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Brasil: 1964 X 2018, um paralelo

O que sabemos é que a sociedade brasileira permitiu que os militares interviessem, declarando a tática era necessária para proteger sua amada democracia, e o resultado foram 21 anos de ditadura. Español English

Manuella Libardi
27 Outubro 2018
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A sociedade brasileira apoiou o golpe militar de 1964.

A mídia alegou que a intervenção era necessária para impedir um golpe do presidente João Goulart. O medo pode ou não ter tido fundamento. Já que Goulart não tentou deu um golpe, nunca saberemos.

O que sabemos é que a sociedade brasileira permitiu que os militares interviessem, declarando a tática era necessária para proteger sua amada democracia, e o resultado foram 21 anos de ditadura.

“Ressurge a Democracia!“ anunciou a manchete do O Globoum dos veículos mais importantes do país. 

“Vive a nação dias gloriosos”, continua o artigo publicado dia 2 de abril de 1964, um dia após a instauração do novo governo. “Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sôbre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem”.

Passados 54 anos, o cenário é surpreendentemente semelhante. Os brasileiros de ambos os lados do espectro político estão lutando em nome da democracia, mesmo quando um dos lados claramente não o seja.

O Globo estava longe de ser o único. A publicação foi acompanhada pelo O Estado de S. PauloFolha de S.PauloJornal do Brasil e o Correio da Manhã, para citar apenas alguns. A maioria dos brasileiros estava comemorando, como ficou evidente pelas demonstrações e marchas que aconteceram em todas as grandes cidades.

Passados 54 anos, o cenário é surpreendentemente semelhante. Os brasileiros de ambos os lados do espectro político estão lutando em nome da democracia, mesmo quando um dos lados claramente não o seja.

Os que apoiam o candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro afirmam que os 13 anos de governo sob a liderança do Partido dos Trabalhadores levaram o Brasil a uma das piores crises econômicas que já atingiu o país. Unindo-se a Bolsonaro no segundo turno está Fernando Haddad, que também é do PT, o que marcaria um quinto mandato consecutivo para o partido.

Cenário econômico atual

A aversão ao PT, por mais justificada que seja, significa apenas que o Brasil está mais próximo de 1964 do que gosta de admitir (ou ver). O que o país está enfrentando agora é um cenário que envolve dois lados familiares. O PT governou o Brasil durantetempos de colheita farta, mas também durante tempos duros.

Sob o PT, milhões de brasileiros saíram da pobreza, o crescimento da renda dos assalariados baixos aumentou (entre 2001 e 2012, a renda dos 5% mais pobres cresceu 550% mais rápido do que os 5% mais ricos) e o país exibiu uma queda na desigualdade (de um coeficiente GINI de 0,59 em 2001 para 0,53 em 2012).

Mas o partido também governou o Brasil durante uma brutal recessão econômica que se tornou um dos mais lentos ciclos de retomada econômica da história. Em 2015, o país exibiu um crescimento de 3,5%, que despencou para -3,6% em 2016, algo que o país não vivencia desde 1990.

Das oito recessões econômicas que atingiram o Brasil desde a década de 1980, quando o país voltou a um modelo democrático, o mais recente marca a crise da qual o Brasil está sofrendo mais para se recuperar.

O cenário econômico de 1964

A rápida industrialização de meados do século XX transformou o Brasil rural em uma sociedade urbana em crescimento. O número de trabalhadores industriais cresceu para 2,9 milhões em 1960, mais que dobro do nível de 1940, quando o número era de 1,6 milhão. A indústria chegou a representar 25,2% do PIB, superando a parcela da agricultura, com 22,5%.

Mas essa industrialização também significou uma urbanização rápida e descontrolada. Em 1960, 44% dos 70 milhões de brasileiros viviam em áreas urbanas. A inflação disparou, subindo de 12% em 1949 para 26% em 1959 e chocantes 39,5% em 1960.

Nesse cenário, a economia tropeçava para sustentar o desenvolvimento. As poupanças estavam depreciadas, os credores se recusavam a oferecer empréstimos de longo prazo, as taxas de juros caíram e o governo se recusava a realizar programas modelados de acordo com os do Fundo Monetário Internacional.

Além disso, a desigualdade continuar disparando, com 40% da renda nacional indo para 10% da população, 36% para os próximos 30% e 24% divididos entre os 60% mais pobres dos brasileiros. Os governos locais tiveram dificuldade em formular um plano econômico que satisfizesse os credores e mantivesse o comércio fluindo ao mesmo tempo.

Violência hoje

Para piorar o cenário, o Brasil recentemente bateu seu próprio recorde de homicídios, chegando a 63.880 assassinatos em todo o país em 2017, um aumento de 3% em relação ao ano anterior. Crimes associados ao narcotráfico estão desenfreados, e a maior parte das vítimas vem de comunidades marginalizadas, que estão legitimamente frustradas com a situação. Eles foram deixados para trás e têm todo o direito de estarem desapontados com o partido que supostamente tinha seus melhores interesses como base.

Os brasileiros são reféns em seus próprios bairros e comunidades. Eles não se sentem seguros andando pelas ruas em que cresceram. O único candidato que oferece uma solução rápida para o seu pedido é Bolsonaro.

Infelizmente, sua solução não é apenas inviável e enganosa, é também perigosa. Bolsonaro prometeu armar a população para que os cidadãos possam se proteger, embora estudos mostrem que mais armas resultam em mais violência, e não o contrário.

Mas o que as populações marginalizadas ouvem é alguém que fala com eles e enxerga sua situação quando os partidos esquerdistas aparentemente os negligenciam e os jogaram nas mãos do tráfico de drogas.

O PT falhou, assim como os movimentos sociais esquerdistas, o que deixou um vácuo que progressivamente passou a ser ocupado por forças direitistas, particularmente forças de extrema-direita, que sabem exatamente como transformar questões reais em mentiras incendiárias para favorecer sua causa.

A ameaça "comunista", 2018

Qualquer um que já tenha conversado com um eleitor de Bolsonaro já ouviu a palavra "Venezuela" repetida como o mantra. Se a PT vencer, o Brasil virará a próxima Venezuela, afirmam. A extrema direita brasileira luta uma batalha quase quixotesca contra a venezuelização do Brasil.

Qualquer um que já tenha conversado com um eleitor de Bolsonaro já ouviu a palavra "Venezuela" repetida como o mantra. 

Por meio de "notícias falsas" divulgadas principalmente via WhatsApp - ato pelo qual Bolsonaro está sendo investigado - a direita nacional promove a noção de que o PT é equivalente ao governo chavista de seu vizinho a noroeste, pois os dois eram de fato aliados a princípio dos anos 2000.

Esse medo gerou polêmica sobre o retorno do comunismo. Tanto que Haddad optou por deixar a vermelho característico do seu partido, substituindo-o pelo verde, amarelo e azul da bandeira após uma primeira rodada difícil.

Cada instituição e pessoa que critica Bolsonaro, ou “O Mito” como seus seguidores o chamam, foram chamados de “comunistas”, incluindo liberais conhecidos como The Economist, que chamou o candidato de extrema direita de “a mais recente ameaça da América Latina” em sua edição de setembro, e do cientista político e economista Francis Fukuyama, conhecido por sua defesa das democracias liberais e do capitalismo de livre mercado.

“Muitos brasileiros parecem pensar que sou comunista porque estou preocupado com a presidência de Bolsonaro. E você acha que os americanos estão polarizados ... ”Fukuyama twittou no início deste mês.

O medo de cair em armadilhas parecidas a da Venezuela, com uma inflação de 1.000.000% e emigração em massa, pode não ser totalmente infundado. No entanto, o candidato com maior probabilidade de realizá-lo não é Haddad ou o PT, mas o próprio Bolsonaro. Assim como Hugo Chávez antes e depois Nicólas Maduro, Bolsonaro é um populista. Apesar de pertenceram a lados opostos do espectro político, o populista brasileiro é mais semelhante aos chavistas do que seus seguidores gostam de admitir.

Como Chávez, Bolsonaro leva uma campanha que critica o sistema político e ataca o chamado establishment. Essa estratégia populista, embora eficaz nas pesquisas, tende a levar a uma crise institucional, especialmente na América Latina, como mostra a história com os exemplos de Perón na Argentina, Fujimori no Peru e Rafael Correa no Equador.

A semelhança mais marcante de Bolsonaro com Chávez é sua ligação com os militares.

Mas, mais importante, a semelhança mais marcante de Bolsonaro com Chávez é sua ligação com os militares. Bolsonaro, ex-capitão da reserva do Exército, se referiu publicamente à ditadura militar como um período "glorioso" na história do Brasil, e elogiou que, sob a ditadura militar, o Brasil desfrutou de "20 anos de ordem e progresso".

Além disso, para seu companheiro de chapa, Bolsonaro escolheu o general aposentado do Exército Hamilton Mourão, que já mostrou que não tem medo de enfrentar Bolsonaro.

A ameaça comunista, 1964

Logo após a crise dos mísseis de Cuba, que marcou o auge da Guerra Fria, o mundo se encontrava fortemente dividido entre o bloco comunista do Leste e o bloco Ocidental capitalista. Embora o Brasil fosse parte do chamado Terceiro Mundo, ou estados não alinhados, as tensões também foram sentidas na sociedade brasileira, particularmente pela a elite financeira que usou a “ameaça vermelha” para influenciar os votos de acordo com os seus interesses.

A falta de vontade da elite em compartilhar os benefícios da riqueza do Brasil com a maioria, deu lugar a uma crise que, no início da década de 1960, vinha sendo imposta desde as camadas de cima. Temendo uma revolta em massa, supostamente instigada pelo comunismo internacional, as elites, incluindo a mídia, espalharam o medo de que o esquerdista João Goulart fosse transformar o Brasil em Cuba.

A administração de Jânio Quadros (janeiro-agosto de 1961) e depois de João Goulart (1961-64) voltou a abraçar o termo povo em referência aos pobres rurais, o que gerou a imagem de um crescente proletariado pronto para se juntar a um governo reformista contra o privilégio da elite e o imperialismo dos Estados Unidos.

A ameaça de uma suposta revolta popular abalou a sociedade brasileira, levando os Estados Unidos a injetar dinheiro diretamente nos estados,  contornando o governo federal, numa tentativa de ajudar as elites capitalistas, uma ajuda que os brasileiros aceitaram com gosto. E temendo um regime semelhante a Cuba, os brasileiros instauraram uma tropa assassina no poder.

 O que você dirá em 50 anos?

 Os brasileiros que cresceram depois da redemocratização já perguntaram aos seus pais e professores sobre a segunda ditadura civil-militar que trucidou o país. Como nós permitimos que isso acontecesse? Independentemente do resultado, estamos vivendo como o processo acontece hoje.

 

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