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Terror policial no Brazil

Quantas mortes de jovens negros são necessárias para serem consideradas 'genocídio' ou pelo menos como 'assassinatos políticos'? EnglishEspañol. 

Jaime A. Alves
14 Outubro 2015
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A policia militar ocupa uma favela no Rio de Janeiro, Abril 2015. Demotix /Fabio Teixeira. Todos os direitos reservados.

Imagine um lugar onde oito Michael Brown´s são mortos a cada dia. Imagine um lugar onde a extorsão, o estupro, a tortura e os assassinatos são rotina. Esse lugar é o Brasil. O terror policial no Brasil tornou-se tão banal que perdeu o interesse da midia internacional. Alguns de nós ainda podem recordar a cobertura mediática sobre massacres como Carandiru (1992), Candelaria (1993), Eldorado dos Carajás (1996) e os Crimes de Maio (2006). Agora, mais do que nunca, o “terror” tornou-se o modus operandi das forças policiais.

Seria de se esperar que, com as conquistas sociais promovidas pelo Partido dos Trabalhadores na última década (40 milhões de pessoas saíram da pobreza no Brasil), o terror policial iria desaparecer ou pelo menos ser muito menos frequente. Mas o contrário aconteceu. No Brasil, há uma coisa que une os governos de esquerda e de direita: a sua incapacidade de lutar contra o terror policial. Muitas vezes, os governos de ambos os campos têm sido cúmplices com o estado policial de terror que impera no Brasil. 

Dizer que os massacres se converteram em prática diária no Brasil não é exagero. A polícia brasileira é tão corrupta, tão brutal e tão fora de controle que nos últimos oito meses (de janeiro a agosto de 2015), houve quinze massacres com 56 vítimas apenas na cidade e região metropolitana de São Paulo. Embora as investigações estejam em andamento, tudo indica que a altamente corrupta Polícia Militar, esteja implicada nos assassinatos. Cada vez que um novo relatório sobre assassinatos por parte da polícia é divulgado, revela níveis surpreendentes sobre o número de mortes. Ninguém parece se importar, afinal a maioria das vítimas são negros, pobres e favelados.

Talvez voce se importe: então vamos rever os números. Nos últimos dez anos (2002-2012), a polícia brasileira matou 11.200 indivíduos supostamente por resistir à prisão. Em 2014, a polícia matou 3022 civis, de acordo com os números preliminares do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Até setembro de 2015 as polícias militares do Rio de Janeiro e de São Paulo mataram 459 e 494 pessoas respectivamente. Segundo a Amnistia Internacional, a polícia é responsável por aproximadamente 15% dos homicídios no Rio de Janeiro. Em São Paulo, ela é responsável por 1 em cada 5 mortes violentas.

Neste cenário, onde devem as vítimas do terror policial buscar proteção? Devem chamar a polícia? Como devem resistir a um poder militar que trata os negros brasileiros como inimigos do Estado e da sociedade civil? [1]. Não há espaço para negociar a paz, porque não se trata de guerra, e sim de massacre. Não há espaço para se render, porque não existem dois exércitos e o objetivo final não é a 'paz.' O objetivo final é a morte. Quando a polícia invade uma favela, todos são considerados criminosos, independentemente do seu estatuto de 'trabalhador', 'bandido' 'evangélico' ou 'traficante'.

A polícia brasileira detém o um poder absoluto de vida e de morte sobre os civis. Esse poder é garantido por governantes eleitos e por um sistema judiciário falhado e corrupto. Geraldo Alckmin, governador paulista da extrema-direita  respondeu desta maneira ao assassinato pela ROTA (a Unidade Especial de Polícia Militar) de nove indivíduos: 'Quem não resistiu à prisão ainda está vivo'. Da mesma forma, Rui Costa, governador da Bahia pelo PT, tratou como uma piada a operação policial que resultou no assassinato de doze pessoas na periferia de Salvador. Costa observou que, 'um oficial é como um atacante. Tem que decidir em segundos, como marcar ... se marcar será aplaudido, se falhar o gol  será criticado. 'Aparentemente, no Massacre do Cabula a policia marcou um 12x0.

Sem esperança!

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Unidade Pacificadora no Rio de Janieor, Outubro 2013. Demotix/Fabio Teixira. Todos os direitos reservados.

O assassinato (principalmente de negros) dos moradores das favelas encontra justificação na mídia e na chamada sociedade civil que exige mais sangue, quando não se junta à polícia nos assassinatos. Uma recente onda de violência coletiva promovida por jovens da classe média contra os negros pobres em vários pontos do país reflete o ressurgimento do linchamento como terror racial na 'democracia racial' brasileira.

Os meios de comunicação “re-matam” os mortos, rotulando-os como 'bandidos' ou 'criminosos'. No meu próprio trabalho com vítimas do terror policial em São Paulo, tenho testemunhado a luta das mães para provar a inocência de seus filhos mortos e, assim, reparar as imagens destruídas pela mídia. Os jornais, invariavelmente, copiam as informações dos boletins de ocorrência que nada mais são do que narrativas fraudulentas que protegem os policiais e criminalizam os mortos. Se um polícial é morto, a polícia invade a favela e mata dezenas de pessoas em mais uma chacina. Os vinte indivíduos mortos após um policial ter sido morto na periferia de Manus, em Junho de 2015 e o massacre de 15 jovens na periferia de São Paulo em setembro de 2015, são dois exemplos da lógica da vingança em que se baseiam as práticas policiais no Brasil. 

Dentro da realidade institucional atual, parece haver pouca esperança de mudança da força policial brasileira. Ao contrário de muitos outros países, no Brasil a segurança pública é uma responsabilidade de cada estado. Não existe um esforço coordenado entre o governo federal e estaduais para treinar e controlar a polícia. A presidenta  Dilma Rousseff prometeu impulsar uma nova legislação redesenhando as responsabilidades dos entes federativos, mas a iniciativa parece improvável de se transformar em realidade à luz da atual crise política em que se vê mergulhada a sua administração. Enquanto isso, a polícia continua a deter um poder extraordinário e discricional muito além do que se poderia considerar escandaloso. Ainda mais preocupante é o fato de que os assassinatos cometidos por policias que são investigados pela própria policia, numa cultura corporativista previsível que quase sempre acaba com nenhuma acusação formal.

Os casos que são investigados pelo Ministério Público, são muitas vezes arquivados por 'falta de provas' ou justificados como 'estrito cumprimento do dever legal.' Como os ativistas sociais há muito te^m insistido, e o último relatório da Amnistia Internacional confirma, há um “acordo tácito” compartilhado entre os membros do poder judiciario e os órgãos de investigação, que se baseia na crença de que a polícia está apenas limpando a cidade. Na sua página no Facebook, o promotor de justiça Rogerio Zagallo confirma esta crença. Irritado com um protesto bloqueando o trânsito, ele publicou a seguinte mensagem: 'alguém diga a  polícia que se matar esses filhos da puta eu arquivo o inquérito policial.'

Instituições policiais corrompidas criaram no Brasil o que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos descreve como uma 'cadeia perversa de impunidade ', uma cadeia que as famílias dos mortos não podem romper. Um caso emblemático: o mês de maio de 2016 marcará o décimo aniversário do que veio a ser conhecido como os 'Crimes de Maio'. Em maio de 2006, numa cadeia de ataques como vingança pelo assassinato de 59 policiais por membros do PCC, a policia militar paulista assassinou 505 civis. Dez anos depois, não ha sequer um julgamento.  Foram 505 civis mortos num período de duas semanas!

Pelo contrário, a sociedade civil e os meios de comunicação conservadores elogiaram e promoveram o partido politico e os policias direta ou indiretamente implicados nestas e muitas outras mortes. O Coronel Paulo Telhada, ex-comandante da ROTA (Unidade Especial da Polícia de São Paulo), não só foi eleito para a Assembleia Legislativa de São Paulo, se auto-promovendo pela morte de 36 indivíduos( para defender a sociedade civil), como também foi indicado por seu partido (PSDB) para ocupar a  comissão de direitos humanos da ALESP.

Ação!

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Protestos pacíficos contra a violência policial frente à sede da Polícia Militar em Brasília, 2013. Demotix / Osvaldo Ribeiro Filho. Todos os direitos reservados

Ativistas negros têm denunciado o terror policial no Brasil, descevendo-o de 'genocídio negro'. Previsivelmente, a denuncia é vista  como um exagero e o Estado brasileiro não toma medidas serias  apesar das estatísticas mostrarem número surpreendente de mortes de negras e negros. Embora nem todas as mortes negras estejam relacionadas com a polícia, muitas são certamente facilitadas pela delinquência estatal. Em face a tal indiferença, os/as ativistas clamam por solidariedade internacional. Enquanto choramos os nossos mortos e lutamos desesperadamente para parar a máquina de terror e violência que é a polícia brasileira, listo abaixo uma serie de recomendações que expressam algumas das preocupações e demandas do movimento negro no Brasil:

  1. As Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos (OEA) devem pressionar o governo brasileiro para desmilitarizar a sua força policial e “federalizar” as investigações de assassinatos por policiais. Como as autoridades estaduais têm se revelado incapazes de realizar investigações independentes, a Polícia Federal deve ser a responsável por realizar investigações que envolvam membros da força policial. 
  2. As Agências internacionais (stakeholders) devem apoiar o lobby do movimento social negro para defender uma legislação que ' federalize ' os crimes cometidos por policias e por uma comissão permanente, independente, protegida e autônoma, composta por ativistas negro/as, acadêmicos e organizações de direitos humanos para fiscalizar as práticas policiais.
  3. A violência policial também é um campo fértil de produção de conhecimento. Estudiosos têm contribuído para o nosso entendimento sobre a violência policial no Brasil e, no entanto, há necessidade traduzir o conhecimento em práticas com impactos reais na vida das populações.  Ha uma frustração, entre os ativistas sociais progressistas, para com uma agenda conservadora acadêmica de 'reforma da polícia', enquanto a militância nas ruas esta' pedindo a  'abolição da policia'. O movimento negro, insiste que (pelo menos aqueles de nós em ambos os lados do espectro) preste atenção ao seu léxico e ás suas demandas políticas. 
  4. Acadêmicos brasilianistas e ativistas norte-americanos poderiam expressar solidariedade para a luta do movimento negro brasileiro e pressionar a administração Obama e o Congresso dos EUA para barrar o 'Acordo de Cooperação de Defesa dos Estados Unidos-Brasil (DCA) ', que promove o  intercâmbio de tecnologia militar, fortalecimento da indústria de defesa e treinamento conjunto em 'operações pacificadoras.' Tais transações militares intensificarão os atos de violência contra as comunidades negras em ambos os países. [2]

Finalmente, os meios de comunicação alternativos e organizações internacionais de direitos humanos deveriam abster-se de utilizar a linguagem do estado para referir-se ao terror policial. Termos como 'atos de resistência, 'uso excessivo da força. ''ações Ilegais', e' letalidade policial' 'não são neutros e terminam por legitimar a violência do Estado. Do ponto de vista das vitimas, faz diferença a distinção entre violência legal e excessiva/ilegal? Quantas mortes de jovens negros são necessárias para  reconhecermos que estamos ante um 'genocídio' ou pelo que as mortes baseadas na cor da pele são assassinatos políticos? Quando a violência se transforma em terror?[3]

Buscar a solidariedade internacional pode ser a única possibilidade para enfrentarmos o regime domestico de terror que a policia representa e o Estado brasileiro sustenta. Buscar a solidariedade internacional, mas não ser tao otimistas. Um indicador: na verdade as Nações Unidas já recomendaram ao governo brasileiro a abolição da polícia militar. No entanto, enquanto a ONU expressa preocupações com os números de civis assassinados, o governo brasileiro estabelece parcerias com os Estados Unidos e Israel para equipar a polícia brasileira com tecnologia militar e treina-la em iniciativas de contra-insurgência urbana. A mensagem não deixa duvidas: mais polícia, mais prisões e mais mortes.

[1] Esta pergunta pode ser feita também no contexto norte-americano de violência generalizada contra as comunidades negras. Para uma visão relacional do Brasil e dos EUA, ver Joy James e Jaime Alves 'Regimes de Segurança Doméstica: Favelas, Negritude e Geografias Bi-Nacionais do Terror Policial. Manuscrito.

[2] Joy James e J Alves, 'Regimes de Segurança Doméstica».

[3] Para uma defesa academica do conceito de 'genocídio negro' ver: João Costa Vargas. 'Genocídio na Diáspora Africano: Estados Unidos, Brasil, e da necessidade de uma Pesquisa Holística e Método político.' Dynamics culturais, 17, 3 (2005): 26.

(Originally published in English)

 

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