
Trabalhadores finge bater a um homem vestido como o ex-presidente peruano Alberto Fujimori , no centro, durante um protesto em Lima, Peru. AP Photo / Martin Mejia.
Francesc Badia: Muito obrigado, senhor Ugaz, por receber a DemocraciaAberta. Existem vários temas complicados na agenda da transparência a nível internacional, ainda que se tenham dado sem qualquer tipo de dúvida uma serie de avanços nos últimos anos. A perceção que existe, a nível geral, é que a transparência, e por tanto, a denúncia e o seguimento dos grandes casos de corrupção, dificilmente se transforma, pelo menos no mundo latino, em consequências políticas para os políticos. Sobretudo devido ao mecanismo de desativação que diz: “todo o mundo é corrupto: um é corrupto, mas o outro também é corrupto e, chegada a hora de votar, prefiro votar no meu corrupto que no corrupto dos outros”. Parece que uma corrupção anula a outra. Que lhe parece este problema?
José Ugaz: Sendo a corrupção um fenómeno complexo, creio que depende muito desde que ponto de vista se observa a mesma. Eu acredito que a realidade, hoje em dia, é uma realidade de luzes e sombras. Porque, se bem que é certo que há muitos mais escândalos de corrupção – e acabámos de assistir a uma explosão global com a revelação dos Papéis do Panamá –, também é verdade que a corrupção adquire muito mais visibilidade hoje que no passado. E isso diz bem dos mecanismos de investigação, diz bem das ferramentas de transparência e da mobilização social em muitos lugares, que trouxe como consequência que estes casos sejam revelados. Antes havia muita mais opacidade, acho eu, no tema da corrupção.
Contudo, é verdade que ainda existe muitíssima corrupção no mundo: nós hoje em dia falamos dum fenómeno qualitativamente diferente, que é o da grande corrupção. Definimos a grande corrupção a partir de três elementos: atores com grande poder político; atores com grande poder económico que mobilizam enormes recursos (hoje em dia os escândalos são de centos e de milhares de milhões de dólares, em quase todos os casos); e em terceiro lugar, o impacto que isto tem nos direitos humanos, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento. Nesse sentido, do lado das luzes temos políticos que estão a pagar o custo das suas práticas corruptas: no Guatemala temos um ex-presidente e uma ex-vice-presidente na prisão; no Peru, Fujimori e Montesinos foram condenados a 25 anos de prisão; no Brasil, a presidente Dilma Rousseff foi suspensa do cargo devido ao escândalo da Petrobras; e se olharmos à volta do mundo, há outros exemplos que indicam nesse sentido. Houve altos dignatários na Europa, por exemplo em Portugal, que passaram pela prisão, e tudo isto como consequência da corrupção. Em África, está o caso de Zuma, hoje sob investigação.
Mas por outro lado, em matéria eleitoral é verdade o que diz: existe ainda uma falta de ligação entre o que o eleitor, o cidadão, expressa no momento de votar e as consequências que dito voto lhe traz posteriormente. E isto acho que tem que ver em parte com que a corrupção é um fenómeno anómico, porque a vitimas das suas consequências não são normalmente conscientes de que são vitimas. Os que pagam as consequências mais relevantes da corrupção são os mais pobres. E os mais pobres não são conscientes de que são vítimas de dita corrupção. Nalguns casos, porque pensam que como não pagam impostos diretamente, então não os afeta. Noutros casos porque simplesmente não têm um nível de consciência para ligar a sua impossibilidade de educação, saúde, uma casa digna, alimentação para os seus filhos com o que alguns se levam aos seus bolsos pessoais. Então, não há uma relação complexa entre vítima e autor, entre a vítima da corrupção e o que a mesma implica, que muitas vezes se expressa nas eleições. E é por isso que há este tipo de resultados.
A isso há que somar-lhe uma espécie de fatalismo que, em países como os nossos na América Latina, está muito presente. Esta resignação perante o facto de dizer “todos somos corruptos, isso nunca vai mudar, somos assim porque somos latinos, porque somos africanos ou porque somos asiáticos, então vou votar por alguém que roube, mas que faça alguma cosa, que sempre será melhor que aquele que tão só rouba”, e muitas vezes isto leva a que se vote em candidatos que se sabe que são corruptos e que vão atentar contra o interesse público, mas as pessoas, nesta fatal resignação, optam por escolher.
FB: Neste sentido, há dois fatores que desempenham um papel muito importante na transparência, mas cuja independência do poder político e económico é muitas vezes posto em questão: os meios de comunicação, que põem um tema ou não na agenda em função dos seis interesses, um escândalo ou outro; e por outro lado o poder judicial, que é quem deve tomar medidas uma vez o escândalo andou para a frente ou a informação circula. Como vê a América Latina estes dois fatores?
JU: Ambos são chave para o bem e para o mal. Eu diria que um caso que simboliza o papel da imprensa, em particular nas suas duas facetas, é o caso Peruano. Na década dos 90, a ditadura de Fujimori e a rede corrupta que governou o país durante 10 anos comprou literalmente as linhas editoriais de todos os meios de imprensa escrita e de todos os canais de televisão do país, salvo três meios que se resistiriam a esta investida da corrupção: dois diários de circulação nacional e uma emissora de televisão de cabo. Depois, os donos dos canais de televisão que subordinaram a sua linha editorial apareceram em vídeos recebendo enormes quantidades de dinheiro em efetivo, milhões de dólares. Então, todos os que se tinham subordinado à corrupção, conformando grande parte deles essa imprensa barata que nós chamamos prensa chica, converteram-se numa arma do regime contra a oposição e uma fonte permanente de ataque e de desinformação da opinião pública. Mas, no outro extremo, os três meios que não se deixaram corromper, desempenharam um papel fundamental no resgate da democracia. Foram eles que documentaram detalhadamente as práticas corruptas, que ao produzir-se a queda do regime autoritário, foram fundamentais para a investigação. Eu fui quem conduziu a investigação como procurador do caso Montesinos e Fujimori, e as primeiras investigações nutriram-se da informação que pudemos extrair da imprensa independente.
No caso do poder judicial é o mesmo, porque um poder judicial independente e forte, estamos a ver no Brasil, pode produzir resultado extraordinários. Nesse caso uma série de corajosos e profissionais fiscais, assim com três ou quatro juízes, colocaram em xeque uma elite corrupta no sector privado assim como vários dos mais altos funcionários do Estado. E isso é notável, mas, por outro lado, os sistemas judiciais altamente corruptos o que fazem é impor umas regras de impunidade que lamentavelmente estão multo estendidas na região. Então, em ambos casos, eu diria que existe um papel positivo quando se enfrenta à corrupção institucionalmente, mas também o mesmo pode desempenhar um papel nefasto quando se converte em cumplice ou coautor dessa mesma corrupção.
FB: Vemos, por exemplo, que se pode apreciar uma graduação na condena nos casos de corrupção, dependendo da sua natureza, mas há alguns casos que são especialmente dolosos, sendo aqueles que implicam violência e o assassinato ou a impunidade dos autores. Isto, na América Latina, vemo-lo nalguns sítios onde existe uma espécie de conivência entre o Estado, as forças de segurança, a violência institucional e também a violência estrutural. E aí é onde a corrupção tem um duplo impacto. Como vê este problema, próprio da região?
JU: Olhe, nestes últimos tempos estabeleceu-se uma ligação muito negativa, diria eu, entre a corrupção e o crime organizado, sobretudo nesta parte do mundo: o Peru a Colômbia são os primeiros produtores de cocaína no mundo. Mas também temos mineração ilegal, deflorestação, tráfico de pessoas…existem uma serie de indústrias criminosas à volta dos nossos países. E isto, sem dúvida, infiltrou-se nalgumas das instituições fundamentais dos estados. Não só nos partidos políticos, através do financiamento das suas campanhas. Agora os narcotraficantes não aspiram a sentar-se eles mesmos no Congresso, mas sim a comprar políticos que se sentem por eles e representem os seus interesses. O mesmo acontece com os juízes: produziu-se uma infiltração do crime organizado no sistema judicial e temos muitos exemplos disso. Por exemplo, no caso do meu país, o Perú, recentemente desbaratou-se uma organização criminosa à que pertencia o presidente regional de Ancash (uma região do norte). Dita organização dispunha dum grupo de assassinos a soldo. Tinha assassinado varias pessoas, tinha mandado assassinar vários dos seus opositores, e estava também ligada com uma máfia de tráfico imobiliário que controlava uma rede judicial. Como consequência desta investigação, devido à qual está preso o presidente regional e vários dos seus cúmplices, o Procurador-Geral da nação viu-se obrigado a renunciar, ao provar-se que mantinha ligações com dita rede. E parece-me que, como este caso, existem muitos na região. Vemo-lo também noutros países, como nas Honduras, por exemplo. Recentemente, uma publicação do New York Times expôs como um grupo de generais da polícia estavam envolvidos de pleno no crime organizado, assassinando os seus próprios companheiros de armas para beneficiar certos narcotraficantes. Confirma-se, portanto, que existe uma perigosíssima infiltração do crime organizado nas instituições fundamentais do Estado.
FB: Contudo, também vimos como emergiram, de forma positiva, algumas mobilizações populares. O senhor citou o caso do Guatemala, uma caso muito emblemático, um país que em princípio a nível regional não é muito forte, aparentemente, mas que dispõe duma capacidade para mobilizar-se e provocar uma alteração política. Ou o caso do Brasil, com mobilizações muito fortes, talvez por outros motivos, mas onde, como disse, existe um sistema judicial mais forte. Vemos como se aplicam sem hesitar leis que estabeleceram os próprios afetados pelas mesmas. Isto é um avanço democrático. Como vê o papel das mobilizações e dos protestos chegada a hora de acelerar os processos?
JU: Parece que agora a sociedade está a desempenhar um papel fundamental neste processo de luta contra a corrupção. Antes havia uma espécie de abatimento, de conformismo e resignação perante estes problemas. Produziu-se uma mudança muito significativa. Talvez a Primavera Árabe tenha sido a expressão coletiva mais relevante em determinado momento, mas esse espirito contagiou-se a outros grupos sociais. Na nossa região em particular existem três exemplos muito relevantes que se produziram nos últimos meses, e que são os que o senhor cita, além do das Honduras. Nas Honduras, todas as semanas, no sábado pela tarde, mobilizam-se centenas de pessoas para reclamar ao governo ações contra a corrupção. Isto levou a que diversos ministros e altos funcionários estejam hoje na prisão ou estejam a ser julgados, e a que a OEA tenha entendido como necessário criar uma comissão que contribua para a rutura da impunidade, tal como se vez no Guatemala com a CICIG. Assistimos também a manifestações parecidas no Guatemala, onde as praças se encheram de milhares de pessoas exigindo a renúncia do presidente e da vice-presidente quando se destapou o escândalo da “La Línea”. No Brasil, assistimos a como milhões de pessoas saíram a rua para reclamar justiça no caso Petrobras. No Perú houve também algumas mobilizações neste sentido, devido às campanhas eleitorais, precisamente tratando de expressar o mal-estar com aquelas candidaturas que pudessem estar relacionadas com a corrupção.
Parece-me que estamos perante um novo cenário no qual a cidadania está a desempenhar um papel fundamental. E nós como organização estamos atentos a isto. De facto, a nossa estratégia para 2020 pretende estabelecer ligações com esse movimento social para tratar de conseguir uma certa sustentabilidade no protesto, porque não queremos que aconteça aqui na América Latina o que aconteceu no Mundo Árabe, onde depois de grandes mobilizações houve regressão, e nunca mais voltou a acontecer nada. E todos esses ditadores evitaram prestar contas: Mubarak saiu impune, Bem Ali goza de impunidade. A Transparência Internacional, de certa forma, está a tentar estabelecer ligações com este movimento social para poder contribuir neste aspeto.
FB: Há outra questão que pode ser um game changer, que são os leaks, filtrações que, são fruto da investigação ou fruto de pessoas que estão dentro do sistema e que tem acesso a informação sensível e que a expõe e a publicam através do meios. Isto tem sido constante ultimamente. Assistimos há bem pouco tempo ao caso dos Papéis do Panamá, sendo este um facto novo. Ajudam estas filtrações o trabalho da Transparência Internacional ou, de alguma forma, existe também uma parte destes fenómenos que fragilizam o seu trabalho, ao saltar as filtrações de forma imprevisível, e muitas vezes, sem a cobertura legal necessária?
JU: Nós, desde a origem da nossa organização, adotamos uma posição muito clara em defensa dos chamados informantes ou whistleblowers. É mais, desenvolvemos princípios para a proteção destas pessoas. Neste momento existe um debate porque um informante vinculado à Price Waterhouse no Luxemburgo foi levado a julgamento pela sua ex-empresa, por ter revelado informação relevante, conhecida como os LuxLeaks, relacionada com a evasão fiscal. Nós, como organização, defendemos que se arquive o processo e que o informante seja protegido. E estendemos esta defesa aos outros casos globais que se produziram.
Agora, no Panamá, a firma de advogados está a ameaçar com denunciar aqueles que participaram na filtração. Para nós, tudo o que contribua para a transparência e para a claridade em matéria de atos de corrupção deve ser protegido e, nesse sentido, há que pondera os interesses que estão em jogo. Eventualmente podem ter existido algumas violações das garantias individuais de pessoas envolvida em atos criminosos, mas isso nunca se pode antepor ao interesse social de milhões de pessoas que se vem afetadas por ditas práticas corrutas. Então, parece-me que temos que proteger os informantes e temos que, de alguma forma, incentivar este tipo de práticas porque é a única forma de pôr termo à impunidade.
FB: Uma última pregunta. O senhor desempenhou um papel central em levar perante a justiça Fujimori e Montesinos, que foram condenados por crimes muito graves. Contudo, esperando os resultados da segunda volta das eleições presidenciais no Perú, a filha de Fujimori, Keiko, tem muitas possibilidades de voltar ao poder e perpetuar a saga familiar. Talvez no Perú isto se veja de forma diferente, mas visto desde fora gera uma certa perplexidade: como é possível que a filha dum personagem desta natureza, que além disso foi retratado e condenado por crimes contra a humanidade, consiga um apoio popular tao grande?
JU: Bem, é uma explicação longa e complexa, e há muitos fatores a ter em conta. Em primeiro lugar, simplificando, existe num setor da população do Perú uma recordação positiva de algumas das coisas que fez Fujimori, tal como a captura de Abimael Guzmán y, de alguma forma, a derrota do Sendero Luminoso, do terrorismo, e por outro lado, o controlo da inflação. Esses são êxitos do seu governo, que tem matizes porque não necessariamente são atribuíveis ao 100% ao mesmo, mas que sucederam durante o seu mandato. Por outro lado, somos um povo que se solidariza com as vítimas: Fujimori já leva vários anos na prisão, está velho, sofre de alguns problemas de saúde e isso também tem um certo valor emocional, digamos. Em terceiro lugar, Keiko Fujimori, a sua filha, dedicou-se a tempo completo a construir a sua candidatura, viajando por todo o país ou abrindo locais partidários, falando com as pessoas. E isso, a longo prazo, deu resultado ao ponto de ter obtido uma maioria absoluta no Congresso, o que supõe algo sem precedentes na história do país. Por outro lado, Keiko tentou manter uma certa distância em relação ao pai de forma progressiva. Primeiro disse que o seu pai tinha cometido alguns erros, para logo reconhecer que não tinham sido só erros mas também crimes, e agora disse que carrega uma pesada mochila, mas que não reconhecerá nenhum ato que a vincule com o seu pai nessa matéria. Apesar disto, quando olhamos para as fotografias, vemo-la rodeada de muitos dos personagens que estiveram ao lado do seu pai, os quais cada vez que podem fazem gala da sua posição não autoritária. Estamos perante uma situação ambivalente que me parece no geral expressa o que discutíamos antes: existe uma falta de consciência das vítimas do que significa este princípio de “rouba, mas não faz” que permite que, através duma comparação de distância em anos, se diga “paciência, mas agora temos uma corrupção também muito estendida a nível regional e não nos corre tao bem em termos económicos e de desenvolvimento como na época de Fujimori”. É um caso complexo, que nos levou até esta lamentável situação e que põe o eleitorado permanentemente contra a parede, sobretudo aqueles conscientes de que não querem voltar a ver um regime corrupto e autoritário a dirigir o seu país.
A DemocraciaAberta assistiu à Semana Internacional da Sociedade Civil em Bogotá (24-28 de Abril), graças a uma bolsa de meios da CIVICUS. Este artigo pertence a uma serie de entrevistas a destacados líderes da sociedade civil que participaram no evento.
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