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América Latina 20 anos após o 11 de setembro: uma oportunidade desperdiçada

Com os EUA distraídos, líderes regionais tiveram a chance de construir uma sociedade justa, mas fracassaram

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Francesc Badia i Dalmases
10 Setembro 2021, 12.01
Forças de segurança disparam gás lacrimogêneo durante protestos contra o governo em Bogotá, Colômbia, em 28 de julho de 2021
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Reuters/Nathalia Angarita

O mundo estava mudando antes de 11 de setembro de 2001, mas no momento em que os aviões derrubaram as torres em Manhattan, a história começou a acelerar na direção errada. A nítida imagem da queda do império americano se fixou na retina da humanidade.

Os noticiários matinais em toda a América Latina não podiam acreditar no que as redes gringas transmitiam ao vivo, enquanto a população da região, entre estupor e schadenfreude, percebeu que seu vizinho do norte era vulnerável.

A geopolítica passou a ser regida por outras forças. A América Latina deixou de ser o quintal da Guerra Fria para se tornar o poço sem fundo da China – o pasto para o extrativismo ilimitado trazido pela globalização.

Enquanto Washington e o Pentágono travavam guerras no Afeganistão e no Iraque, o Brasil emergia como uma potência global, e a robusta diplomacia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou a promover alianças alternativas, como o BRICS. Juntos, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul apresentaram uma alternativa ao G7. Embora a aliança não fosse sólida, dadas as profundas diferenças entre os participantes, o BRICS conseguiu mostrar que existia vida além da hegemonia norte-americana e europeia e que outros espaços geopolíticos, inclusive o do Sul Global, eram reais.

A guerra contra as drogas

A Guerra ao Terror liderada pelos Estados Unidos pôs de lado uma guerra anterior sangrenta e inútil que havia desencadeado, embora uma que ainda esteja sendo travada na América Latina: a guerra contra as drogas. Seguindo a mesma lógica de militarizar uma luta que deveria ser uma questão de policiamento direcionado, os governos dos Estados Unidos armaram fortemente as forças de segurança latino-americanas e as treinaram no uso de violência excessiva. Essas práticas são agora usadas contra populações civis, mas não são nada eficazes contra gangues criminosas e o tráfico de drogas. Na Colômbia, por exemplo – país que, junto com o México, é o epicentro dessa guerra – a polícia é comandada pelo Ministério da Defesa e não pelo Ministério do Interior.

Ao inundar a América Latina com armas e dólares, a guerra contra as drogas tornou-se um negócio que levou à perpetuação de guerrilhas anacrônicas. Nascidos durante a Guerra Fria, esses grupos se adaptaram entre uma guerra à outra – perderam seus ideais revolucionários e se transformaram em máfias sanguinárias, envolvidas até o cerne na extorsão e no tráfico de drogas.

A militarização das forças de segurança civil trouxe consigo a violenta repressão aos protestos sociais, recorrentes em um continente onde a desigualdade é enorme e cada crise econômica empurra uma incipiente classe média de volta à pobreza.

Enquanto os Estados Unidos dedicaram todas as suas forças para perpetuar sua ordem no Oriente Médio, a China aproveitou o vácuo de poder na América Latina para consolidar sua inserção econômica na região, que é discreta, mas profunda. O aumento da demanda por matérias-primas nas quais o continente é tão rico elevou o preço dos minerais, hidrocarbonetos, madeira e soja, e impulsionou as exportações de carne e peixe.

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Onda rosa

A América Latina rompeu economicamente com o Consenso de Washington prevalecente e ingressou na chamada onda rosa, ou guinada à esquerda, que levou políticos de esquerda ao poder. Mas os governos ‘neodesenvolvimentistas’ da Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, Peru e Equador não souberam aproveitar. Em vez de redistribuir a riqueza por meio de impostos e consolidar instituições democráticas e serviços sociais universais, distribuíram a renda do extrativismo na forma de ajuda e subsídios. Eles não queriam incomodar os bancos e os grandes empresários, para que seus interesses não fossem ameaçados pela implantação de uma agenda verdadeiramente progressista e redistributiva, que nunca chegou à região.

Os governos de esquerda latino-americanos também não incomodaram o governo de Washington, que passou da Guerra ao Terror a 'pivô asiático' de Obama, seguido pelo isolacionismo errático de Trump. Os EUA praticamente abandonaram a América Latina à sua sorte. Esta última, porém, desperdiçou o momento com políticas sociais tímidas financiadas quase exclusivamente por rendas de commodities e não por impostos.

Essas políticas se mostraram insustentáveis ​​ao longo do tempo, fazendo com que governos caíssem assim que uma nova crise econômica chegasse. A onda rosa recuou, a direita voltou e nada de substancial mudou.

Venezuela

Um caso separado foi a Venezuela, que, confiante em suas enormes receitas do petróleo, embarcou com Hugo Chávez em uma revolução de inspiração cubana e emoção romântica que deslumbrou os esquerdistas de poltrona. A reação dos EUA foi tão contraproducente como sempre. Ao ceder às provocações da retórica antiimperialista dos chavistas, aplicando uma obsoleta política de sanções e tentando cercar o país para sufocá-lo, só conseguiu entrincheirar o problema e contribuir para a catástrofe económica e humanitária que Nicolás Maduro vem gerenciando.

A China incorporou a Venezuela como fornecedor de sua crescente demanda por petróleo e injetou oxigênio na forma de enormes empréstimos cujo retorno espera pacientemente obter um dia. A Rússia, por sua vez, viu no chavismo mais uma oportunidade para sua estratégia de desestabilizar o Ocidente, não importa como ou onde.

Talvez uma nova rodada de negociações entre o governo da Venezuela e a oposição, sediada no México e facilitada mais uma vez por diplomatas noruegueses – mas desta vez com a aprovação do governo Biden – possa aliviar o desastre humanitário e político que se abateu sobre o que já foi o país mais rico da região. Para fazê-lo, a Venezuela, um petro-Estado falido que se tornou narco-Estado, terá que superar sua cubanização, sua narrativa de "resistir e conquistar". Isso vai ser difícil.

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Na prática, Maduro está enterrando o socialismo: não há regulação de preços, o dólar circula livremente e há incentivos às exportações.

México e América Central

Durante os últimos 20 anos, a América Central fez algum progresso, especialmente na consolidação do estado de direito após décadas de guerras civis e violações em massa e flagrantes dos direitos humanos. No entanto, também falhou em combater a corrupção sistêmica, construir sociedades inclusivas ou reduzir a pobreza estrutural e a violência criminal que empurra ondas persistentes de migrantes para o norte. Nos últimos anos, tem havido um claro retrocesso democrático, com tentações autoritárias em todos os lugares, da Nicarágua de Daniel Ortega a El Salvador de Nayib Bukele.

O México, por sua vez, consolidou seu papel de apêndice hiperdependente dos Estados Unidos e não conseguiu exercer sua soberania para conter os mesmos velhos problemas: corrupção, impunidade, desigualdade, pressões migratórias e violência extrema.

A grande distração

A grande distração que o 11 de setembro causou aos Estados Unidos foi uma oportunidade para a América Latina se libertar da tutela de seu irmão mais velho do norte.

Os EUA encontraram um novo inimigo pós-Guerra Fria no terrorismo islâmico, mas acabaram perseguindo um fantasma. Se, 20 anos depois, acordar do sonho imperial, descobrirá que é um país mais fraco em todas as frentes, tendo abandonado a bandeira da democracia, da liberdade e do progresso que ergueu após a vitória na Segunda Guerra Mundial. Isso pode ter lhe dado uma certa superioridade moral sobre a China ou a Rússia no pós-guerra, mas abriu caminho para o capitalismo belicista e selvagem com tendências autoritárias, que teve seu nadir no grotesco Donald Trump.

A América Latina tem um caminho árduo pela frente. Hoje está dividido e confuso, dominado por lutas internas entre velhas oligarquias e grupos de poder que relutam em se modernizar (renunciar à corrupção e pagar impostos) apesar da crescente pressão social. Isso não se resolverá com a repressão violenta dos protestos, mas com propostas construtivas.

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A batalha contra a emergência climática

Talvez agora seja lançada a grande batalha existencial do século 21. Hoje estamos diante da última oportunidade de enfrentar uma verdadeira crise global: a emergência climática.

O continente americano, uma gigantesca reserva de recursos naturais, água doce e biodiversidade, deve abandonar com urgência seu destrutivo novo extrativismo que tem Jair Bolsonaro como seu maior expoente, com sua inescrupulosa agressão contra a Amazônia. Mas não é só Bolsonaro. Da Argentina à Colômbia, todos os outros países fecham os olhos enquanto enriquecem os suspeitos de sempre: os herdeiros da colonização.

É hora de reconhecer que a absurda reação exagerada dos americanos ao 11 de setembro – por mais cruel, espetacular e humilhante que tenha sido – significou um revés de décadas na história da humanidade.

Duas décadas depois, precisamos de um grande pacto continental para que a América Latina deixe de ser o poço sem fundo da China e se transforme em uma sociedade livre e democrática que garanta o futuro das duas novas gerações.

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