“Você já viu o que acontece com um copo de vidro quando você bate nele com um martelo? Ele se quebra em pedaços minúsculos. Foi assim que me senti: despedaçado”, diz Daniel, explicando como um médico de um hospital próximo negou-lhe um aborto.
O ginecologista que se recusou a interromper a gravidez de Daniel – resultado de estupro coletivo – disse que ele era um "viado" que "provocou os bandidos".
Daniel (que está usando um pseudônimo, para que sua filha não seja capaz de identificá-lo, pois ele não seria capaz de explicá-la seu início de vida) é um dos muitos sobreviventes de violência sexual durante o conflito armado colombiano. Depois de ter o aborto recusado, Daniel transformou o esforço de fazer sua voz ser ouvida uma prioridade.
Os guerrilheiros vêem os homens trans como mulheres cisgênero que "pertencem" a eles e devem ser punidas por "quererem ser homens", de acordo com um relatório de 2015 do Centro Nacional de Memória Histórica do país.
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Em 2006, o tribunal constitucional da Colômbia descriminalizou o aborto em caso de risco à vida ou à saúde da mulher, de haver anomalias fetais fatais ou se a gravidez for resultado de estupro ou incesto.
Embora os homens trans corram um risco significativo de estupro e possam engravidar como resultado, o sistema legal atual não oferece nenhum apoio.
A legislação que rege o aborto menciona explicitamente as mulheres, deixando de fora as pessoas com outras identidades de gênero que podem engravidar. Essa brecha legal é usada por alguns como uma forma de negar às pessoas de gênero diverso o direito ao aborto.
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Daniel tentou entrar com uma ação judicial contra a decisão do médico, mas foi informado de que o código de ética do médico tinha precedência. “Foi quando percebi que a Colômbia é um livro recheado de códigos, estratégias e caminhos que não valem nada”, disse ele.
María Susana Peralta, advogada do grupo de direitos LGBT Colombia Diversa, explicou que a negação desses direitos aos homens trans é ilegal. “Acreditar que os homens trans estão fora desta lei é discriminatório e injustificado [...] não respeita a dignidade individual”.
Obstáculos para acessar o aborto
Não está claro quantas pessoas trans e não binárias conseguem acessar o aborto na Colômbia, disse Martín Junco, pesquisador da aliança para o aborto trans masculino da Colômbia (ATAC). Os dados oficiais incluem apenas "masculino" e "feminino" como opções de gênero.
É por isso que ATAC e a organização Profamilia decidiram realizar o primeiro estudo colombiano sobre o acesso ao aborto para homens trans e indivíduos não binários. Das 141 pessoas entrevistadas, 10% disseram que precisaram de um aborto em algum momento de suas vidas – mas mais de um terço delas não conseguiram acessar o procedimento.
Ángel Mendoza, da ATAC, disse que a primeira barreira que eles identificaram é a desconfiança no sistema de saúde. “Isso significa que muitas pessoas não vão a um médico adequado, o que os expõe a procedimentos inseguros ou os força a ter filhos indesejados”.
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O estudo também mostrou que 7% das pessoas que precisaram de um aborto não conseguiram acessar o serviço devido à pobreza.
“Muitas pessoas trans estão desempregadas ou não têm dinheiro [suficiente]. A acessibilidade econômica é um grande problema e os serviços privados de aborto são caros," disse Mendoza.
Somos forçados a buscar abortos em provedores clandestinos, colocando nossas vidas em risco
“Somos forçados a buscar abortos em provedores clandestinos, colocando nossas vidas em risco”, explicou Junco. Alternativamente, “força alguns de nós a renunciar aos nossos processos de transição para realizar a maternidade forçada. Isso é prejudicial”.
No caso de Daniel, a negação do aborto resultou em uma gravidez e parto estressantes. Sua mãe é a responsável legal de sua filha, mas ele é muito próximo dela.
“Aprendi a olhar para minha filha de maneira diferente. O que aconteceu comigo me quebrou em pedaços, mas comecei a fazer o que faria com um copo quebrado: estou colando os pedaços novamente.”
Esta é uma tradução editada de ‘Todes Abortamos’, um relatório elaborado no Laboratorio de Historias Poderosas (Laboratório de Histórias Poderosas) pelas Chicas Poderosas (Garotas Poderosas), com apoio da Open Society Foundations. Leia a versão completa em espanholaqui.
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