Beyond Trafficking and Slavery: Feature

A escola é a solução para o trabalho infantil? Nem sempre

Pergunte às crianças da África Ocidental por que trabalham e muitas dirão: 'Para ter uma educação'. Isso deveria fazer-nos refletir

Mélanie Jacquemin
28 Dezembro 2021, 12.01
Crianças em poço público no Mali
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Riccardo Lennart Niels Mayer/Alamy Stock Photo

Eu gostaria de poder apoiar a ideia de que a escola cria uma barreira ao trabalho infantil e talvez seja até a solução para eliminá-lo. Essa percepção comum e generalizada é certamente uma fonte de esperança para qualquer pessoa desanimada com a prevalência de crianças trabalhadoras no mundo hoje. Mas as evidências empíricas mostram um cenário mais complexo.

À primeira vista, escola e trabalho podem parecer mutuamente exclusivos. Na África Ocidental, por exemplo, a maioria das crianças que trabalham não está na escola formal e a maioria das crianças totalmente matriculadas na escola formal não trabalha paralelamente. Mas se olharmos mais de perto para a vida das crianças que trabalham, vemos um relacionamento mais complexo em ação. Por um lado, é claro que a escola em si não é suficiente para proteger as crianças de terem que trabalhar. E, por outro lado, para muitos jovens trabalhar é essencial para a continuidade da sua formação, e não apenas do ponto de vista financeiro.

Este texto oferece aos leitores a chance de ouvir o que as crianças e adolescentes trabalhadores na África Ocidental nos contam. Suas respostas a perguntas em relação a sua escolaridade e o que poderia ser feito para apoiar sua educação e integração na sociedade nos mostram como é restritivo pensar na escola e no trabalho como dois reinos (estritamente) separados.

As vozes incluídas neste artigo vêm de pesquisas sócio-etnográficas realizadas no Senegal entre 2015 e 2020 em vários setores da economia informal urbana: foram entrevistados cerca de 60 adolescentes – meninas e meninos, principalmente com idades entre 12 e 20. Eles são pequenos comerciantes, empurradores de carroças, carregadores de bagagem, engraxadores de sapatos em mercados ou estações de trem, trabalhadores multifacetados em pequenos restaurantes, empregados domésticos (ajudantes familiares assalariados ou não), aprendizes de costura, soldagem, carpintaria, oficinas de mecânica e motoristas.

Seus relatos mostram uma grande diversidade de experiências de trabalho, pontuais ou duradouras, mas raramente lineares, às vezes a partir dos nove ou dez anos. Essas pesquisas complementam outras pesquisas sócio-etnográficas realizadas nos últimos 20 anos com crianças trabalhadoras na África Ocidental. Ao ouvir essas vozes, podemos compreender melhor a situação das crianças trabalhadoras, como protegê-las melhor e, talvez, finalmente imaginar as condições de um mundo em que o trabalho infantil prejudicial não tenha meios para prosperar.

Conhecimento sem oportunidade

Que não haja engano: poucas famílias hoje, e especialmente poucas crianças, ignoram a importância da escolaridade. Para meninas e meninos, a aprendizagem é um ingrediente necessário em qualquer projeção para um futuro (melhor). Ainda assim, no Senegal, mais de 47% das crianças em idade escolar (6 a 16 anos) não estavam na escola em 2013.

Essa desconexão não pode ser explicada apenas por razões de escassez econômica. Múltiplos fatores estão interligados: econômicos, certamente, mas também socioculturais, sociodemográficos, linguísticos, sanitários, psicopedagógicos e políticos. Quando as ouvimos, as crianças descrevem as dificuldades e contradições do sistema escolar tal como existe hoje. Muitas vezes, elas acreditam que o sistema não se encaixa em suas aspirações e obrigações pessoais ou familiares, mas ao mesmo tempo acreditam que em seu funcionamento (e mau funcionamento) está o caminho para a ascensão social.

Só podemos entender as circunstâncias que levam ao cenário intolerável pedindo às crianças que expliquem a dinâmica que orienta suas decisões

Lamine, por exemplo, passou cinco anos na escola porque tanto ele quanto sua mãe desejavam que ele estudasse. Aos 13 anos, no entanto, ele percebeu que ainda estava lutando para se expressar em francês. Isso era um problema, já que a matrícula de inscrição equivalia a dois sacos de arroz, o que permitia que sua mãe alimentasse seus três irmãos mais novos por dois meses. Dessa forma, ele explicou a ela que seria preferível que ele procurasse outro caminho para a integração profissional e um futuro melhor. Como mostra a história de Lamine, mesmo que o discurso das crianças trabalhadoras sobre trabalho e escola possa parecer contraditório, muitas vezes contém uma precisão lúcida em contextos em que o Estado de bem-estar social é praticamente inexistente.

As crianças trabalhadoras dizem que toda criança deve aprender, mas entendem que o acesso à educação está condicionado aos deveres, papéis e status que as crianças ocupam dentro da família. Para honrar esses deveres e seguir um curso que esperam ser educacional, algumas crianças e adolescentes optam por abandonar a escola e seguir um caminho diferente.

A pandemia de Covid-19, que levou ao fechamento de escolas por longos períodos em muitos países do Sul Global, aumentou a percepção de que a escola é apenas uma das várias opções educacionais. Estão em andamento estudos para documentar as múltiplas adaptações que estão acontecendo no sistema escolar diante da crise sanitária que provou ser duradoura. Entre os caminhos alternativos que as crianças e famílias seguem, o trabalho infantil é provavelmente central, uma hipótese que as evidências iniciais parecem confirmar.

Trabalhar para continuar a educação

Não há dados suficientes para dizer se, em nível macro, é o abandono da escola que empurra as crianças para o trabalho ou se as crianças estão deixando a escola para começar a trabalhar. Mas os dados de nível micro dos últimos 20 anos documentam como o trabalho infantil dá origem, na prática, a uma série de situações contínuas.

De um lado estão os abusos e a violência sobre os quais lemos nos jornais. Na outra extremidade, muito menos reconhecida, estão os processos de socialização, as relações contratuais e as possibilidades educacionais ou mesmo profissionais que as crianças obtém através do trabalho. Só podemos entender as circunstâncias que levam ao cenário intolerável pedindo às crianças que expliquem a dinâmica que orienta suas decisões.

Ao mostrar que estão dispostos a trabalhar para aprender, as crianças aumentam a probabilidade de terem a oportunidade de fazê-lo

O que é surpreendente em seus relatos é a forte ligação que estabelecem entre o trabalho que realizam, muitas vezes em condições adversas e sem proteção social, e um projeto educacional que se empenham em realizar. Esta ligação é particularmente saliente em pelo menos dois tipos de casos. Um caso diz respeito a alunos, muitas vezes com apenas dez anos de idade, que trabalham durante as férias escolares. Por mais escassos que sejam seus ganhos, o dinheiro que recebem ajuda a pagar as mensalidades e materiais escolares.

Esse é o benefício econômico, mas também existem benefícios sociais cruciais. Trabalhar durante as férias, dizem, demonstra seu compromisso físico e moral para acessar recursos adicionais e construir seu futuro. Isso garante seu status social e o de sua família, o que por sua vez fortalece o apoio de seus pais e parentes para a sua escolaridade. Em suma, ao mostrar que estão dispostos a trabalhar para aprender, as crianças aumentam a probabilidade de terem a oportunidade de fazê-lo.

O outro caso diz respeito a aprendizes, tanto meninas quanto meninos, em formação profissional não remunerada em oficinas informais por um longo período, às vezes por até seis anos. Esses estágios geralmente são realizados juntamente com outras obrigações familiares, especialmente para as meninas, que devem participar do trabalho doméstico. Tentar cumprir os dois conjuntos de obrigações pode significar dias muito longos para as crianças, especialmente para as meninas. Mesmo assim, cientes do quão limitadas são as oportunidades de treinamento e da importância desse treinamento para se ter uma profissão no futuro, muitos adolescentes concordam em assumir o encargo. Mais uma vez, sua disposição para o trabalho cria uma posição de apoio – social, econômico, simbólico – tanto do empregador quanto da família para seu projeto educacional e de vida.

Crianças como verdadeiros atores sociais

O que pode ser feito hoje para apoiar a educação de todas as crianças, incluindo as crianças que trabalham? As crianças e adolescentes trabalhadores expressam necessidades específicas e trazê-las à tona permite destacar algumas de suas propostas concretas. Em conjunto, as propostas formam duas grandes linhas de ação que as crianças trabalhadoras não desejam separar: tanto as condições educacionais quanto as condições laborais precisam mudar.

Para melhorar suas condições de trabalho, as crianças com quem falamos enfatizaram a importância de se estabelecer um contrato (mesmo que oral) com quem as contrata. Para que tenha peso, dizem que é necessária a presença de uma testemunha socialmente credenciada, por exemplo, um chefe de bairro, um líder religioso, uma associação, etc. Os pontos mais importantes do contrato a serem especificados (e então respeitados) são: escopo do trabalho (horas, tarefas), remuneração, sanções ou recurso em caso de descumprimento das obrigações contratuais e resolução de problemas ou conflitos. Observemos aqui a maturidade destes trabalhadores muito jovens, cujas demandas ecoam diretamente as demandas mais comuns dos sindicatos de trabalhadores adultos. Um desejo indiscutivelmente mais inovador é o acesso a contas poupança a partir dos dez anos de idade, para que possam guardar dinheiro com mais segurança e mitigar os riscos de roubo ou perda.

Em suas recomendações formar de melhorar as condições educacionais, as crianças fizeram um distinção pontual entre alunos que "saem de férias para trabalhar" e aqueles que abandonam a escola para se tornarem aprendizes em oficinas urbanas informais. No que diz respeito ao primeiro grupo, as crianças notaram a desigualdade social que se forma entre os alunos que trabalham nas férias escolares e os que frequentam cursos privados para reforço da escolaridade. Para atenuar essa questão, as crianças trabalhadoras gostariam que houvesse tutoria de qualidade a um custo acessível, ou mesmo gratuita, para alunos que trabalham.

Os aprendizes vivem condições totalmente diferentes, dependendo de seu setor e localização. Eles buscam uma forma de garantir que a qualidade, a duração e as condições de trabalho não sejam mais apenas uma questão de sorte, mas que sigam determinados padrões de prática. A pergunta deles: como disseminar boas práticas para que a aprendizagem em oficinas informais deixe de ser foco de exploração de crianças e adolescentes?

As vozes das crianças trabalhadoras nos mostram que elas estão empenhadas na construção de seu futuro, que concretizam ao articular vários percursos educativos que incluem escola, trabalho de aprendiz e o trabalho na economia informal. As necessidades que expressaram não são do outro mundo — são possíveis.

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