
Um policial com um machado de assalto na Favela do Macaco, no Rio de Janeiro, Brasil, uma missão anti-gangue responsável pela violência e crime na cidade. Imagem: Humberto Ohana / PA Images, Todos os direitos reservados.
“Se o Paraíso existe em algum lado do planeta, não poderia estar longe daqui!“
Stefan Zweig, “Brasil, país do futuro“, 1941
O futuro da democracia no Brasil depende de uma decisão emocional. Mas que nada, o que decidirá as eleições este mês será o estado de ânimo dos brasileiros. Estes se encontram presos entre a vergonha, o medo e a decepção, três sentimentos que influenciam negativamente na hora de tomar decisão, impelindo a agir com o estômago antes que com a cabeça.
Já faz algum tempo que a política mundial se baseia na emoção, deixando a razão de lado.
Já faz algum tempo que a política mundial se baseia na emoção, deixando a razão de lado. Através daí, foram entrando os populismos, esgueirando-se pela direita e pela esquerda, levando a política a um novo campo que rompe com os antagonismos entres opções progressistas e conservadoras. Agora, cada vez mais, se alcança o poder desde os extremos que inspira a polarização, a desinformação, e o antissistema.
Nessa dinâmica, a construção do inimigo, do eixo “nós” contra “eles”, e da necessidade de um “homem forte” que venha por ordem no caos e na corrupção e que tiro o país da decadência e da violência aparece como uma tendência global: Putin, Xi Jinping, Trump, Erdogan, Modi, Duterte... a lista é longo e afeta quase todos as potências.
O discurso de respostas simples frente a problemas complexos, que na Europa propõe o nacionalismo populista, também constrói uma fenda entre os eleitores. A maré anti-imigração y antissemita de Orban na Hungria, a de retomada de controle proposta pelos pró-Brexit, da panaceia da independência na Catalunha, o anti-europeísmo do governo compartilhado pelos populismos da Liga do Norte (neofascista) e o Movimento Cinco Estrelas (esquerda antissistema) da Itália.
Nessas eleições, o Brasil está apostando o seu futuro próximo, mas principalmente o seu futuro a longo prazo. E a aposta está entre amadurecer a sua democracia ou acelerar o retrocesso autoritário que já está em marcha.
Nessas eleições, o Brasil está apostando o seu futuro próximo, mas principalmente o seu futuro a longo prazo. E a aposta está entre amadurecer a sua democracia ou acelerar o retrocesso autoritário que já está em marcha.
O Brasil está apostando o seu futuro. E a aposta está entre amadurecer a sua democracia ou acelerar o retrocesso autoritário que já está em marcha.
Mas, pelo seu potencial disruptivo, o caso do Brasil é único. O impacto do resultado eleitoral enviará uma poderosa onda expansiva por toda a região. Existe hoje no Brasil uma grande inquietude e incertidão, e os sinais de preocupação e alarme se sentem através de toda a sociedade brasileira, desde as elites paulistas e cariocas até os campesinos do Paraná; desde as organizações negras baianas às comunidades indígenas da Amazônia.
É inegável que estamos em frente a uma bifurcação que marcará as próximas décadas. Nessas eleições, o Brasil está apostando o seu futuro próximo, mas principalmente o seu futuro a longo prazo. E a aposta está entre amadurecer a sua democracia ou acelerar o retrocesso autoritário que já está em marcha.
O grande “momentum”
O Brasil vinha vivendo o seu grande “momentum”. Entrando no ciclo expansivo dos preços das commodities no início do século XXI, o Brasil elegeu um presidente carismático e progressista, Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. Superando o pânico inicial que a sua amplia vitória (61%) pode haver causado nos mercados, Lula aplicou uma “socialdemocracia popular” efetiva a curto prazo, repartindo superávits, e iniciando reformas necessárias que tiraram milhões de brasileiros da pobreza extrema.
E essas conquistas foram alcançadas praticamente sem mexer na estrutura fiscal, financeira e produtiva brasileira, o que fez com que Lula se congraçasse com as elites, que suspeitavam das suas origens sindicalistas e populares. Y estas elites, graças ao sistema ultrafragmentado do presidencialismo parlamentário brasileiro que permite a presença de até 27 partidos na câmara e força coalizões de geometria variável, não perderam o controle em nenhum momento. As elites souberam acomodar-se e acharam uma maneira de continuar lucrando as custas de corromper ainda mais o sistema e acelerar o impulso extrativista sem limite.
A nível internacional, a sua presença protagonista durante a “onda rosa” que a América Latina conquistou com governos de esquerda a partir do ano 2000 levantou a cavalaria, e o Brasil do Lula da camisa vermelha se converteu no seu cavalo de batalha.
Além disso, sua presença protagonista nos BRICS deu ao Brasil uma liderança indiscutível, e uma diplomacia brasileira qualificada ocupou inteligentemente o espaço da esfera multilateral reservado ao sul emergente, ou ao sul global, como é denominado agora.
Mas o ciclo positivo já vinha de antes. Depois de duas décadas de ditadura militar (1964-1985), o Brasil abordou uma transição organizada, gerando em 1988 uma sólida Constituição Federal que resultou mais progressista do que eram os seus redatores e empreendendo em um período de democratização progressiva, conhecido como a Nova República.
Esse período resultou na consolidação de uma institucionalidade funcional e moderna, apesar dos déficits de gestão e da dificuldade intrínseca de governar um país enorme (o quinto maior do mundo depois da Rússia, Canadá, China, e Estados Unidos), de dimensão continental.
O resultado é um país relativamente descentralizado graças a sua estrutura federal e com imensas riquezas naturais cobiçadas por poderosos depredadores, assim como culturalmente rico e tremendamente diverso geográfica e etnicamente.
No continente mais desigual do mundo, o poder real permanece sempre à espreita e, no fundo, não acredita na democracia.
A consciência da sua potencia econômica e dos seus jovens recursos humanos que com que a “terra do futuro” que descrevera Stefan Zweig, pouco antes de suicidar-se em Petrópolis, em 1942, deu lugar ao entusiasmo na sociedade brasileira, que acreditou que a nação diversa e mestiça baseada no progresso e na tolerância finalmente se concretizaria. Pero no continente mais desigual do mundo, o poder real permanece sempre à espreita e, no fundo, não acredita na democracia.
O Lula sobreviveu à grande recessão de 2008. O PIB brasileiro caiu de 5% a -0.1% em 2009, mas a recuperação foi imediata e espetacular, chegando aos 7.5% em 2010 e caindo para 4% no final do seu mandato em 2011. Dilma Rousseff, designada pessoalmente pelo líder indiscutível do Partido dos Trabalhadores (PT), e que havia sido chefe do seu gabinete durante seis gloriosos anos, ganhou as eleições nas costas do carisma do seu antecessor.
A tempestade perfeita
Mas a vitória da Dilma coincidiu com um ciclo econômico em baixa e com o ressurgimento dos escândalos de corrupção que envolveram a petroleira estatal Petrobrás e que vierem à tona durante a operação Lava Jato, minariam o arco político brasileiro que acabaria por levar também o ex-presidente Lula.
Suas políticas provocaram também, em junho de 2013, um protesto e mobilização em massa e conjunta das classes populares e classes medias de direita e esquerda. Esse “momentum” se perdeu e a atmosfera de euforia e otimismo vivida na era Lula desapareceu.
A Dilma, que se mostrou uma governante medíocre, com um discurso muito mais de esquerda do que o pretendia implementar, foi reeleita de maneira imprevisível e por uma margem mínima, em uma época que PIB já havia caído para 0,5%. O desgosto da oligarquia foi monumental.
A partir daí o Brasil se deparou com uma tempestade perfeita: à fúria das elites se adicionou o descontentamento das classes médias e populares. A recessão econômica se instalou com força (-3,5% em 2015, algo que não se observada desde 1990, e -3,6% em 2016). O fracasso da Copa do Mundo de futebol que o país sediou em 2014, onde a seleção Canarinha – encarnação do mito da energia, diversidade e criatividade brasileira desde os tempos do Pelé – se viu pisoteada pela Alemanha que ganhou de 7 a 1.
Finalmente, com o avance detonador das investigações da Lava Jato, surgiu o escândalo da construtora Odebrecht, com tentáculos por toda a região e que representou apenas a ponta do iceberg da relação preserva entre a concessão irregular de infraestruturas e financiamento político, herdada, segundo os analistas, dos tempos da construção de Brasília nos anos 60.
O golpe foi o primeiro sinal de que a oligarquia havia perdido a paciência com o PT, marcando o fim de um ciclo de democratização iniciada com a constituição de 88. Foi realmente um golpe contra a democracia.
A tempestade, que continuou ganhando força com as dificuldades para terminar as obras ciclópicas e ruinosas para os Jogos Olímpicos de 2016, culminou em um golpe parlamentário contra Rousseff no mesmo ano.
A desculpa usa foi a de que ela havia permitido irregularidades na apresentação das contas públicas, mas o golpe foi o primeiro sinal de que a oligarquia havia perdido a paciência com o PT, marcando o fim de um ciclo de democratização iniciada com a constituição de 88. Foi realmente um golpe contra a democracia.
Durante o vergonhoso voto que pôs o prego final no caixão de Rousseff, os deputados puderam dar um pequeno discurso justificando o seu voto. Entre eles, se destacou um deputado heterodoxo, pouco conhecido apesar de estar há 28 anos no congresso. Esse evangélico radical, recentemente convertido e desertor de pelo menos nove partidos políticos, dedicou o seu voto a um antigo militar da ditadura que havia sido responsável por torturar a própria presidente Rousseff.
Com esse gesto, Jair Bolsonaro, que foi paraquedista e capitão do exército que foi expulso por ser conflitivo, demonstrou que é alguém sem nenhum escrúpulo. Alguém disposto a qualquer coisa.
Jair Bolsonaro, que foi paraquedista e capitão do exército que foi expulso por ser conflitivo, demonstrou que é alguém sem nenhum escrúpulo. Alguém disposto a qualquer coisa.
Depois da destituição de Rousseff se instalou o governo provisional de Michel Temer, encarregado de aplicar as reformas express que as receitas neoliberais sempre exigem e de incentivar a persecução judicial sistemática do seu grande rival e candidato mais popular, Lula da Silva, para encobrir a sua própria vergonha, entre outros motivos. Os implacáveis juízes de Curitiba – um estado rico e branco do sul – instruem a causa e terminam o trabalho em março quando prenderam o Lula, que foi condenado em segunda instância a 12 anos e meio de prisão.
Apesar de ter apelado a sentença, Lula foi proibido de ser candidato pelo tribunal eleitoral em agosto, em um segundo baque para o PT.
Uma campanha dura
O mal-estar no Brasil não parou de aumentar e ninguém conseguiu deter os múltiplos atropelos, abusos e violência cotidiana, com 155 assassinatos diários, que somam mais de 30 mil até agora em 2018 (o ano anterior foi estabelecido em 63.880 assassinatos).
A consciência de que, desta vez, a própria democracia está em jogo, alarma enormemente os atores políticos e intelectuais brasileiros.
Mas a execução obscura da vereadoro do Rio Marielle Franco, símbolo do Brasil mais esperançoso, popular e diversificado, mãe solteira negra das favelas do Rio, defensora dos direitos LGTBI e da fiscalização da violência da polícia militarizada contra a população negra e pobre, desencadeou uma onda de indignação e protestos que atravessaram as fronteiras do país.
O assassinato de Marielle representa um duro golpe para o sonho do Brasil aberto, progressista e diversificado e aberto a oportunidades. Seis meses depois, o Museu Nacional do Rio de Janeiro se incendiou e séculos de patrimônio cultural e etnográfico desapareceram.
A consciência de que, desta vez, a própria democracia está em jogo, alarma enormemente os atores políticos e intelectuais brasileiros, que observam com espanto o flerte das elites e da classe média, que jogam com a ideia ter Bolsonaro como presidente, e percebem uma corrente de simpatia para com ele entre as classes populares. Alguns porque sabem que, com um regime autoritário, seus negócios milionários prosperarão e seus privilégios aumentarão, outros porque sonham que um homem forte e ultraconservador acabará com a recessão e retornarão a "ordem e progresso" que existiu em passado mítico, talvez na ditadura, cujo sunho repressivo quase ninguém mais lembra.
Armada com espadas, a campanha eleitoral está sendo agitada, agressiva, tensa. O esfaqueamento do candidato Bolsonaro o obrigou a fazer a maior parte da sua campanha de uma cama de hospital, onde ele não saiu até o final de setembro. Porém, ele se tornou uma vítima, aumentando sua popularidade para 28%.
Com Lula na prisão, o PT nomeou Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo, um homem culto, articulado e moderado que, partindo de muito baixo, tentou subir nas pesquisas, chegando a 23%, e quem será o candidato na disputa da presidência com o Bolsonaro no dia 28 de outubro.
Isso propõe um cenário de polarização máxima no segundo turno, onde um antipetismo visceral, que tem permeado entre as classes populares decepcionado como o PT já que o partido está sendo culpado por todos os males, pode ativar um voto de protesto que ajudará a dar a maioria à extrema direita de Bolsonaro, favorável ao modelo de Pinochet de ultraliberalismo e ditadura. E isso é muito perigoso para a democracia.
Evitar a catástrofe
Nessa onda de voto emocional que está circulando pelo mundo, e quando as grandes potencias da democracia, os Estados Unidos e a Europa, estão corroídos por tentações populistas de todos os tipos – acompanhados por uma forte corrente de direita – a esperança de que o Brasil caia do lado do México que acaba de votar pelo candidato progressista Manuel López Obrador (AMLO), e não do lado da Colômbia, que votou no Uribista Iván Duque, é muito pequena.
Grandes doses de concordância são necessárias para construir um país mais funcional e continuar com a modernização que a Nova República não pôde completar.
A ameaça de Bolsonaro é muito pior do que o que a direita percebe em AMLO ou a esquerda em Duque. No Brasil, grandes doses de concordância são necessárias para construir um país mais funcional e continuar com a modernização que a Nova República não pôde completar.
Mas se, como é provável, a emoção acabar vencendo a razão e Bolsonaro vencer, tempos muito sombrios se aproximam em um país que, apesar desse pesadelo inconcebível, ainda é cheio de luz e futuro. Mobilizações como a das mulheres em sua campanha #EleNão dão uma luz de esperança.
Independente do candidato, para enfrentar o autoritarismo, será necessário que todos os democratas, independente do lado, façam uma frente única e evitem tamanha catástrofe.
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