
Zapatistas: lições de auto-organização comunitária
Tentativas de abolir a polícia e substituí-la por uma justiça comunitária está ganhando força nos EUA. Os zapatistas em Chiapas podem servir de exemplo.

Como a pandemia de Covid-19 mina os sistemas de saúde e as economias mesmo nas nações mais avançadas, redes mútuas e esforços auto-organizados surgiram em todo o mundo como um sinal de solidariedade.
Com o assassinato policial de George Floyd, os Estados Unidos assistiram a uma nova expansão da ideais de auto-organização: de fundos de ajuda mútua para manifestantes a patrulhas cidadãs em Minneapolis e uma zona livre de polícia em Seattle.
Impulsadas pelo do caso de Floyd, tentativas de abolir a polícia e substituí-la por uma justiça comunitária transformadora estão ganhando força nos Estados Unidos, mas há comunidades que têm experimentado com a auto-organização sem recorrer aos estados que os oprimem ou desapossam, como Rojava no nordeste da Síria, Cooperation Jackson no Mississippi, e os zapatistas em Chiapas.
Os zapatistas, em particular, passaram os últimos 26 anos organizando suas comunidades de forma autônoma do Estado em todas as esferas, desde a polícia e o sistema de justiça até a assistência médica, a economia e a educação. Enquanto testemunhamos as mudanças radicais acontecendo em todo o mundo, a experiência Zapatista é mais relevante do que nunca.
Como estudante de novas formas de democracia direta e governo autônomo sem Estado, viajei para Chiapas em dezembro para participar de um programa de um mês chamado "Celebração da Vida", que acabou na celebração do 26º aniversário do Levante Zapatista de 1994, em que agricultores indígenas em Chiapas se rebelaram em defesa dos seus direitos e suas terras contra o Estado e os grandes proprietários de terras.
Com base na pesquisa etnográfica existente, assim como em minhas próprias entrevistas e conversas durante a viagem, exploro nesta peça as características mais instrutivas da organização social zapatista: tomada de decisões de baixo para cima, justiça autônoma, educação, sistemas de saúde e economia cooperativa, na esperança de que possamos nos beneficiar delas à medida que construímos nosso próprio "outro mundo".
As pessoas são as que decidem
Nos 26 anos após a revolta inicial, os Zapatistas se tornaram uma voz proeminente dos povos indígenas do México e construíram um sistema autônomo de autogoverno em territórios não contíguos ao estado de Chiapas, habitados por partidários do movimento.
Um princípio fundamental subjacente ao projeto zapatista, que garante que as instituições autônomas sirvam ao povo, é o de "mandar obedecendo". O conceito implica que os líderes políticos não tomam decisões em nome de sua comunidade como seus representantes, mas agem como delegados da comunidade, implementando decisões tomadas em assembleias locais, um mecanismo tradicional de tomada de decisões.
Estas existem a nível de aldeia e, em contraste com as assembleias tradicionais no México, incluem mulheres, cujo empoderamento está no coração da revolução zapatista. As assembleias elegem delegados para um conselho municipal, o próximo nível na estrutura administrativa zapatista.
Depois, a nível regional, vários municípios autônomos estão representados através de delegados em Juntas de Buen Gobierno (JBG), ou Conselhos de Bom Governo, em contraste com o "mau" governo mexicano. Os membros do JBG servem por três anos em regime de rodízio em turnos de apenas algumas semanas. Tal rotação visa evitar o surgimento de redes clientelistas.

Todas as ideias propostas a nível administrativo superior passam pelo processo de consulta com cada comunidade, após o qual os delegados trazem a opinião de suas comunidades para uma reunião municipal. Há uma forte ênfase na tomada de decisões por consenso, embora isso geralmente signifique participar de reuniões de um dia inteiro em que todos devem ser ouvidos, e a decisão não é tomada até que um compromisso seja alcançado.
Os líderes são escolhidos com base na tradição indígena de carga – uma obrigação de servir a comunidade – e comprometem-se com responsabilidades não remuneradas. As comunidades têm o direito de revogar o mandato daqueles funcionários que não cumprem seu dever de servir o povo.
A formação político-militar EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional), que se organiza clandestinamente desde 1983 e culmina na revolta de 1994 e nas ocupações de terras, existe paralelamente aos três níveis de administração autônoma, dando direção política ao movimento. Embora esteja organizada hierarquicamente, seu órgão máximo é formado por civis eleitos pelas assembleias comunitárias. Além disso, sua presença em assuntos comunitários é limitada a fim de assegurar um genuíno autogoverno democrático das comunidades zapatistas.

Após adotar uma posição rejeitando qualquer ajuda do chamado governo "ruim", os zapatistas assumiram a função estatal de prestar serviços nas comunidades filiadas ao movimento. Isso significava construir seus próprios sistemas comunitários de justiça, educação, saúde e produção.
Sistema de justiça
O sistema de justiça zapatista ganhou confiança e legitimidade, mesmo além dos apoiadores do movimento. É gratuito, realizado em línguas indígenas, e é comprovadamente menos corrupto ou tendencioso em comparação com as instituições de justiça do governo. Mas, mais importante, adota uma abordagem restaurativa, em vez de punitiva, e enfatiza a necessidade de encontrar um compromisso que satisfaça todas as partes.
Enraizado na comunidade, o sistema está organizado em três níveis: o primeiro aborda questões entre os partidários zapatistas, tais como fofoca, roubo, embriaguez ou disputas domésticas. Tais casos são resolvidos pelas autoridades eleitas ou, se necessário, pela assembleia comunal, de acordo com a prática padrão. Na resolução de conflitos, as autoridades funcionam em grande parte como mediadores, propondo soluções para as partes envolvidas. Se não forem resolvidos, os casos vão para o próximo nível municipal, onde são tratados por uma Comissão de Honra e Justiça eleita.
Na maioria das vezes, as penas envolvem serviço comunitário ou multas; as penas de prisão não costumam exceder alguns dias. Como Melissa Forbis explica, a cadeia comunitária geralmente consiste em uma sala fechada com uma porta parcialmente aberta para que as pessoas entrem para conversar e trazer comida. Como o infrator frequentemente tem que pedir dinheiro emprestado aos membros de sua família para pagar multas, estes últimos também estão envolvidos e sua pressão ajuda a evitar futuras transgressões. As questões domésticas e as relacionadas às mulheres são resolvidas por mulheres na Comissão.
Mariana Mora oferece uma ilustração reveladora da abordagem do movimento à punição, documentando um caso em que os Zapatistas emitiram uma sentença de um ano de serviço comunitário por roubo. Os condenados foram autorizados a alternar o cumprimento da pena com o trabalho em suas plantações de milho para que suas famílias não tivessem que compartilhar a punição. A Comissão explicou sua decisão da seguinte forma:
"Acreditamos que se simplesmente os encarceramos, são os membros da família que realmente sofrem. Os infratores simplesmente descansam o dia inteiro na cadeia e ganham peso, mas suas famílias são as que têm que trabalhar na plantação de milho e dar um jeito de sobreviver."
O mais alto nível do sistema de justiça, o de JBG, trata de casos que envolvem principalmente não-zapatistas ou outras organizações políticas locais, geralmente em disputas de terra, assim como autoridades governamentais locais. Não-zapatistas buscam o sistema de justiça autônoma não apenas em caso de disputa com membros das comunidades zapatistas, mas também quando experenciam tratamento injusto por parte de funcionários do governo, caso em que os zapatistas podem decidir acompanhar os requerentes e argumentar em seu nome.
Os zapatistas têm polícia, mas uma que funciona de uma maneira bem diferente de como estamos acostumados. Como Paulina Fernández Christlieb documenta, eles não são armados, fardados ou profissionais. Como outras autoridades, a polícia é eleita por sua comunidade; não é paga e não serve na função de forma permanente. Cada comunidade tem sua própria polícia, enquanto os níveis administrativos superiores – os do município e da região – não. Descentralizada e desprofissionalizada, a polícia serve e está sob o controle da comunidade que os elege.

Educação
O sistema educacional zapatista está igualmente enraizado na comunidade. As escolas autônomas são administradas pelos chamados "promotores da educação", principalmente jovens locais que ensinam em suas próprias comunidades, sob a supervisão de um comitê de educação eleito por uma assembleia local.
Desde o lançamento do sistema educacional autônomo, os zapatistas realizam programas de treinamento para capacitar promotores educacionais e desenvolver um currículo em colaboração com grupos de solidariedade, ONGs e voluntários externos, bem como em consulta com a população local. Hoje, as comunidades têm profissionais próprios que treinam novos promotores. Como outros cargos de autoridade e responsabilidade, os promotores não recebem salários e a comunidade geralmente os ajuda a cultivar suas plantações de milho.
O currículo está incorporado na vida da comunidade e foi projetado para preparar uma nova geração para tarefas de governança e auto-suficiência, incluindo tópicos como autonomia, história, agroecologia e medicina veterinária. As aulas são ministradas tanto em espanhol como em línguas indígenas, com ênfase na preservação das tradições e conhecimentos locais. A comunidade participa ativamente da determinação da metodologia e do currículo, conforme ilustrado pelo comentário de um promotor educacional de uma das comunidades, citado por Bruno Baronnet:
"Consultamos nosso comitê de educação e nossa assembleia sobre o verdadeiro conhecimento que é importante para nosso povo. São as pessoas que decidem e respeitamos sua opinião, mesmo que às vezes eu discorde, como aconteceu recentemente na assembleia, quando fui ordenado a parar de brincar com as crianças no período escolar, porque alguns pais acham que não é possível aprender enquanto se diverte. Não sabia como dizer a eles que isso não é inteiramente verdade, mas vou convencê-los da próxima vez" (tradução da autora do francês).

Cuidado da saúde
Os zapatistas também desenvolveram seu próprio sistema de saúde, embora ainda seja usada a ajuda de especialistas não-zapatistas. A maioria das comunidades possui um voluntário local – um promotor de saúde – que recebe treinamento em medicina tradicional e moderna em centros regionais de saúde organizados pelos zapatistas. Esses voluntários prestam serviços básicos em um posto de saúde local.
O tratamento mais avançado está disponível em clínicas localizadas nos zonas mistas e em alguns dos centros municipais. A clínica em Oventic, por exemplo, é uma das mais sofisticadas: oferece cirurgia básica regular, atendimento odontológico, ginecológico e oftalmológico; possui um laboratório, uma oficina de ervas, uma dúzia de leitos para internação e está equipado com ambulâncias. Comitês de coordenação de saúde, como os de educação, existem em cada nível administrativo, o que garante a participação das comunidades na administração do sistema de saúde autônomo.

Em comunidades mistas, onde os zapatistas coexistem com os não-zapatistas, os serviços autônomos são abertos a todos. Me disseram, por exemplo, que pais não-zapatistas enviam seus filhos para escolas autônomas porque sabem que são de melhor qualidade. O mesmo se aplica às clínicas zapatistas, uma vez que a falta de médicos nas comunidades indígenas é comum.
Produção: Para todos tudo, para nós nada
A operação do governo autônomo, escolas e clínicas, bem como outros projetos em comum, é financiada com a renda de cooperativas e coletivos de terras. Estes estão no centro da aspiração dos zapatistas de alcançar a auto-suficiência econômica do Estado e de construir uma economia baseada na distribuição equitativa de recursos.
Embora cooperativas e coletivos coexistam com a terra familiar e o empreendedorismo individual, a participação no trabalho coletivo é rotativa. Também existem bancos populares na forma de fundos rotativos que fornecem empréstimos com juros baixos aos membros da comunidade como base de apoio. Esses bancos geram fundos investidos em novos projetos coletivos. Alguns projetos coletivos são apenas para mulheres e visam proporcionar uma oportunidade para que ganhem confiança e participem da vida social de suas comunidades.

Outro mundo é possível
Os desafios que o movimento zapatista enfrenta são muitos. Elas variam de deserções como resultado da campanha de cooptação do governo através de subsídios e programas de melhoria, a dependência de financiamento por ONGs solidárias e a persistência de tendências patriarcais e desigualdades internas.
No entanto, apesar dos desafios, em 26 anos de luta pela autonomia, os zapatistas construíram acordos sociais funcionais baseados na democracia de baixo para cima, cooperação e justiça comunitária, que colocam o bem-estar da comunidade acima do benefício individual.
Por meio desses acordos, as comunidades zapatistas garantiram os direitos, a proteção e as necessidades básicas que o Estado mexicano negou ou deixou de fornecer. Como apontou recentemente Dora Roblero da organização Frayba, que acompanha os zapatistas desde o início, os zapatistas podem ser a única comunidade no México preparada para resistir à pandemia, graças à sua auto-organização de serviços básicos há anos.
Como os estados não protegem ou prestam serviços a tantos cidadãos em todo o mundo, a experiência Zapatista oferece uma alternativa inspiradora, centrada na comunidade.
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