
Armas confiscadas às FARC. Flickr. Some rights reserved.
Este ano termina com avanços de vital importância para o processo de negociação entre o governo nacional e as FARC. Por um lado, acaba de se produzir o anúncio oficial sobre o tema das vítimas. E por outro lado, recentemente, Sérgio Ibáñez, membro da equipa negociadora das FARC na Havana, afirmou que “enquanto estamos fechando o ponto sobre as vítimas, construímos a plataforma de análise sobre o tema do fim do conflito.”
Estes factos não são insignificantes, uma vez que aos acordos parciais sobre a política de desenvolvimento agrário integral, participação politica e solução dos problemas das drogas, suma-se o tema que até agora foi o mais difícil de negociar – o das vítimas, que inclui o marco de justiça transicional – o que supõe um empurrão na direção do fim do conflito.
O “Acordo Geral para a terminação do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura”, definido em 2012 entre o Governo e as FARC, estabelece no seu ponto terceiro (Fim do Conflito) o “abandono das armas”. Este tema começou a abordar-se formalmente desde este ano através de uma subcomissão conjunta de carácter técnico, integrada por militares e policias ativos de alta patente e membros do grupo guerrilheiro.
A criação desta subcomissão não está exempta de críticas. A oposição ao processo alegou que a presença de militares e polícias ativos na mesa de negociações é ilegal porque os iguala com atores terroristas e é algo que, de passagem, desmoraliza as tropas. Entretanto, o Governo assinalou que é normal que estes temas sejam abordados por aqueles que fizeram a guerra no terreno e tem o conhecimento técnico e operativo que exige esta fase da negociação.
Outro ponto que suscitou grande controvérsia foi a terminologia usada. Enquanto há aqueles que argumentam que “abandonar” as armas e “desarmar-se” é o mesmo, a realidade é que este nível semântico acarreta muitos significados e emoções em relação à história das FARC. Esta guerrilha reiterou o seu acordo com o abandono das armas, mas sempre que aja garantias para poder defender os seus ideais sem necessidade de usar armas – porque, segundo dizem, as armas não são “fetiches” mas sim ferramentas de resistência que, chegada a paz, seriam uteis e por isso teriam que ser abandonadas.
“Abandonar as armas” denota também um ato voluntário por parte das FARC e ao mesmo tempo um acordo, produto de um processo de negociação política. Quer dizer, o oposto a “desarmar-se”, que conota submetimento e inclusive rendição, quando a verdade é que as FARC não foram derrotadas militarmente pelo Estado Colombiano, e na Havana apresentaram-se como um adversário com o que se está negociando, não como uma contraparte ao qual se está a impor a vontade de um vencedor absoluto.
Em qualquer caso, a discussão sobre o abandono das armas já tinha dado um passo importante com o anúncio de um acordo parcial sobre o tema da justiça transicional, no passado dia 23 de setembro. Alem de unificar a linguagem entre as parte com o termo “abandono das armas”, também se acordou o prazo para iniciar o processo de abandono, o qual teria lugar nos dois meses seguintes à assinatura do acordo definitivo, quer dizer, em maio de 2016. É de destacar assim mesmo a importância dada ao abandono das armas como condição necessária para que os membros da guerrilha acedam aos benefícios judiciais.
Alguns pontos a ter em conta
Não é a primeira vez que na Colômbia se discute e, menos ainda, se implementa um processo de abandono das armas [1]. Se bem noutros processos se apelou ao uso da palavra “desarme”, a realidade é que na Colômbia tivemos uma larga aprendizagem que nos deixou todo o tipo de experiencias, às quais se suma as internacionais que hoje em dia tem muito que aportar-nos [2]. De ai que valha a pena realizar algumas reflexões.
Uma tem que ver com o desenho de um protocolo para o abandono das armas que, como resultado das negociações entre o Governo e as FACR, defina cronogramas e tempos, procedimentos, orçamentos, atividades, supervisão e verificação, assim com a definição dum marco jurídico institucional para o processo de Desarme, Desmobilização e Reintegração (DDR) e o manejo do armamento.
Neste sentido, as experiências de anteriores processos na Colômbia, as pistas que proporcionam casos internacionais, as orientações consagradas nos Standards integrados em DDR, a iniciativa de Estocolmo e a Contribuição de Cartagena, somados à criatividade e imaginação que permitam estas medidas de tipo transicional e excepcional, serão algumas das peças a ter em conta para assegurar que os aspectos técnicos, operativos, jurídicos e de segurança sejam minimamente blindados desde o princípio.
O estabelecimento de um plano desde o princípio gerará confiança, transparência e efetividade, evitando confusões e faltas de comunicação. Por exemplo, os processos de paz na República do Congo, Irlanda do Norte, Nepal e Serra Leoa sofreram sérios riscos técnicos e operativos devidos a falta de fundos e à ausência de disposições claras para levar a cabo o desarme, o que gerou mal-estar, atrasos e interrupções.
A verificação, monitoramento ou acompanhamento do desarme é outro ponto a ter em conta. O ideal é que sejam levados a acabo por uma terceira parte neutral que garanta imparcialidade e ajude a mitigar a sensação de desconfiança e de humilhação entre as partes. O especialista canadense, Cornelis Steeken indicou que o grupo de verificação pode ser internacional ou nacional, ou um ONG, mas no final o que importa é que seja independente das partes e que a sua função consista, entre outras coisas, em vigiar todos os dias os contentores, se se opta por este mecanismo, para saber se armas e munições estão completas.
Sobre o mandato e alcance desta intervenção, o mesmo deve ficar estabelecido desde o princípio com tarefas, obrigações, restrições, cobertura e orçamento para garantir a sua eficácia. Por exemplo, o acompanhamento do desarme das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) entre 2003 e 2006, se bem que foi definido num acordo entre a Missão de Apoio ao Processo de Paz e a Organização dos Estados Americanos (MAPP/OEA) e o governo colombiano, a realidade é que não foi nem revisado nem acordado, mas sim uma decisão tomada livremente que se foi detalhando durante o processo, o que deixou sérias dúvidas em quanto aos papéis e funções de verificação.
O protocolo deve ser o suficientemente flexível para evitar que, perante o seu incumprimento, se gere desconfiança entre as partes e também na sociedade civil perante o processo. Assim aconteceu no El Salvador, país no qual se definiram prazos restritivos de entregas de armas, o que gerou um alto nível de desconfiança, até ao ponto que se chegou a pôr como possibilidade a ruptura das negociações. Cabe também recordar que nos acordos de Dayton para a paz na Bósnia e Herzegovina em 1995, o ultimo tema que se discutiu foi o das diferenças entre as delegações sobre o ritmo da redução de armamento que deviam levar a cabo as partes em conflito.
O desarme deve concentrar-se inicialmente nas armas que estão em possessão da guerrilha. Em Moçambique, por exemplo, o processo de desarme de grupos rebeldes com participação da ONU completou-se, anos depois, com um processo de recolecção de armas da população civil levado a cabo pela igreja. Quer dizer, depois houve um processo amplio de controlo de armas em poder da população civil, o desarme voluntario [3]. Cabe dizer também que todas as armas devem ser recebidas, incluindo aquelas em mau estado e de fabricação artesanal. Na Serra Leoa, muitas das armas em mau estado foram devolvidas aos ex-combatentes, aumentando assim o risco de reutilização.
Outro aspecto tem que ver com as fronteiras que a Colômbia comparte com os seus países vizinhos. Para evitar filtrações de armamento a países vizinhos e sobretudo considerando a alta presença das FARC em áreas limítrofes, é crucial considerar a criação de mecanismos bilaterais de discussão sobre o tema do desarme com o os governos da Venezuela, Peru, Panamá, Equador e Brasil. Isto ajudaria a mitigar o risco de desvio de arsenais para o mercado negro, inclusive noutros países. Em Moçambique e na África do Sul desenhou-se uma iniciativa conjunta de desarme na sua fronteira, evitando a recirculação de excedentes. Dois casos opostos são o El Salvador e o Mali, onde a falta de diálogo com os governos vizinhos facilitou o tráfico ilícito de armas na zona de fronteira e a instalação de depósitos clandestinos nesses países.
Por outra parte, o abandono de armas terá lugar em diferentes contextos. Chegado o momento de definir as zonas de concentração, devem ter-se em conta os grupos armados que ainda existem no pais, para além das FACR, como o Exército de Libertação Nacional (ELN), o Exército Popular de Libertação (EPL), grupos criminosos e outras organizações criminosas que atuam em zonas urbanas e rurais. Estes grupos podem levar a cabo ações contra o processo, pondo em risco a segurança dos desmobilizados, de aqueles que executam e verificam o processo e as armas entregadas.
Para além disso, deve conhecer-se a informação do armamento. É importante que durante as etapas de planeamento do processo de desarme, se definam as condições requeridas para recopilar informação sobre as armas que ajude a realizar um rastreio efetivo para a sua disposição final. Deve-se, também, recolher informação sobre os números de serie, marcas de fabricação e origem, marcas físicas distintivas, entre outros dados disponíveis, que sejam consignados num sistema de registro da informação do armamento.
Por último, o país e o mundo devem conhecer o que acontece durante o desenvolvimento deste processo, pelo que será necessário o desenho e implementação de um mecanismo de rendição de contas ou accountability, sobre o abandono das armas e a sua destruição. É importante que se comtemple, por exemplo, uma metodologia de elaboração, entrega e publicação periódica de relatórios que certifiquem e validem os processos no âmbito local, nacional e internacional. Isto é crucial, em especial se as cerimónias de abandono de armas se fizerem de forma reservada e confidencial, como aconteceu na Irlanda do Norte – modelo que insistem as FARC que se deve seguir.
Precisamente, o carácter confidencial de dito processo suscitou desconfianças e tensões entre as partes e impediu conhecer como se realizou de forma detalhada. Isto, devido a que o organismo internacional que assessorou o desarme, liderado pelo senador George Mitchell, recomendou que o confisco de armas não se parecesse a uma vitória ou derrota das partes e que se fizesse de forma privada. Isto produziu, por exemplo, que não se soubesse o destino final das armas e que o processo se tenha estendido durante sete anos pese ao facto que o mesmo se programou para tão só dois.
O cenário de abandono de armas das FACR será, pois, delicado e deverá ser conduzido por especialistas internacionais e nacionais. A sociedade civil nas diferentes regiões de Colômbia terá um papel importante de fiscalização, observação, seguimento e demanda de acesso à informação em relação ao que aconteça no dia a dia. Será um grande desafio, uma vez que se tratará da implementação pura e dura dos pontos do Acordo Geral, que seguramente não será perfeito, mas que, com algumas das previsões aqui mencionadas, possivelmente se pode salvaguardar e concluir de forma satisfatória. Depende também da mão dos entes encarregados da verificação e monitoração que o abandono das armas se realize da forma mais efetiva e eficiente possível para, deste modo, evitar demoras e suspeitas por parte duma sociedade ainda dividida e frente ao processo e com uma oposição empenhada em exercer um controlo e vigilância muito fortes.
Finalmente, também depende do governo e das FARC, que devem garantir que este acordo seja um processo transparente, aberto perante a sociedade, uma vez que as armas que abandonaram e destruíram serão a imagem de uma nova política que quererão fazer, sem as mesmas, milhares de homens e mulheres.
As ideias expressas neste artigo são uma adaptação parcial do documento “O desarme das FARC: fatores chaves e propostas para um processo viável, exitoso e transparente”, elaborado pela Fundação Ideias para a Paz (Colômbia) e pelo Instituto Igarapé (Brasil). Disponível aqui: http://cdn.ideaspaz.org/media/website/document/5605ff09ec154.pdf.
[1] Em 1953 desmobilizaram-se entre 8000 e 20.000 membros das guerrilhas liberais; entre 1989 desmobilizaram-se 900 integrantes do M-19; entre 1990 e 1994 desmobilizaram-se aproximadamente 3600 dos grupos armados Partido Revolucionário dos Trabalhadores, Exército Popular de Libertação, Quintin Lame e Corrente de Renovação Socialista, e entre 2003 e 2006 desmobilizaram-se quase 32.000 membros das AUC. A estes números devem somar-se centenas de milhares de desmobilizados que se entregaram individualmente às autoridades colombianas nos últimos 30 anos.
[2] Dos 18 processos de DDR revistos para a investigação feita pela Fundação Ideias para a Paz (FIP) e Igarapé, 45% desenvolveram-se em África, onde se recolheram o maior numero de armas (perto de 294.000) entre 1989 e 2008. Destaca-se também, em quase todos os processos, a participação de terceiras partes nas tarefas de monitoração e verificação do desarme, como a ONU (12),União Europeia (2) a OEA (2) a OTAN (2) e países amigos (3). Para além disso, a maioria inclui a entrega de incentivos materiais em troca e armas (80%) e quase a metade (45%) optaram pela destruição.
[3] Durante os diálogos de Segurança Cidadã organizados pelo FIP e o instituto Igarapé (Abril 2015), o General (R) Óscar Naranjo comentou que o pós-conflito é o momento preciso para implementar medidas complementárias de controlo de armas de carácter cidadão, que permitam reduzir a disponibilidade geral de armas no país.
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