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Buenos Aires, muito longe de Atenas

Buenos Aires está muito longe de Atenas, mas o sofrimento dos Gregos está muito perto do coração dos Argentinos. São muitos aqueles que aplaudem a coragem de fazer frente ao FMI e aos seus sócios, nem que seja para acabar voltando à mesa das negociações.English.

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Francesc Badia i Dalmases
9 Julho 2015
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8 de julho de 2015. European Union 2015 - European Parliament. Flickr. Some rights reserved.

A coincidência na Argentina de eleições municipais e provinciais/regionais em vários lugares do país, incluído na capital, Buenos Aires, com a celebração do #Greferendum na Grécia demonstrou até que ponto os acontecimentos que tiveram lugar a finais de 2011, que desembocou no “default” da divida estrangeira, condicionam ainda hoje em dia fortemente o debate político argentino. E não só a nível retórico. Ter resistido às normas do consenso de Washington, ter desafiado o FMI e ter procurado uma via económica alternativa constitui uma mistura de orgulho nacional, determinação política e capacidade de resistência que deram sentido à épica nacional durante todos este anos.

Num exercício clássico, que tende a repetir-se com regularidade no âmbito político latino, nenhum dos candidatos ofereceu qualquer sintoma de derrota durante a noite eleitoral. Em função da interpretação de cada de um, e tendo em conta os resultados obtidos, todos ganham. Desta forma os candidatos levaram a cabo um exercício de capitalização dos resultados em seu favor, acendendo debates entre analistas televisivos, independentemente de qual fosse a tendência ideológica da cadeia que estivesse a emitir o desenlace eleitoral. Uma vez superara a grande deceção da derrota -- esta sim indiscutível-- da equipa nacional na Copa América na noite anterior, tinham que passar a veda (proibição de vender bebidas alcoólicas desde a véspera das eleições até horas depois da publicação dos resultados) exercendo com efusão outro dos desportos nacionais prediletos: a controvérsia política.

Na cidade autónoma de Buenos Aires, três candidatos lutavam pela presidência do governo (Câmara Municipal) e os prognósticos da grande maioria das sondagens, que incluíam uma margem de erro de 3 pontos, acertaram no resultado, algo que não aconteceu no caso da Grécia, onde ninguém antecipou uma diferença de 20 pontos a favor do NÃO. Ganhou o candidato conservador do PRO (Proposta Republicana), Horácio Rodriguez, com quase 47,5% dos votos, seguido pelo jovem progressista da coligação ECO, Martin Lousteau, com um 22,22% e pelo kirchenista Mariano Recalde, com 18,72%, que tinha merecido a sua promoção politica e o apoio do movimento “La Cámpora” e da Presidente Fernández de Kirchner, sobretudo devido ao crédito acumulado por ter reflutuado a companhia aérea nacional, “Aerolíneas Argentinas”, dizendo alguns que à custa de ter gastado uma fortuna próxima aos 2.000 milhões de dólares, aproximadamente 20.000 milhões de pesos argentinos em função do cambio oficial.

 A companhia aérea tinha sido vendida durante época das privatizações que teve lugar nos anos 90 e os seus novos proprietários descuidaram a necessária—e muito custosa-- atualização tecnológica aeronáutica em troca de um benefício a curto prazo. Esta lógica de desinvestimento, levada ao extremo, acabou provocando uma crise de segurança aérea que colapsou aeroportos e radares, que impactou negativamente no turismo e que acabou por determinar a renacionalização da companhia em 2008. Este caso tornou-se no símbolo paradigmático da perversidade do emagrecimento caprichoso do Estado e a gestão especulativa do mercado, servindo para demonstrar aos argentinos a determinação do governo não sua tentativa de restabelecer o orgulho nacional e a viabilidade das instituições nacionais. A meio da longa campanha eleitoral, que se podem entender como primárias de cara às eleições presidenciais previstas para outubro, a televisão pública repetiu inúmeras vezes, aproveitando a máxima audiência que garantiam os jogos da Copa América, um spot publicitário enaltecendo o estado atual das “Aerolínas Argentinas”, funcionando como uma campanha encoberta em favor do candidato Recalde.

O facto de que Larreta, atual presidente da câmara e sempre favorito, não conseguisse superar o 50% dos votos, tal como alguns vinham prognosticando, teve pelo menos duas consequências:  forçar uma segunda volta para o próximo 19 de julho (balotaje na terminologia local) e dar argumentos à oposição para apontar-lhe que se encontrava por debaixo do esperado e que, em consequência, tinha perdido apoios. A euforia na sede do PRO, com uns espetaculares passos de dança protagonizados pela equipa de Larreta e capitaneados por um eufórico Claudio Macri, candidato opositor às eleições à presidência em novembro, denotaram claramente o contrário. Apesar da coreografia quase impostoramente planeada, conseguiu transmitir bom humor e êxito aos entusiasmados seguidores numa mise-en-scène ao mais puro estilo norte-americano.

No campo de Lousteau, um jovem que, apesar de ter aparentado falta de solidez durante a campanha, parece ter uma próspera carreira política pela frente, havia também alegria por dois motivos: ter ficado numa aceitável segunda posição, e ter superado de maneira suficiente clara o candidatos oficialista, Recalde, forçando assim ser ele o candidato que se enfrentará a Larreta no consequente “balotaje”, obtendo desta forma uma importante tempo extra de exposição mediática nas duas semanas que restam de campanha até ao dia 19. Com o cabelo revoltoso e um ar intelectual, muito portenho, Lousteau poder ter um papel relevante na segunda volta.

Mas onde se realizou um exercício de triunfalismo mais voluntarista foi no campo de Recalde, candidato do Frente para a Vitória, quem executou sem demasiada convicção a pirueta retórica de afirmar que o seu resultado confirmava prognóstico de uma vitória Kirchenista nas presidenciais, nas quais o candidato designado pela presidente, no meio duma dura polémica entre os peronistas, foi Daniel Scioli. Apesar disto, não estava Scioli na capital ao lado de Recalde, mas sim ante os meios de comunicação na província nortenha de “La Rioja”, onde o candidato do FPV tinha obtido uma clara vitória para continuar no cargo de governador. Mas onde Recalde se mostrou mais efusivo (rodeado das caras sérias dos seus colaboradores diretos) foi ao lado do popular, apesar de para muitos, arrogante, jovem ministro de economia Daniel Kichilof, estrela ascendente do Kirchenismo, que se somava satisfeito às celebrações que tinham lugar simultaneamente em Atenas, com o argumento de que desmontavam uma vez mais a vitória do povo e da democracia frente as forças neoliberais dos credores externos, tal como tinha acontecido na Argentina anos atrás. Reafirmar que a aposta do presidente Nestor Kirchner no ano 2002 tinha sido a correta era importante para a épica Kirchenista num momento de dúvida internas e felicitar efusivamente os gregos pela sua valentia, determinação, dignidade e orgulho…uns valores que querem seguir encarnado o projeto político do Frente para a Vitoria.

As alusões à Grécia não foram, em nenhum caso, improvisadas, mas sim presentes no final de campanha, sobretudo devido a convocatória “en catastophe” do referendo sobre as inaceitáveis condições impostas pelos credores para renovar o crédito, por parte do primeiro-ministro Alexis Tsipras. Efetivamente, grande parte do capital político do Kirchenismo teve como origem a determinação que demonstrou para contradizer os campeões do Consenso de Washington, com o FMI à cabeça. A aplicação de receitas políticas neoconservadores por parte dos governos argentinos dos anos 90 revelou-se posteriormente desastrosa, obrigando a dar um golpe sobre a mesa dos credores, declarando um default sobre a divida. Uma atuação sem precedentes no cenário internacional ocidental e de consequências naquele momento inimagináveis. Ainda hoje, passado mais de 12 anos, há questões não respondidas relativas aos “fundos abutres”, relativas à falta de indicadores económicos fiáveis e relativas ao “dólar blue.”

Um grande coro de vozes escandalizadas levantou-se naquele momento, afirmando que seria inviável uma Argentina fora dos mercados internacionais de capital e que, num curto espaço de tempo se demonstrariam as consequências calamitosas de tal decisão. Mas para o espanto de muitos, os anos que se seguiram demonstraram a viabilidade das políticas de reinvestimento social e fortalecimento da economia através duma intervenção decidida do Estado para garantir a redistribuição da riqueza e a criação de emprego, num pais com recursos suficientes, sobretudo dada a sua enorme capacidade de produção de soja, azeite e cereais. Um contexto global de aumento dos preços destes produtos a partir de 2000 assim como a demanda impulsada pelo crescimento continuado da China por cima dos dois dígitos contribuíram a confirmar o milagre económico e social dos anos de Nestor Kirchner.

A transposição direta do contexto Argentino de há uma década à questão da crise da divida na Europa e as receita de austeridade e de reajuste fiscal austero, num contexto de construção de um complexo projeto de unificação europeu que tem que lidar com sérios desequilíbrios internos, não é direta e pode albergar tentações demagógicas. O contexto ideológico, que é o que na realidade motiva o aplauso a Atenas desde Buenos Aires, está claro: o neoliberalismo, interessadamente e erroneamente conotado com a União Europeia, que se teve como a receita única depois da euforia do fim da guerra fria, durante o chamado “momento unipolar”, causou estragos na economia dos países em desenvolvimento, uma vez que aumentaram o desemprego e a dívida externa, obrigando-os a reagir, não só na Argentina, mas sim em toda a América Latina (entre 2002 2012, 11 dos 14 países da região elegeram governos progressistas). A volatilidade dos mercados financeiros impactou fortemente no México em 1997, posteriormente nos tigres asiáticos, Rússia e finalmente Brasil, para acabar afetando duramente a Argentina.

Mas na Europa foi a Grande Recessão, iniciada em 2008, que pôs em evidência as debilidades estruturais e sobretudo, os problemas das economias do sul, que tinha aderido à onda neoliberal de emagrecimento do estado, do crescimento rápido sustentado no endividamento excessivo e, em alguns casos como da Espanha, a uma arriscada especulação imobiliária potenciada pela ausência de uma mínima rede de segurança. Hoje, a Grécia arrasta problemas sistémicos de difícil solução e, apesar de ter razão em oferecer resistência a um ajuste desmedido, com uma sociedade exausta e um sistema bancário insolvente, não parece que haja alternativas a uma importante reestruturação, cujo custo devem assumir solidariamente, junto ao Banco Central Europeu, os países mais expostos. Mas tudo isto será inútil se não se encontram em políticas alternativas uma solução para reativar a economia helena que permite voltar a pôr em funcionamento o seu motor de crescimento, atualmente gripado.

A Argentina teve a sorte de se encontrar na periferia e não estar, como está a Grécia, no meio do furacão Europeu, rodeado por atores difíceis tais como os Balcãs, a Rússia, Turquia e o Meio Oriente. A Argentina teve também a vantagem de ter imensos recursos naturais num pais extenso e fértil, assim como uma população capaz, apesar de endurecida pelos golpes das recorrentes crises económicas e políticas -incluída uma ditadura militar despiedada e sanguinária (1976-1983), que dizimou, com mais de 30.000 mortos e desaparecidos, um sector da população, que encarnava um imenso potencial de inovação e criação de ideias e modelos.

Observando o debate político em ambos países, parece evidente a existência de múltiplos paralelismos. A paixão com que se discute de política com a taxista e o ministro, o porteiro e a presidente, é parecida. Mas existe uma grande diferença: assim como a riqueza na Argentina está em si mesma e na sua capacidade de administrá-la eficientemente e de forma sustentável, a Grécia carece de recursos naturais que explorar e comercializar no mercado global das “commodities” e tem pouca margem de manobra macroeconómica, já seja dentro ou fora da UE.  A Grécia precisa da solidariedade europeia para sair do escuro período no qual, entre todos, a colocámos. Mas além de exigir flexibilidade, tem que seduzir os seus sócios europeus que acusam a Syriza não só de esquerdismo, mas também de pouca seriedade e um alto nível de improvisação nas suas propostas.

A Argentina, no Sul do Sul, com imensas pastagens, abundante água em cordilheiras e glaciares, e consideráveis reservas energéticas no subsolo, pode adaptar-se às circunstâncias da economia global por pouco que consolide políticas inteligentes e sustentáveis numa região plena de futuro. A Grécia, como engrenagem ancestral do Mediterrâneo, berço da Razão e da ideia de democracia, é uma terra árida e montanhosa, fragmentada em ilhas que oferecem turismo e pouco mais, composta por uma oligarquia e clero pouco dados a pagar impostos, deve adaptar-se ao seu contexto europeu, porque, fora dele, resta-lhe ou o dinheiro russo injetado através de um gasoduto futuro, ou o dinheiro fácil da China, cujo impacto a médio prazo é difícil de avaliar. Melhor ficar perto dos seus mitos fundacionais, que são também os da velha Europa.

Ao fim e ao cabo, a nova esquerda está entusiasmada pelas ágoras da participação política e oxalá que esteja a aprender a converter dito entusiasmo em políticas públicas de regeneração, institucionalização e mudança, como o fez a Argentina há mais de dez anos atrás, por mais que agora dito país austral precise, perante os sinais de esgotamento do Kirchenismo, voltar a reinventar-se.

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