
A Covid-19 na fronteira Brasil–Venezuela: o bom, o mau e o feio
Uma situação já difícil para os refugiados em termos de integração e saúde pode se transformar em uma tragédia humanitária explosiva.

Desde 2015, meio milhão de venezuelanos cruzaram a fronteira com o Brasil, ou seja, aproximadamente 10% do total estimado de venezuelanos deslocados ao redor do mundo, seja para se estabelecer no país (mais de 250.000) ou em trânsito para outros países.
A maioria cruzou a fronteira entre os dois países através das cidades de Santa Elena de Uairén (Venezuela) e Pacaraima (Brasil), chegando no estado brasileiro menos populoso: Roraima.

Roraima tem uma infraestrutura frágil: com pouco mais de 600 mil habitantes, e longe dos centros econômicos brasileiros, tem uma economia dependente de recursos federais e serviços governamentais inadequados, tendo, por exemplo, 4 leitos de UTI por 100 mil pessoas (os mais baixos de todo o país). O Coeficiente de Gini de Roraima é de 0,567, o que mostra desigualdade social, sendo que mais de30% da população do estado é considerada pobre. Roraima é o estado mais setentrional do Brasil e faz fronteira com o sul da Venezuela.
A combinação da vulnerabilidade intrínseca da migração forçada, como no caso dos venezuelanos, com o contexto de desafios sociais e econômicos em Roraima já apresenta um cenário desafiador em tempos normais, mas à luz da pandemia de Covid-19, a situação é potencialmente uma catástrofe humanitária.
O bom
Nesse contexto, vislumbres de esperança surgem principalmente de duas perspectivas: o fato de que os venezuelanos podem obter status migratório regular no Brasil e o fato de que houve respostas específicas para a situação na região, derivadas de ações institucionais e da solidariedade dos próprios venezuelanos.
Em relação à situação migratória, em 2017, o Brasil adotou diferentes medidas para a população venezuelana. Por um lado, permitiu aos venezuelanos desfrutar de autorizações de residência, que beneficiaram cerca de 125 mil pessoas, seguindo dados de novembro de 2019. Por outro lado, o pedido de status de refugiado no Brasil é também uma possibilidade que vem sendo reforçada desde junho de 2019, quando o Brasil reconheceu a existência de graves e generalizadas violações de direitos humanos na Venezuela, permitindo assim a aplicação da definição regional de refugiado da Declaração de Cartagena de 1984.
Até o momento, mais de 37 mil venezuelanos foram reconhecidos como refugiados no Brasil como resultado dessa iniciativa. As políticas brasileiras em relação ao status migratório dos venezuelanos, embora não sejam perfeitas, têm sido descritas uma boa prática.
Em relação às respostas específicas à situação da Covid-19, é pertinente ressaltar, de forma preliminar, que o acesso à saúde no Brasil é universal (artigo 196 da Constituição Brasileira), independentemente da condição migratória. No entanto, a falta de leitos disponíveis é um problema contínuo.
Nesse sentido, uma primeira iniciativa institucional de destaque é a construção de um hospital de 1.200 leitos (área de proteção e atendimento) pela Operação Acolhida (detalhada abaixo), com o apoio do ACNUR.
Além disso, a pandemia de Covid-19 levou ao reforço das condições de higiene nos abrigos, à construção de espaços onde venezuelanos que estão doentes, precisam de assistência ou têm que ser isolados podem ser abrigados e ao aumento da presença de médicos da Organização Internacional de Migração (OIM) em Roraima.
Com relação às ações dos próprios venezuelanos, vale ressaltar sua participação na construção do hospital e as ações preventivas nos abrigos.
O mau
Apesar dessas boas iniciativas, a fronteira da pandemia de Roraima trouxe consigo novos desafios, com algumas respostas menos positivas, levando-nos ao lado ruim.
Um sistema de saúde já superlotado era um ponto de discórdia contínuo, assim como a falta de oportunidades de emprego
Em geral, a integração, incluindo o acesso a serviços, é um desafio para os migrantes no Brasil, o que também é verdade para os venezuelanos. Mesmo que o Brasil possa ser considerado como tendo uma posição de vanguarda na proteção legal dos venezuelanos na região, a grave vulnerabilidade social desta população é a norma. O cenário torna-se ainda mais complicado quando se considera a já mencionada realidade do estado de Roraima.
Esse cenário complexo provocou tensões entre a população nacional e venezuelana, com uma escalada de xenofobia e discriminação. A situação não pôde ser amenizada mesmo com a presença de organizações internacionais que tentaram melhorar a integração. As primeiras iniciativas de recepção foram particularmente precárias e insalubres. Um sistema de saúde já superlotado era um ponto de discórdia contínuo, assim como a falta de oportunidades de emprego.
Em resposta a esse contexto, o governo brasileiro criou, em 2018, a Operação Acolhida – liderada pelo Governo Federal com forte participação do Exército – com foco primeiro na gestão de fronteiras, o que levou à criação de espaços de abrigo com mais recursos e funcionários, bem como a colaboração com ONGs e organizações internacionais.
Como segundo passo, a Operação Acolhida iniciou a interiorização dos venezuelanos, ou seja, sua redistribuição em outros estados brasileiros, com o objetivo de diminuir a pressão sobre o estado fronteiriço.
A Operação Acolhida e suas diversas ações têm sido consideradas boas práticas, embora não têm sido capazes de eliminar conflitos sociais e xenofobia (mesmo por parte do governo local), o que pode ter resultados desastrosos à luz da Covid-19.
O feio
Além desses aspectos, más práticas também podem ser observadas em termos de fronteiras, proteção de grupos vulneráveis, respostas governamentais e a atitude geral em relação à Covid-19.
Fronteiras fechadas não impedem a passagem; apenas criam condições mais arriscadas e perigosas
A primeira foi o fechamento das fronteiras, sendo a do Brasil com a Venezuela a primeira a ser fechada. O raciocínio apresentado foi que as condições sociais na Venezuela permitiriam que a Covid-19 atingisse números alarmantes. A medida parece inadequada, pois poderia ser interpretada como uma violação da não-devolução e, na prática, fronteiras fechadas não impedem a passagem; apenas criam condições mais arriscadas e perigosas e acesso inseguro para pessoas que precisam de proteção internacional.
A medida também é desproporcional, pois outros meios menos nocivos (como quarentenas) poderiam ser postos em prática para controlar a Covid-19.
Atender às necessidades dos grupos indígenas na Venezuela, especialmente os Warao, é outro desafio, pois eles têm necessidades específicas à luz da Covid-19, como acesso à informação sobre a doença e a prevenção em sua própria língua e iniciativas específicas de saúde. Tanto grupos indígenas brasileiros quanto venezuelanos parecem estar à margem das respostas à pandemia.
Houve também um comandante da Operação Acolhida que sugeriu que suas tropas se expusessem deliberadamente à Covid-19, a fim de desenvolver imunidade. Isso é consequência de relatos de medidas de prevenção inadequadas e ao fato de que o número de militares infectados em Roraima é proporcionalmente alto e pode colocar ainda mais pressão sobre o sistema de saúde, especialmente porque o governo de Roraima não entregou equipamentos essenciais para combater a pandemia, o que significa que o hospital de 1.200 leitos ainda não foi aberto.
Observa-se, portanto, que os refugiados venezuelanos em Roraima estão enfrentando maiores desafios diante da Covid-19. Alguns já existiam antes da pandemia, outros são peculiares à situação atual. A dinâmica de integração (incluindo a saúde) em Roraima deve ser pensada para além das fronteiras.
O direito internacional dos refugiados e os direitos humanos devem ser levados em conta para que as necessidades dos refugiados e outros migrantes forçados sejam adequadamente atendidas, em tempos normais ou durante uma pandemia.
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