o controlo total do seu território nacional, pelo isolamento de algumas zonas por causa da complexa geografia do pais e pela herança dum sistema colonial que concedeu terras aos caudilhos locais em troca da sua lealdade.

Alguns destes problemas persistem hoje em dia. Um relatório de 2014 de DeJusticia , um think-tank colombiano especializado em temas legais, afirma que o Estado não chega nem presta serviços a aproximadamente 60% do território, o que deixa 6 milhões de cidadãos numa situação de “apartheid institucional” na qual os indígenas e as pessoas de ascendência africana são os mais marginalizados. Na periferia, o Estado não está legitimado nem é democrático, sendo substituído por “homens fortes – chefes mafiosos e guerrilheiros, proprietários de terras e paramilitares”.

Os setores empresariais são céticos em relação ao processo de paz e alguns dos seus membros temem ser considerados responsáveis de cumplicidade em crimes de guerra. Contudo, algumas empresas urbanas e rurais reconhecem as vantagens dum acordo de paz.

Motivos para o optimismo

Ambas partes das negociações de paz precisam dum acordo. O Presidente Santos representa o sector privado urbano e outros sectores de classes média acomodadas que querem viver num país normal. Sem um acordo de paz, é difícil representar o pais como estável. A Colômbia tem cerca de 6 milhões de deslocados internos e 360.000 refugiados, enquanto que 1.3 milhões de pessoas solicitaram reparações por parte do Estado por ter sido vítimas de sequestros, ameaças de morte, lesões por minas terrestres ou desaparições forçosas.

Negociações

Um pequeno grupo próximo ao presidente Juan Manuel Santos e à liderança das FARC celebraram perto de 50 reuniões entre janeiro e agosto de 2012. Decidiu-se que Cuba e a Noruega, que formaram parte dessas reuniões, seriam os facilitadores do processo, com o Chile e a Venezuela como garantes. A Havana foi eleita como sede das negociações.

A presença em Cuba dava e oferece cobertura ideológica aos líderes das FARC. O grupo rebelde nasceu sob a influência da revolução cubana na década de 1960. A Havana ofereceu o seu prestigio revolucionário para abençoar o processo de paz e para mandar um sinal ao Estado Unidos de que está a terminar uma época da qual as FACR e o ELN são os últimos sobreviventes. Neste sentido, o processo de paz colombiano tem vínculos com o restabelecimento das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Cuba.

Desde a década de 1960, Washington esteve à frente das operações de contra insurgência, liderando o Plano Colômbia (1999), uma mistura entre ajuda, assistência militar, inteligência e guerra contra o narcotráfico. Mas viu-se a administração Obama intervir num processo de paz quase até ao final. O secretário de estado norte-americano, John Kerry, nomeou Bernie Aronson como enviado especial para o processo de paz da Colômbia em fevereiro de 2015. Os Estados Unidos têm vindo a pedir a extradição duns 70 líderes das FACR por tráfico de drogas e outros delitos. Se se chega a um acordo, é possível que desistam.

Em 1995, a Noruega ajudou a iniciar as negociações na Colômbia, como explica Jan Egeland, ex-enviado especial das Nações Unidades para a Colômbia, no seu livro A billion lives. O seu relato descreve o inflexível que se mostravam as FACR nas suas exigências por aquele então. Depois de que esta tentativa falhasse em 2002, a Noruega manteve os seus contatos com o governo e, através de canais não governamentais, com os grupos insurgentes.

O diplomático que lidera a equipa Noruega que facilita as negociações juntamente com Cuba, Dag Nylander, disse numa entrevista a um jornal espanhol que para ter êxito, um mediador deve ter “a vontade de entrar no processo mantendo um perfil muito baixo, sem procurar nenhum tipo de publicidade, já seja para ele mesmo ou para a Noruega”.

Adeus às armas

Os dirigentes das FARC chegaram à conclusão que de que podiam continuar a guerra na selva, mas que é impossível derrotar o poder do Estado. As forças armadas colombianas têm vindo a ter cada vez mais êxito contra a guerrilha devido sobretudo às reformas que aumentaram a sua flexibilidade, mobilidade e a utilização de equipamentos de alta tecnologia.

As FARC perderam também o apoio de amplos sectores da sociedade. Depois da queda da União Soviética, a decisão da China de se unir ao sistema capitalista e a derrota doutros movimentos guerrilheiros na América Latina, a ideia de uma revolução armada ao estilo dos anos 60 perdeu grande parte do seu atrativo. Os duros métodos das FARC e os sues vínculos com o tráfico de drogas duras socavaram a sua imagem até ao ponto de que as organizações de direitos humanos, os sindicatos e os camponeses que sofreram a repressão estatal e as ações brutais dos grupos paramilitares de direita deixaram de se sentir representado pelas FARC.

Entretanto, centenas de organizações da sociedade civil estão trabalhando como se o acordo de paz já estivesse assinado. Tudo isto torna muito difícil para as partes na Havana dar um passo atrás nas negociações, mesmo que se rompam os acordos de cessar-fogo.

Este artigo foi publicado originalmente em Inglês pelo The World Today e se reproduz aqui atualizado, com ligeiras modificações e com autorização.

https://www.chathamhouse.org/publication/twt/peace-within-colombia-s-grasp 

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