
A paixão no populismo

Até alguns anos atrás, a democracia deliberativa e a proteção da esfera pública eram as questões centrais do debate político. Agora é a vez da emoção e da política pós-verdade, e não é de admirar: de que outra maneira explicar por que as classes trabalhadoras descontentes dos EUA votaram em um bilionário que está enriquecendo os ricos ainda mais em 2016 ou por que a campanha Leave no Reino Unido conquistou vários daqueles que serão mais atingidos pelas consequências do Brexit.
No entanto, faz sentido as pessoas estarem simplesmente respondendo aos seus sentimentos e seguindo seu instinto? De maneira mais ampla, ainda existe uma divisão entre razão e emoção na política?
Os avanços na neurociência confirmam que o pensamento e o sentimento estão intimamente interconectados. Se no passado da política nem tudo podia ser atribuído à razão, é igualmente verdade que nem tudo agora pode ser atribuído à emoção. No entanto, as sociedades online que transformam a informação em arma estão remodelando a política democrática de uma forma muita profunda. Hoje, as emoções voltaram e são frequentemente consideradas o cerne da atual onda populista.
A emoção pode ser usada de diversas formas. A indignação, por exemplo, levou a protestos contra a ganância, corrupção e medidas de austeridade como parte dos Movimentos dos Indignados na Espanha e na Grécia e Occupy Wall Street nos EUA, mas também reforçou o ódio aos imigrantes e o apoio a políticas racistas. O presidente Donald Trump chama os mexicanos de "estupradores", por exemplo, e o político italiano Matteo Salvini interveio para parar os navios de resgate humanitário no Mar Mediterrâneo.
As emoções políticas são uma preocupação fundamental para todos os interessados nos assuntos atuais, mas são ambíguas, e focar apenas se a emoção pode explicar e prever fenômenos políticos é um quadro muito limitado. Quando se trata de política democrática, também devemos perguntar como as emoções podem estabelecer uma ordem normativa e sustentar uma agenda política específica. É aqui que as emoções encontram o populismo.
Em um novo livro que co-editei com Fernando Vallespín, exploramos os vínculos entre a política populista e a dinâmica específica que as emoções desencadeiam nas sociedades contemporâneas. Investigamos até que ponto a ascensão global do populismo e o papel das emoções na política convergem para uma lógica específica - que anda de mãos dadas com as formas atuais de comunicação centradas nas redes sociais.
As emoções, juntamente com valores, atitudes, rituais e performances de todos os tipos, fazem parte da nossa identidade e desempenham um papel crucial na formação das nossas visões de mundo e na criação de laços sociais. Além disso, as emoções motivam indivíduos e grupos a se envolverem em ações políticas. Elas podem ser os meios e os fins dessas ações e moldam, muitas vezes retoricamente, objetivos e estratégias políticas.
Claramente, existem certas classes de emoções que são mais adequadas à política democrática liberal do que outras. O ódio, obviamente, não é amigo de uma sociedade pacífica e tolerante. Sejam de pessoas comuns ou do presidente dos Estados Unidos, esses sentimentos geralmente se solidificam em grupos cujo objetivo final é difamar e tirar o poder de outra pessoa e, à medida que se espalha, essa dinâmica pode eventualmente consumir a ordem liberal. Ataques contra grupos minoritários, como latinos e pessoas LGBTQ, são uma expressão do potencial devastador do ódio como uma emoção política.
No entanto, paixões semelhantes também podem prefigurar idaias e práticas políticas alternativas. A raiva é um exemplo clássico. Veja a recente onda de protestos provocada por ações como as sextas-feiras pelo futuro (Fridays for Future) de Greta Thunberg e Extinction Rebellion. O profundo sentimento de injustiça que está no centro desses movimentos é um fator-chave para que cidadãos irados participem de manifestações políticas e apoiem mudanças radicais em nossos sistemas políticos e econômicos.
O mesmo sentimento de injustiça também está ligado a emoções como empatia e esperança, que podem desencadear laços afetivos mais abertos à diversidade cultural, igualdade e participação democrática e que podem promover uma agenda mais progressista e igualitária.
Comum a todas as definições de populismo é a ideia de "povo" e a divisão antagônica da sociedade em dois blocos opostos
As emoções, então, são parte integral da política em todas as suas formas. Elas não são exclusivas do populismo, mas há algo específico aos apelos emocionais populistas que falta na deliberação supostamente racional das formas de política não populistas? Esta questão é particularmente interessante por pelo menos duas razões.
Primeiro, a relação entre populismo e emoção aponta para um estilo específico de fazer política, expondo as profundas transformações pelas quais os regimes democráticos liberais estão passando hoje. Em poucas palavras, o populismo é visto como contrário ao governo tecnocrático, baseado na elite, uma postura que envolve características estilísticas, performativas e estéticas específicas que mobilizam diversos conjuntos de paixões.
Embora a tecnocracia se baseie no apelo do expertise e na suposição de estabilidade, o populismo é geralmente visto como enraizado no apelo ao "povo" versus "o establishment". Ele é construído em torno de líderes carismáticos que são frequentemente definidos por seus jeito grosseiro, que capitalizam o sentimento de traição e alienação que os cidadãos estão sentindo em relação às instituições políticas.
Em segundo lugar, levar as emoções a sério na análise política também pode ajudar a tornar o populismo - um fenômeno notoriamente escorregadio de definir - muito mais claro, permitindo-nos ver seu impacto mais profundo nas sociedades. Comum a todas as definições de populismo é a ideia de "povo" e a divisão antagônica da sociedade em dois blocos opostos. As emoções moldam esses dois elementos do populismo de maneiras cruciais.
A formação de identidade individual e de grupo é moldada pela dinâmica afetiva: "as pessoas" e "a elite" são sujeitos coletivos formados por meio de processos que envolvem interações impetuosas. Portanto, os eleitores da classe trabalhadora podem se identificar com os homens mais ricos do mundo, como Donald Trump e Silvio Berlusconi, porque esses homens estabeleceram uma estratégia emocional através da qual eles se apresentam como parte do povo comum, confrontados com o sistema político e econômico existente .
A arma do crime neste drama são as redes sociais e seu papel crescente na vida pública e política. Mensagens curtas, sem nuances e que apelam à emoção já estavam assumindo o controle durante a era da televisão de Berlusconi na Itália, mas desde então cresceram para dominar todo o cenário político. A construção de "povo" e a estruturação da sociedade em dois blocos opostos são processos que ocorrem cada vez mais nas redes sociais. É aqui que a formação da identidade ocorre. Conectar pessoas que pensam da mesma forma, em vez de promover um diálogo informado entre diferentes grupos, reforça identidades estreitas e produz comunidades afetivas fortemente contrastantes.
As redes sociais favorecem a "balcanização" das discussões online e operam com base em fluxos de elogios ou descrédito ("shirtstorming" e "cybermobbing"), sobrecarregando a esfera pública de calor e ruído e impedindo o pensamento crítico e o envolvimento entre partidos. O uso excessivo de rede social pode contribuir para o essencialismo político.
É claro que qualquer subjetividade política pode encontrar expressão e ter voz na Internet, e mensagens de todos os tipos podem florescer, de reacionárias a progressivas. Muito se tem dito sobre até que ponto a esquerda também deve adotar um tipo emocional de política (ou pelo menos uma estratégia de comunicação emocionalmente ressonante) para impedir o avanço do populismo de direita. Disposições emocionais construtivas são certamente necessárias para aqueles que visam mudanças sociais e políticas.
No entanto, qualquer pessoa envolvida na transformação social também deve estar ciente da dinâmica interna das emoções e de seu potencial ambíguo na era digital. O risco para a esquerda é que, à medida que suas políticas se tornam cada vez mais emocionais na busca de tração pessoal e pública, isso pode banalizar ainda mais o debate político, paradoxalmente reforçando o populismo e o nacionalismo de direita.
Não é difícil imaginar as consequências de tudo isso para a democracia. Aparentemente, a força da democracia nunca foi tão forte, mas a realidade é que a democracia, como a conhecemos, está sob pressão. Suas instituições e funcionamento estão sendo questionados de fora e de dentro. A legitimidade democrática - a ideia de que as instituições políticas representativas existentes são as mais apropriadas para administrar a sociedade - está sendo criticada. De que outra forma podemos interpretar a decisão de Boris Johnson de fechar o parlamento do Reino Unido na tentativa de entregar um Brexit sem acordo?
Nesse contexto, a política progressista pode e deve procurar renovar sua força, combinando seus princípios com interações impetuosas. No entanto, se não queremos viver em um mundo dirigido por comediantes, a devoção entusiástica da política progressista à mudança social deve ser articulada com o amor pelas nuances, o apego ao pluralismo e o gosto pela complexidade. A força do raciocínio na esfera pública, mesmo quando canalizada por poderosas mensagens emocionais, não deve desaparecer do cenário democrático.
O novo livro de Paolo Cossarini e Fernando Vallespín se chama Populism and Passions. Democratic Legitimacy after Austerity.
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