

Feliz vigilância. Flickr/Wrote. Alguns direitos reservados.
Em termos informáticos uma “falha de segmentação” ocorre quando um programa tenta aceder a uma informação à qual não tem porque ter acesso.
Emoção contra razão. Instinto contra análise. Coração contra cérebro. Ainda não há na nossa história intelectual uma dicotomia que exerça tanto domínio sobre nós como esta. Desde pequenos, ensinam-nos a classificar o que nos passa pela cabeça e a compartimentá-lo agilmente numa destas gavetas. Ao analisar os desafios aos que se enfrentam hoje as nossas democracias, é fácil cair em velhos hábitos.
As revelações de Julian Assange, Chelsea Manning, Edward Snowden e de outros heróis contemporâneos oferecem uma imagem sombria da relação entre os cidadãos e o Estado. Muitos de nós somos agora dolorosamente conscientes de até que ponto os governos são capazes de invadir, registrar e documentar as nossas vidas. Para um grande número de observadores, a imagem distópica resultante é a de uma situação na qual as liberdades politicas e civis foram sequestradas por uma complexa rede de poderosos computadores, algoritmos de busca de dados de última geração e as diferentes agências que os operam, entre cujas responsabilidades não se encontram prestar contas publicamente pelas sus atuações.
É fácil sentir-se angustiados. Como podem sobreviver as nossas liberdades fundamentais perante tal acometida tecnológica?
Como penso argumentar no Foro Mundial para la Democracia deste ano, estamos a prestar um fraco favor às nossas democracias. Obviamente, no ano 2015 é difícil libertar-se da tecnologia. Os computadores, nos seus múltiplos (e cada vez mais discretos) disfarces, estão sem dúvida alguma em todo o lado. Mas a sua capacidade de penetração no mundo de hoje em dia só é comparável à sua ubiquidade nas nossas mentes.
À “tecnofilia” que caracteriza a nossa cultura não lhe custa dotar os algoritmos “inteligentes” e as poderosas máquinas de algo que se assemelha à ação humana. Qualquer história na qual a tecnologia seja um dos protagonistas – quando não é o protagonista – da eliminação ou desaparecimento dos valores que consideramos essenciais consegue sempre convencer o púbico. Parece que nos encontramos agora na etapa de documentar coletivamente até que ponto a vigilância digital está a provocar o fim das nossas democracias.
Queria sugerir que o verdadeiro inimigo das nossas democracias se encontra noutra parte. Evidentemente, o olhar sempre atento dos algoritmos e dos supercomputadores constituírem uma séria ameaça – mas o que é que criou as condições para que fosse possível a sua existência em primeiro lugar? A resposta e dupla, mas em ambos casos não tem que ver com a irresistível sedução da tecnologia, mas sim com o âmbito inevitavelmente muito mais obscuro das emoções e crenças humanas.
Em primeiro lugar, um mundo no qual máquinas controladas pelos braços incontroláveis do Estado tem liberdade para “recolher tudo”, só e possível se os cidadãos vivem com medo. Os nossos líderes políticos ensinaram-nos a ter medo de uma série de ameaças externas e internas mal definidas. Sem isto, todas essas luzes que piscam, localizadas no estado de Utah, não poderiam registar os detalhes mais insignificantes da vida dos cidadãos vulgares.
Um elenco de inimigos em contínua transformação, junto com uma perfeita manipulação da opinião pública por parte dos políticos e a ânsia de grande parte dos meios de comunicação em explorar o medo como método mais eficiente para gerar emoções, mantém alto o nível de ameaça sentida, justificando praticamente tudo. Um público temeroso é aquele que procura instintivamente a proteção paternal do Estado, com independência do invasivo que resulte o comportamento dessa figura paterna na sua ânsia para “manter-nos a salvo”. Noutras palavras, um público temeroso é aquele que esqueceu o significado da palavra liberdade.
Em segundo lugar, uma questão mais ampla, que tem que ver com a forma em que nos relacionamos com o mundo da política, facilitou também em grande medida o crescimento deste aparelho Orwelliano. No que à política se refere, desenvolvemos uma crença pouco saudável acerca da delegação de poder. Concretamente, assimilámos o mito segundo o qual votar cada dois anos assegura de alguma maneira um nível razoável de prestação de contas.
Não importa quantas provas do contrário nos sejam dadas (e para ser justos, nos últimos tempos as provas neste sentido foram extraordinariamente generosas), pois continuamos a alimentar a crença que dispomos de ferramentas de supervisão eficazes para manter os políticos sob controlo.
As práticas abusivas de vigilância não são mais que uma consequência deste grave erro. Esta realidade só mudará quando formos mais além de noção obsoleta de que as eleições são como a pedra angular da representação politica e abracemos coletivamente formas inovadores que deem poder político real aos cidadãos, que é precisamente o tema do meu breve livro: Rebooting Democracy: A Citizen's Guide to Reinventing Politics (Reiniciando a democracia: guia cidadã para reinventar a política).
Resumidamente, quando falamos de vigilância generalizada e do incrível aparelho tecnológico que a torna possível, creio que estamos a confundir os sintomas com a raiz do problema. A tecnologia é, sem dúvida, muito atrativa, mas o verdadeiro problema encontrasse na infantilização do público – ou seja, em converter os cidadãos em menores temerosos, dispostos a delegar o seu poder.
É obvio que deveríamos adoptar sistemas de linguagem cifrada e advogar pela adopção de medidas reguladoras como as que propõe o Tratado Snowden. Estas medidas tecnológicas e reguladoras poderiam ajudarmos a recuperar parte da (s) liberdade (s) que perdemos.
Mas o que não deveríamos perder de vista é o que se encontra na base deste pan-óptico de silício e fibra óptica do século XXI. Tratasse de uma tarefa árdua e difícil, mas não há dúvida de que quando consigamos criar uma cidadania informada e autônoma, essas poderosíssimas máquinas desabarão rapidamente.
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Este artigo publicasse como parte de uma associação editorial da openDemocracy com o World Forum for Democracy (Foro Mundial pela Democracia). As ideias recolhidas durante a reunião anual do Foro em Estrasburgo informam sobre o trabalho da Conselho da Europa e dos seus numerosos sócios no campo da democracia e da governação democrática.
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