
Venezuela desmantela sua indústria petroleira e abandona a defesa dos interesses comuns
O preço subsidiado dos combustíveis e o saqueio sistemático da PDVSA levaram o país a uma situação incomum: um país petroleiro que precisa importar enormes quantidades de gasolina.

A Venezuela está passando por um colapso geral dos serviços públicos, o que aumenta o problema da hiperinflação, a precariedade dos salários e as condições de vida em geral. Esse contexto motiva protestos nas comunidades e setores afetados diariamente pela falta de água, gás, eletricidade ou gasolina, situação que ocorre na maioria das cidades do país.
A situação precária da população parece alcançar limites insustentáveis, e os protestos, mesmo sem a capacidade de articular demandas sociais ou políticas, tornam-se um mecanismo de sobrevivência mais do que uma ferramenta para exigir direitos.
A crise política e social que foi instalada no país teve vários picos de conflito em 2016 e 2017; no entanto, à medida que o governo conseguiu superar a pressão, os processos de fragmentação social se aprofundaram. As organizações que articulam sindicatos, guildas, associações de bairro/comunidade, estudantes, entre outros grupos, enfraqueceram tanto quanto as próprias condições de vida da população.
Embora o conflito possa ser muito alto (segundo o OCS, em abril, houve uma média de 20 protestos diários no país), a desestruturação do tecido social limita a articulação coletiva a episódios espontâneos e localizados, gerando um sentimento de isolamento e desamparo entre a oposição. Isso permitiu ao executivo nacional impor uma agenda que acaba sendo uma espécie de totalitarismo político com um "liberalismo chucuto" (atrofiado, incompleto)[i] na esfera econômica.
À medida que a economia do país vem entrando em colapso progressivo nos últimos anos, surgiu uma rede de negócios informais e desregulados que tendem a substituir os papéis de empresas públicas devastadas pela corrupção. Parte dos capitais gerados a partir da corrupção estatal e de delitos criminais são reinvestidos para capturar as poucas fontes de acumulação que permanecem no país.
São consumos baseados em remessas, extrativismo de mineração (ouro, diamantes) [ii], importação de alimentos [ii], entre outros; bem como a nova economia de bodegas (estabelecimentos comerciais de produtos importados inacessíveis à maior parte da população) que surgiram no segundo semestre de 2019, juntamente com a liberalização/dolarização de facto da economia. Agora, com a crise final da empresa estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA), são abertos mecanismos legais para maior privatização da empresa, bem como para a reestruturação do sistema de distribuição de combustível.
O preço subsidiado da gasolina foi historicamente aproveitado por setores do poder através do tráfego na fronteira [iii], gerando um saqueio sistemático que, somado à negligência, corrupção, desinvestimento e endividamento da PDVSA, finalmente pôs fim à produção nacional. Isso nos levou a uma situação incomum: sendo um país petrolífero, precisamos importar enormes quantidades de gasolina.
De fato, como pode ser visto na Figura 1, as bases que sustentam a economia venezuelana se tornaram mais dependentes do mercado internacional, a ponto de a importação de combustíveis minerais e seus derivados, amplamente necessários para apoiar a indústria de petróleo, ter passado de representar 4,2% do total das importações em 2001 para mais de 41% em 2018, enquanto a importação de cereais, que podem ser perfeitamente produzidos no país, cresceu de 1,8% em 2001 para quase 10% em 2019. Estes dados refletem o desmantelamento da estrutura produtiva nacional e a maior dependência atual das importações para sustentar o funcionamento da sociedade.

Diante da escassez, os postos de gasolina foram militarizados com a intenção de controlar o abastecimento de combustível ao qual a população tem acesso, dando prioridade aos setores com maiores recursos e conexões diretas com os altos escalões de poder.
O desmantelamento das instituições e o surgimento e estabilização da dinâmica informal fomentou, nos primeiros meses de quarentena, um mercado paralelo organizado pelos mesmos sujeitos que controlavam os postos de gasolinas, em que o litro de gasolina poderia custar entre US$ 3 e US$ 4. Após três meses, com um país paralisado e sujeito a uma nova rotina de filas, escassez e contrabando, foi implementado um modus operandi semelhante ao da instalação das bodegas a nível nacional: a legalização de grupos de poder que importam e distribuem recursos.
Em 30 de maio, o governo de Nicolás Maduro anunciou o aumento do litro de gasolina subsidiada em US$ 0,025 centavos com uma cota máxima de 120 litros por mês e a dolarização de 200 postos de gasolina no território que cobrará US$ 0,5 o litro. Desta forma, foram tomadas medidas para privatizar o mercado venezuelano de hidrocarbonetos, e parte da indústria de petróleo nacional começou a operar como um mero intermediário e distribuidor de combustível estrangeiro no país.
Assim começa um processo histórico de entrega formal da PDVSA ao capital transnacional estrangeiro (russo, chinês, americano, entre outros) e o desmantelamento abrupto do bem público que sustentou o modo de vida de várias gerações de venezuelanos nas últimas décadas.
A indignação com o aumento geral do preço da gasolina nos postos de gasolina privados se estendeu por todo o país, gerando descontentamento nas filas e protestos espontâneos quando a gasolina subsidiada prometida não chega. O governo atualizou todas as escalas de preços para uma economia dolarizada, com exceção do salário mínimo e do salário base, inferiores a US$ 5 por mês.
Por outro lado, a fim de estimular as importações no âmbito da liberalização da economia, o executivo nacional isentou os setores importadores – incluindo a gasolina –, os investimentos internacionais e até mesmo toda a economia dolarizada que, em fatos concretos, ainda não possui qualquer tipo de regulamentação fiscal.
No entanto, o IVA permanece em um elevado 16%, gerando mais renda para o orçamento nacional do que o imposto de renda. Se libera uma economia dolarizada, administrada pelos grupos de poder que cresceram a partir da administração estatal, enquanto os pequenos consumidores são sobrecarregados com a carga tributária que alimenta esta estrutura.
Uma administração deixada à corrupção e negligência acabou por destruir os serviços públicos, e foi reduzida a uma máquina para distribuir os poucos recursos que possui (títulos, CLAP[iv], folha de pagamento estadual).

O governo, mais do que um arquétipo estatista, apostou em um modelo de expansão e saqueio do Estado, que agora chega a um impasse. A mesma dinâmica de despossessão produziu uma reestruturação do país em direção a um modelo de privatização geral. Isso a partir da acumulação e investimento gerados pelos setores associados à corrupção estrutural que têm ocupado as instituições e a forma de governar no país.
Assim, uma nova elite econômica está sendo formada. Novos grupos de poder que, com o consentimento do governo central, assim como lealdades incondicionais, têm acesso aos poucos recursos do Estado e atuam como o setor privado, constituindo uma espécie de "nova burguesia", uma vez que o caráter totalitário do governo central está sendo fortalecido.
Esta é uma transição regressiva, uma tendência que tem sido viável na medida em que o governo tem sido capaz de manter o controle sobre a população, sob uma mistura de estratégias de violência, clientelismo e autoritarismo. A lógica de saqueio que nos levou à crise é a de uma máquina de extração voraz de recursos humanos e naturais, um processo de acumulação por destruição que conseguiu se instalar nos códigos do poder político.
Mas a partir dessa prática de poder e acumulação há escapes, formas de resistência com base na solidariedade e autonomia, que poderiam produzir contrapesos sociais e – na medida do possível – institucionais para a atual hegemonia governamental.
A necessidade de defender o público, entendido como o "comum", que no contexto descrito até agora, pode ser oposto ao Estado e aos controles burocráticos, é, portanto, clara. O contrapeso começa quando a extração privada de recursos é limitada pela administração comum, que em nossa sociedade se expressa tanto na disputa sobre o valor do trabalho, quanto na disputa sobre as instituições democráticas e os direitos políticos.
*****
[i] Usamos o termo "liberalismo de chucuto" em analogia à frase "nacionalização chucuta" que foi usada para caracterizar a nacionalização petroleira de 1976. Da mesma forma, a formação de uma "burguesia revolucionária" pressupõe a constituição de uma nova elite chamada a apropriar-se dos meios de produção com o consentimento do executivo e em clara subordinação política a ele.
[ii] Até 2016, a Iniciativa Global contra o Crime Transnacional Organizado (GIATOC) informou que 91% do ouro produzido na Venezuela era ilegal. Isso coincide com o declínio da produção e o colapso da indústria de ouro estatal e a expansão desenfreada da mineração em pequena e média escala no sul da Venezuela. https://www.noticierodigital.com/2020/03/torino-economics-productos-importados-de-consumo-final-duplico-su-valor-en-2019-a-41-millones/
[iii] Patrocinado pela isenção de impostos sobre a importação de mais de 1000 produtos para consumo final, a partir de 2019 as importações destes bens aumentaram, principalmente para alimentar a economia de bodegas, novos estabelecimentos dolarizados para a venda de produtos na cesta básica, bem como outros alimentos de luxo e produtos variados em geral https://globalinitiative.net/organized-crime-and-illegally-mined-gold-in-latin-america/ Ao mesmo tempo, deve ser levado em conta que o programa de distribuição de alimentos CLAP também gerou sistemas – acusados de fraude – de importação de alimentos para consumo final, que foi estabelecido em 2017-2018. O portal Armando.info realizou várias investigações sobre as redes de importação em torno do CLAP: https://armando.info/Series/Details/24
[iv] Os CLAPs (Comitês Locais de Abastecimento e Produção) são comitês de distribuição de alimentos que surgiram há quatro anos como um paliativo de emergência para a crise de escassez alimentar que eclodiu na Venezuela em 2016 e, como Nicolas Maduro admitiu, como um remédio para corrigir as falhas na Missão Alimentar, que até então governava a distribuição de alimentos subsidiados. Foram concebidas como uma medida transitória enquanto o Estado venezuelano recuperava sua capacidade de importação, pois naquela época o aparato produtivo nacional já estava tão deteriorado que uma recuperação a curto prazo não era possível. https://efectococuyo.com/especiales/clap-cuatro-anos-de-paliativos-para-una-pandemia-llamada-hambre/
Leia mais!
Receba o nosso e-mail semanal
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy