democraciaAbierta: Feature

Por dentro da jornada de migrantes trans para cruzar a última fronteira

Encontrar abrigo em Ciudad Juárez, no México, é mais um desafio no trajeto repleto de discriminação e abuso

Magda Gibelli
26 Maio 2023, 10.00
Darling Sosa trabalha como cabeleireira nas dependências da casa ocupada por migrantes, onde se refugia enquanto espera a travessia para os EUA
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Magda Gibelli

O estado mexicano de Chihuahua é para muitos migrantes a última etapa antes de entrar nos Estados Unidos. Mas a permanência em Chihuahua pode se estender indefinidamente devido às crescentes dificuldades para atravessar a fronteira.

Entre a população migrante que chega e se acumula em Ciudad Juárez, na passagem de fronteira mais importante do norte do México, as dificuldades para encontrar acomodação são grandes, especialmente entre a população mais vulnerável, como as pessoas transgênero. Para elas, encontrar um lugar seguro para dormir pode ser mais um sofrimento em uma longa e difícil odisséia que começa a cerca de 3 mil km ao sul do México, na fronteira guatemalteca em Malacatán-San Marcos.

“Para mim, essa jornada foi uma via crucis”, diz Marisol, 23, enquanto penteia os cachos dourados que cobrem seu rosto para contar o que ela viveu desde que deixou Honduras.

“No meu documento diz que sou homem, mas sou mulher e é assim que me sinto. Isso é uma coisa que muitos policiais não entendem e às vezes até rasgam seu documento de identidade ou zombam de você: tratam você como homem”, acrescentou.

A discriminação contra toda a comunidade LGTBIQ+ na rota migratória “é brutal”, diz Paloma Villegas, ativista, diretora e fundadora do movimento TTTrans Igualdad, uma ONG que apoia a comunidade Trans em Ciudad Juárez.

Paloma Villegas posa sentada à mesa

Paloma Villegas, ativista mexicana que apoia migrantes em Ciudad Juárez, fundadora e diretora da Respe TTTrans

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“Quase todas chegam aqui (em Ciudad Juárez) de ônibus ou trem tendo sofrido violência dos cartéis e polícia. Elas perdem tudo: dinheiro, roupas, documentos. Quando chegam ao destino, chegam sem nada, sem comer, desidratadas”, explica do balcão de sua loja de roupas, que também abriga o escritório TTTrans Equality, para onde vão os migrantes trans que não encontram refúgio em outro lugar.

Batalha

Os migrantes sabem que é praticamente impossível chegar a Ciudad Juárez e cruzar imediatamente para os Estados Unidos. Detidos na fronteira, eles devem bater em muitas portas até encontrar um lugar para ficar e aguardar com o mínimo de segurança a oportunidade de cruzar para o outro lado.

A maioria das igrejas católicas e evangélicas desta cidade enchem-se à noite com colchões e camas para refugiados, principalmente famílias ou mães solteiras.

Quem tem sorte de encontrar um lugar pode dormir e comer de graça, embora em alguns casos seja obrigado a ouvir missas e sermões em troca de abrigo, e também estão sujeitos a restrições de entrada e saída.

Os responsáveis por essas instituições religiosas costumam ser conservadores e críticos da comunidade LGTBIQ+, assim como muitos dos migrantes que se abrigam neles. Assim, a chance de sofrerem atos de discriminação, principalmente no caso de pessoas trans, são muito altas.

"Os abrigos cristãos são desconfortáveis ​​para mim porque não posso andar livremente. O desconforto da minha presença na rua é sentido, e muito mais quando estou trancado com pessoas que não compartilham da minha orientação. Alguns simplesmente fecham, e dizem que não têm espaço quando me veem", explica Valéria, uma migrante salvadorenha de 29 anos que escapou da discriminação que viveu em seu país.

Em entrevista por telefone ao democraciaAbierta, Gabriela Dávila, chefe de assistência social da ONG Derechos Humanos Integrales en Acción (DHIA) em Ciudad Juárez, disse que, apesar das muitas limitações, eles ajudam a comunidade LGTBIQ+ a encontrar lugares seguros para ficar na cidade.

“É difícil ter acesso aos abrigos, porque a maioria é católica ou cristã. Portanto, a situação é complicada devido a essa condição religiosa. Às vezes, pessoas LGTBIQ+ são aceitas, mas sua maneira de vestir e expressar sua identidade é limitada. identidade. É verdade que temos um espaço seguro, mas a lotação é limitada e há fila de espera", afirmou.

Paloma Villegas posa de pé em um guarda-roupa

Paloma Villegas, ativista mexicana que apoia migrantes, em sua casa em Ciudad Juárez

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Paloma Villegas decidiu montar a sala de sua casa para abrigar essas pessoas que enfrentam tantas dificuldades. “O espaço da minha casa é pequeno, mas se for preciso eles podem ficar lá algumas noites. Eu as acompanho ao médico se foram abusadas ​​sexualmente na estrada ou se estão em risco. Eu também as ajudo a encontrar trabalho, para que possam pagar por um quarto mais tarde", diz.

Decepção e dinheiro

Valeria, que atua como jornalista, contou em detalhes o que viveu em sua jornada até a fronteira com os Estados Unidos. "Eu me informei bem antes de vir para cá", conta. Na Cidade do México, manteve contato com membros da organização Respettatrans, que orientaram que, ao chegar em Juárez, procurasse o abrigo Casa Grecia, espaço criado para oferecer abrigo e alimentação a pessoas trans. No entanto, Valeria relata que esse objetivo "foi distorcido". "Quando chegamos na Casa Grecia, nos disseram que tínhamos que pagar uma taxa. Viemos sem dinheiro e não sabíamos o que fazer", conta.

Uma mulher trans ajuda uma menina a atravessar um córrego

Uma mulher trans ajuda uma menina a atravessar um córrego do Rio Grande, antes de cruzar a fronteira para os Estados Unidos em Ciudad Juárez

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Para Danny, que mora com Valeria atualmente, deparar-se com essa situação no abrigo “foi uma grande decepção”.

“Tenho 26 anos, sou de Honduras, de La Unión, onde ser trans pode custar a vida. A viagem pelo México foi trágica para mim, pois há muitos abusos contra pessoas trans. (...) na Casa Grecia, disseram que eu tinha que pagar US$ 1 mil, independente do quanto eu ficaria lá e que eu poderia parcelar", explica.

Acrescentou que, quando expressou que não poderia pagar esse valor, disseram que o reduziriam para US$ 400. "Eu me senti contra a parede, não tinha para onde ir, mas também não tinha dinheiro, mas não fez diferença para eles."

A acesso da impressa à Casa Grécia, onde residem famílias e homens solteiros, é restrito. Os responsáveis ​​pelo abrigo recusaram-se, tanto no local como por telefone, a prestar informações sobre a alegação de cobrança de taxas até US$ 1 mil.

Diante da impossibilidade de acesso à Casa Grecia, Danny tentou encontrar alternativas. Bateu à porta de vários abrigos, sem sucesso, e passou algumas semanas no espaço provisório montado pelo DHIA. Lá, Danny conheceu o trabalho de Paloma e passou algumas semanas dormindo na sala de sua casa, até que se juntou a outras meninas da comunidade LGTBIQ+ e, juntas, incluindo Valeria, conseguiram alugar um apartamento de um cômodo.

Rebeca Camacho, imigrante venezuelana, posa frente ao muro que a separa dos Estados Unidos

Rebeca Camacho, imigrante venezuelana, frente ao muro que a separa dos Estados Unidos

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A dificuldade em encontrar um lugar para ficar em Ciudad Juárez obrigou Rebeca Camacho, de 21 anos, que emigrou da Venezuela, a dormir nas ruas. “Minha jornada foi trágica. Fui rejeitada em vários países (…) estive em Tijuana e recebi ameaças por ser quem sou, por isso vim para Juárez. Me disseram que se me vissem lá novamente, eles me fariam desaparecer. Estou em Juárez desde dezembro. Orocurei trabalho e sinto que não me dão por causa de quem sou, sinto que me discriminam. Quando consigo trabalho, durmo em um quarto. E quando não consigo trabalho, durmo na rua, onde sofro agressões”, conta.

A rua é a última opção para quem, como Rebeca ou Marling Sosa, uma hondurenha de 22 anos, não conheceu Paloma ou não conseguiu localizar o DHIA durante sua estadia em Ciudad Juárez.

Quarto de Darling Sosa

Quarto de Darling Sosa e seus três amigos dentro de uma casa abandonada, ocupada por migrantes

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“Nós ficamos aqui junto com outro grupo de migrantes, porque é onde nos sentimos mais seguras”, diz Darling Sosa, referindo-se a sua irmã e uma amiga também da comunidade LGTBIQ+, com quem emigrou de Honduras. “Mas primeiro estávamos na rua”, conta em entrevista concedida enquanto trabalhava como cabeleireira na esquina de um prédio abandonado.

“A vida para nós não tem sido fácil, não temos ninguém”, diz Sosa, que afirmou ter fugido da discriminação no seu país, onde chegaram a receber ameaças com armas de fogo.

Mulheres, meninas e membros da comunidade LGTBIQ+ constituem a população de migrantes mais vulnerável, pois são vítimas regulares de abuso sexual por parte do crime organizado e de assédio por parte das autoridades, explicou a representante do DHIA.

Darling contou que, ao deixar a Guatemala em 1º de março, foi vítima de violência sexual por indivíduos uniformizados da polícia e afirmou que tentaram levar seu amigo Maikol Noé, de 23 anos. “Eu pensei que se eles o pegassem, poderiam matá-lo, porque essas pessoas são ruins. Felizmente, isso não aconteceu", acrescentou ela, enquanto Maikol concordava com a cabeça.

Marling Sosa posa para uma foto

Marling Sosa garante que se sente forte apesar da discriminação e violência de que foi vítima por pessoas que não aceitam sua identidade de gênero

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Diante das constantes reclamações dos migrantes por falta de proteção, tanto no caminho para Ciudad Juárez quanto na cidade, a representante do DHIA assegurou que pensar em maneiras de mudar a situação “soa como algo utópico”.

No entanto, garantiu que o trabalho para fortalecer as redes de atendimento e apoio à comunidade LGTBIQ+ é essencial, assim como tornar visíveis as denúncias do que acontece e conscientizar as forças de segurança sobre o tratamento que devem dar a eles como sujeitos de direitos..

Enquanto isso não se consegue, “informação é poder”, disse Ciela Ávila, chefe da área de Advocacia do DHIA, que instou os migrantes LGTBIQ+ a contatá-los através das redes sociais (Twitter, TikTok, Instagram e Facebook) para aconselhá-los e para que possam fazer uma viagem mais segura e receber apoio.

As redes de apoio a esse grupo, que é particularmente vulnerável à discriminação, ao abuso e ao estupro durante sua jornada migratória, são essenciais para garantir que essas pessoas não voltem a ser vitimizadas na fronteira, justamente quando o sonho de atravessar para os EUA está ao alcance.

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