
Liderança de mulheres negras para mudar a Colômbia
A presença de Francia Márquez nas eleições traz pautas negras e feministas, uma mudança radical na política do país

Enquanto a Colômbia se prepara para as eleições presidenciais deste ano, Francia Márquez Mirna, uma ativista negra de 40 anos, está mudando os termos do debate político na segunda nação mais negra da América do Sul. Francia, pré-candidata à presidência e possível vice-presidente da chapa de Gustavo Petro, lidera um movimento coletivo de mulheres, comunidades LGBTQ+, jovens negros, camponeses e outras comunidades marginalizadas para transformar os insidiosos padrões de violência e desigualdades sociorraciais neste canto do mundo.
Segundo Infobae, até 54,2% de população colombiana enfrenta insegurança alimentar, 42% vive abaixo da linha da pobreza e 10,8% das crianças sofrem de desnutrição crônica. O país tem uma das maiores populações de deslocados internos e o conflito armado mais longo do hemisfério.
O racismo está no centro dessas dinâmicas de violência, uma vez que a costa do Pacífico e os territórios indígenas da região andina são os mais afetados por essas desigualdades e vitimizações. “Esta é uma nação que tem sido administrada como uma fazenda por sua elite. Agora é hora de ocupar a Casa de Nariño, a casa do senhor de engenho!”, diz Francia, referindo-se ao palácio presidencial em Bogotá.
A presença de uma mulher negra na corrida eleitoral contrasta com os rostos familiares dos detentores do poder no país. Ela está definitivamente "fora de lugar" em uma sociedade que espera que mulheres negras sejam domésticas nas casas das elites, representadas por seus oponentes políticos nas eleições de maio.
Esse imaginário racial colombiano é perpetuado pela mídia. Em 2011, por exemplo, a prestigiosa revista espanhola Hola homenageou a famosa colombiana Sonia Zarzur (herdeira de uma família tradicional açucareira) com duas empregadas negras uniformizadas ao fundo. A matéria gerou polêmica, mas não muda o fato de que esse imaginário compartilhado do lugar das mulheres negras na sociedade colombiana permanece intacto desde a abolição da escravatura em 1851.
Para os senhores da guerra, a possibilidade de uma mulher negra ocupar a casa dos 'pais fundadores' do país é um pesadelo
Sobrevivente de tentativas de assassinato e vítima de deslocamento de sua própria comunidade por grupos ligados a paramilitares e latifundiários, Francia sente na pele o racismo que rege a nação e a atual campanha presidencial. “Estamos cansados de contar nossos mortos. Por isso decidi aceitar esse desafio”, diz Francia.
Para os senhores da guerra, cujos avanços políticos se baseiam na evisceração de vidas negras, a possibilidade de uma mulher negra ocupar a casa dos "pais fundadores" do país é um pesadelo. Também é uma ideia difícil para as forças progressistas, que, embora relativamente abertas a "aceitar" minorias na política como sinal de maturidade da democracia, bloqueiam o caminho para o avanço de pessoas com o rosto e a pele de Francia Márquez.
Considere, por exemplo, como o machismo e o racismo permearam a dinâmica partidária e a cobertura da grande mídia da eleição. Comentaristas consistentemente desqualificam Márquez como "inexperiente" e uma dos "ninguém" na corrida eleitoral, parte da massa de pessoas ofendidas e humilhadas que, como defendem Lina Lucumí e Lizeth Ossa, "têm feridas no corpo e na alma".
Curiosamente, mesmo enquanto a mídia mobiliza a política de gênero em um esforço para reconhecer a posição legítima de uma ex-senadora e vítima de guerra para participar da disputa dominada por homens, ela não dá reconhecimento devido aos méritos de Francia, como seus esforços reconhecidos internacionalmente em defesa do planeta (é uma das vencedoras do Goldman Environmental Prize).
Enquanto as mulheres negras precisam travar batalhas para serem ouvidas, o status quo aceita com mais facilidade as cotas de "diversidade" de gênero através da singularização de uma tragédia nacional às custas de invisibilizar as múltiplas humilhações e horrores vividos cotidianamente por aqueles cujo gênero, raça, orientação sexual e região de origem os colocam fora do imaginário das vítimas e das promessas da democracia colombiana.
Como Francia perguntaria, é possível tornar o sofrimento dos pobres em um ponto comum para um pacto social que possa "dar origem a uma democracia que dignifique a vida"?
A questão também é relevante para lançar luz sobre o racismo do Pacto Histórico. O amplo arco de aliança formado por partidos políticos e movimentos sociais para derrotar os detentores do poder tradicional tem uma tarefa importante se quiser cumprir sua promessa como força política progressista.
Para aqueles familiarizados com a história racial da Colômbia, as micro e macro agressões sofridas por membros do movimento SoyPorqueSomos (Sou porque somos) não surpreende.
Relacionado
Para ilustrar, os candidatos do movimento foram praticamente excluídos do sistema de votação em lista fechada para o Senado e a Câmara dos Deputados. Vicenta Moreno e Carlos Rosero, dois ativistas sociais que promovem a democracia no país, receberam a promessa de um lugar na lista sob o compromisso político de reparação racial e de gênero. No entanto, logo foram substituídos por políticos brancos de centro e centro-esquerda que canibalizaram o discurso de inclusão.
Moreno e Rosero foram sacrificados para salvar a coalizão. Agora, o conselho eleitoral nacional foi denunciado por dificultar o acesso da campanha de Márquez a fundos públicos amplamente disponíveis para outros candidatos que têm extensas redes de apoio financeiro.
Por fim, embora as primárias de 13 de março indicariam um candidato presidencial e vice-presidente para as eleições nacionais de acordo com seu desempenho eleitoral dentro do Pacto Histórico, alguns enviaram mensagens contraditórias sobre um possível acordo (com os mesmos senhores brancos) no qual Francia seria solicitada, mais uma vez, a mostrar "responsabilidade histórica" e sacrificar a posição do SoyPorqueSomos.
Queremos acreditar que o SoyPorqueSomos não será sacrificado no altar da política tradicional. Sem dúvida, o principal candidato nas eleições presidenciais, Gustavo Petro, tem um compromisso político com as lutas populares e de lutar contra o uribismo e seus tentáculos no aparelho estatal. Mesmo assim, sem a liderança das mulheres negras, é provável que o projeto de uma Colômbia Humana se torne a teimosa repetição do trágico progressismo das “elites crioulas”, termo supostamente inclusivista que se refere a todos colombianos, que marcou os projetos excludentes de emancipação do país e da América Latina desde os movimentos de independência do século 19.
Não estou aqui para carregar a bolsa de Petro ... Estou aqui para liderar a transformação de uma Colômbia para todas, todes, todos – Francia Máquez
Seria uma velha Colômbia com roupas novas. Talvez pessimista em relação à democracia eleitoral, a filósofa afro-brasileira Sueli Carneiro afirmou que "entre esquerda e direita, continuo preta". Para mostrar que a afirmação de Carneiro está equivocada no contexto colombiano, o Pacto Histórico deve se desfazer do vício do racismo e reconhecer e aceitar a liderança das mulheres negras.
Nas palavras de Francia, "não estou aqui para carregar a bolsa de Petro. Não estou aqui para realizar este trabalho. Estou aqui para liderar a transformação de uma Colômbia para todas, todes, todos".
Em um evento de campanha na Plaza San Francisco, em Cali, capital da "resistência", Francie delineou o programa multifacetado para "descolonizar", "despatriarcalizar" e desmilitarizar a Colômbia: reparação de gênero e raça, pacto social pela paz, desmantelamento do paramilitarismo e a reestruturação da polícia, a redistribuição da terra, uma economia de bem-estar social, o direito à cidade, a democratização da educação e da cultura, uma nova política de drogas para acabar com a guerra contra a juventude negra e provisão legal para proteger a natureza.
SoyporqueSomos propõe um projeto de paz com enfoque negro como resposta à economia de guerra da elite tradicional branca/mestiça. O país com um aparato (para)militar expansivo que é constantemente implantado contra territórios negros e indígenas no país e no exterior (o assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse por ex-mercenários das Forças Armadas treinados nos Estados Unidos e a longa guerra contra as drogas em territórios negros e indígenas financiados com dinheiro dos contribuintes do país através do Plano Colômbia têm afinidades raciais mortais) pode agora ser o berço de um projeto hemisférico – baseado na vida e liderado por mulheres negras para superar a destruição inaugurada com o colonialismo.
Atenta à tradição radical negra (Palenquismo) como práxis de libertação local e planetária, Francia prometeu transicionar o geopoder da Colômbia de uma liderança regional faminta de guerra para uma liderança regional que promova a paz ecológica, geopolítica e social. Essa ética interseccional e supranacional convida as forças políticas do continente a superar a atual devastação do capitalismo racial.
Na Colômbia, esta é uma escolha entre as utopias negras de uma nova nação e a persistência da destruição promovida pelo horror branco. Não podemos exigir nem uma vírgula a menos que isso.
Leia mais!
Receba o nosso e-mail semanal
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy