
‘Nós tivemos que fugir’
Nove mulheres revelam os motivos que as levaram até o Brasil e quais foram suas experiências no país. Nem todas as histórias de migração são iguais.

Eu nasci em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, mas eu não cresci lá. Meu pai era servidor público no Ministério da Saúde. Nós tínhamos que viajar muito por causa do seu trabalho e vivemos em diferentes partes do país. A última província que nós vivemos foi em Bandundu, lugar onde meu pai nasceu. Em dezembro de 2018 aconteceu um massacre em um lugar chamado Zumbi. Eu não gostaria de dar muitos detalhes, mas o meu pai foi morto durante este massacre. Nós tivemos que fugir, e enquanto fugíamos para longe eu acabei me perdendo da minha família e do meu marido. Nós acabamos seguindo caminhos diferentes.
Junto a um grupo de pessoas, eu fugi, através da floresta, em direção ao Rio Congo. Nós conseguimos chegar a um lugar chamado Brazzaville, mas muitas pessoas morreram pelo caminho. O governo nos deu boas-vindas em Brazzaville, mas toda a jornada foi realmente muito difícil. Eu estava grávida e minha condição de saúde havia piorado. Eu acabei ficando com anemia.
As pessoas em Brazzaville me deram suporte para escapar e conseguir refúgio no Brasil. Mas, a vida no Brasil tem sido difícil. Eu digo isto pois ainda estou enfrentando tempos difíceis. No Brasil, a minha primeira luta veio por causa da rejeição. Eu sou frequentemente rejeitada pelas pessoas. Quando eu cheguei eu vivi em um abrigo com imigrantes venezuelanos, e eles me rejeitaram bastante porque eu sou negra. Eles diziam que negros eram sujos, entre outras coisas. Eu vivi neste abrigo por dois meses, depois eles me mandaram embora, sem nenhuma justificativa.
Eu ainda tenho dificuldades com a língua portuguesa, e eu não sei como me defender sozinha. Mas, com a ajuda de alguns amigos africanos que eu conheci aqui no Brasil, eu consegui um lugar para viver. Eu fui viver com um amigo, mas na verdade ele tinha outras intenções comigo. Ele queria sair comigo e eu não queria isso. Às vezes ele chegava em casa bêbado e tentava me forçar a dormir com ele. Ele eventualmente desistia depois de eu recusar. Eu acredito que a única razão para ele não ter me abusado foi o medo dele perder o seu status regular migratório, mas ele continuava a ficar nu ou trocar de roupa na minha frente. Às vezes, ele saia da cama e ia se deitar comigo, querendo dormir comigo, como se fossemos um casal.
Em um sábado anoite eu cheguei no meu limite. Eu vi que ele realmente abusaria de mim naquela noite, então eu rezei por proteção, pedindo para amanhecer logo para que eu pudesse sair dali. Pela manhã, eu deixei a casa e todas as minhas coisas para traz. Eu não tive alternativa. Eu disse para ele que voltaria em breve, mas eu sabia que não voltaria lá novamente.
Eu tinha uma pequena quantia em dinheiro, oitocentos reais, que eu ganhei fazendo tranças africanas em um shopping. Eu fui falar com o pastor da minha igreja e pedir ajuda para encontrar um lugar para viver. O pastor me recomendou a casa de uma família africana, onde eu poderia alugar um quatro. Eu pagava trezentos reais pelo aluguel e nós dividíamos as outras contas, além da comida. A mulher da casa, contudo, não me deixava cozinhar. Apenas ela podia cozinhar. Tinha dias que ela decidia não cozinhar, e eu ficava sem comer. Uma vez, eu fiquei três dias sem comer comida de fato. Por causa disso, e muitos outros problemas, eu tive que sair daquele lugar também.
Eu não sabia como eu faria para pagar o aluguel do mês seguinte.
Eu não sabia para onde ir, entrei na estação Itaquera (metrô), às cinco horas da madrugada, e lá fiquei. Quando amanheceu, liguei para um irmão da igreja. Eu disse que não tinha nenhum lugar para dormir e nenhum dinheiro. Eu tinha algumas clientes que faziam tranças comigo, mas eu não conseguiria dinheiro por pelo menos uma semana. A esposa do meu amigo não queria que eu fosse para a casa deles, mas ele me levou comida, me ajudou a encontrar um hotel barato e pagou duas noites de estadia. Depois dessas duas noites, outro amigo, também da igreja, me levou para um outro hotel barato e pagou para eu ficar lá por cinco noites. Eu segui trabalhando e consegui encontrar um quarto para alugar.
Eu paguei um mês de aluguel e fui morar nesta nova casa. Eu não sabia como eu faria para pagar o aluguel do mês seguinte, mas eu não tinha escolha. Eu não podia dormir na rua grávida e não tinha como eu ir para um abrigo de imigrantes na cidade – tudo isso estava acontecendo comigo antes da pandemia do COVID-19 começar no Brasil.
Por sorte, eu encontrei alguns brasileiros legais que têm me ajudado bastante. Um deles, uma mulher, fala francês. Ela me deu o seu número de telefone e disse para contatá-la, a qualquer momento, se eu precisasse de tradução. No final de fevereiro, quando eu perdi a minha gravidez, e liguei pra ela. Ela ficou muito triste com o que tinha acontecido comigo e passou a me ajudar. Ela entrou em contato com alguns amigos com os quais ela trabalha em uma ONG – eles são todos Afro-brasileiros – para ver como eles poderiam me ajudar também. Eu fiquei muito doente e comecei a ter hemorragia. Eles me levaram para o hospital e cuidaram de mim porque eu não falo português. Eles viram que eu não tinha comida e nem roupas porque eu tive que deixar todas as minhas coisas na casa daquele homem que tentou me abusar. Eles me deram uma geladeira nova, comida e roupas.
Por alguns meses, durante a pandemia, esses brasileiros me levavam comida e pagavam o meu aluguel. Mas, três meses atrás, eles pararam de pagar o meu aluguel. Eles disseram que a situação financeira está difícil no momento. Eu estou tentando pagar o aluguel com o dinheiro que ganho com as traças que faço, e às vezes, as pessoas me ajudam. Mas mesmo depois que esses afro-brasileiros da ONG pararam de pagar o meu aluguel, quando eu ganho algum dinheiro mas mesmo assim ainda fica faltando no final do mês, eles me ajudam com cem ou duzentos reais.
Muitos dos meus problemas também vêm do fato de eu não ter uma conta bancária no Brasil. Às vezes, as pessoas querem me enviar dinheiro ou querem me dar um emprego, mas quando elas perguntam a minha conta bancária, eu não tenho nenhuma. Eu tentei abrir uma conta, mas o banco pede a Carteira de Registro Nacional do Migrante e eu não tenho uma. Então, desde que eu estou no Brasil, minha vida, especialmente minha situação de moradia, tem sido muito difícil.
M.S., um ano no Brasil
Esta série foi apoiada financeiramente por Humanity United.
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