
O neoliberalismo nasceu no Chile. Morrerá lá?
A Convenção Constitucional está imaginando um país radicalmente diferente daquele forjado pelo sanguinário ditador Pinochet

Quando o Chile elegeu Gabriel Boric por maioria esmagadora em 19 de dezembro, fiquei exultante. Boric, líder da coalizão Frente Amplio (Frente Ampla), enfrentou o candidato de extrema-direita, José Antonio Kast, um negacionista da crise climática e admirador fervoroso de Augusto Pinochet, o ditador assassino que governou o Chile de 1973 a 1990, que atacou sistematicamente os direitos dos imigrantes, das mulheres e da comunidade LGBTQ durante sua campanha.
Agora, sob a liderança do presidente de 35 anos, o país tem a chance de promover mudanças significativas para se afastar do modelo econômico e social forjado por Pinochet. O modelo neoliberal se firmou não na Grã-Bretanha de Margaret Thatcher ou nos Estados Unidos de Ronald Reagan, mas no Chile de Pinochet. Durante a ditadura, o Estado foi reduzido ao mínimo, entregando às empresas com fins lucrativos a concessão de direitos por meio da privatização dos serviços públicos.
Esse processo transformou o Chile em um país com moradia, saúde e educação garantidas apenas para os ricos; um sistema previdenciário privatizado em que a previdência social fica à mercê da rentabilidade do investimento; saque dos recursos naturais; comunidades sem acesso à água potável como consequência do agronegócio desregulado e um sistema tributário que em nada muda o fato do Chile ser um dos mais desiguais do mundo. O biógrafo do ditador, Mario Amorós, caracteriza o legado de Pinochet como “um modelo instalado a sangue e tiros que beneficiou as elites que controlavam a mídia e detinham o poder econômico”.
Em 2019, chilenos tomaram as ruas de todo o país em protestos persistentes e generalizados contra a extrema desigualdade. Uma das demandas mais imediatas dos manifestantes era a substituição da Constituição imposta por Pinochet. Os protestos levaram a uma sessão no Congresso, às 3h do dia 25 de novembro de 2019, sob o olhar atento de milhões de chilenos que acompanhavam os eventos na televisão. Cedendo à pressão pública, os parlamentares concordaram em realizar um referendo sobre obre a redação de uma nova constituição.
No referendo de outubro de 2020, 78% das pessoas votaram “sim”, levando à eleição de uma histórica Convenção Constitucional de 155 pessoas encarregadas de reescrever a Constituição. A convenção – da qual sou consultora – inclui representantes de todo o espectro político, incluindo um número recorde de independentes, feministas e ambientalistas. A convenção reuniu-se pela primeira vez em 4 de julho do ano passado, com uma diretriz clara: redigir a primeira Constituição democrática da história do Chile, com paridade de gênero e representação indígena. Os representantes têm um ano para cumprir essa tarefa. O povo voltará novamente às urnas em outubro para aprovar ou reprovar a Constituição proposta.
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A primeira ação da convenção foi eleger Elisa Loncón, professora universitária indígena Mapuche feminista, como presidente. “Obrigada a todos vocês por confiarem em uma mulher Mapuche para mudar a história deste país… Esta convenção é para todos os chilenos de todos os setores e regiões e… contra todos os sistemas de dominação… É por um Chile que protege a Mãe Terra”, Loncón disse em seu primeiro discurso no cargo.
As regras de participação adotadas pela convenção são fundamentais para seu sucesso. Um exemplo notável é a decisão da convenção de realizar referendos públicos provisórios para disposições que não obtêm aprovação de dois terços, mas recebem apoio de três quintos, o que oferece uma maneira de contornar possíveis obstáculos criados por conservadores. Outra regra é conhecida como "iniciativa popular", que permite a qualquer cidadão propor um dispositivo constitucional sobre qualquer assunto, desde que consiga reunir pelo menos 15 mil assinaturas em apoio.

'O neoliberalismo nasce e morre no Chile'
A Convenção Constitucional discute as principais transformações por meio de sete comissões temáticas. Essas transformações incluem declarar o Chile um estado plurinacional – que reconhece as várias etnias do país e concedendo-lhes graus de autonomia – e que reconhece a natureza como um sujeito de direitos, visando fornecer mais ferramentas para proteger os ecossistemas. Outra proposta fundamental é mudar o papel do Estado, tirando o foco do individualismo e redirecionando-o à solidariedade. Também no topo da agenda está a eliminação de toda assimetria de gênero na participação pública e política, permitindo um estado com representação igual em seus poderes judiciário, legislativo e executivo.
Em uma de suas discussões mais inovadoras, a convenção busca instituir um Sistema Nacional de Cuidados. Atualmente, o trabalho doméstico e não remunerado representa 53% do trabalho produtivo no Chile, equivalente a 22% do PIB. Cerca de 72% deste trabalho é realizado por mulheres. Um Sistema Nacional de Cuidados não só reconheceria as ocupações de cuidado como trabalho, mas também pagaria e profissionalizaria esses serviços. A antiga demanda das mulheres chilenas por nossos direitos sexuais e reprodutivos – e a possível adoção de uma lei que legalize o aborto – também está no centro desta proposta.
Muitas dessas propostas serão fortemente contestadas. Kast atacou tanto as mulheres quanto a natureza em sua campanha eleitoral, chegando a prometer desfazer o Ministério da Mulher e a negar o aquecimento global. A promessa de ampliar os direitos da natureza sofrerá forte oposição dos partidários do Big Business, uma vez que vai contra a história do Chile como exportador de matérias-primas ou semiprocessados como cobre e, mais recentemente, lítio, além da agricultura voltada para a exportação. “O modelo chileno é baseado no extrativismo, e uma nova Constituição poderia exigir que uma empresa mantenha o equilíbrio ecológico”, explica o cientista político Claudio Fuentes. Representantes de direita ocupam quase um terço das cadeiras da Convenção Constitucional.
Ainda assim, o Chile começou 2022 com otimismo. O novo governo Boric está encarregado de organizar o referendo de outubro de 2022 sobre a nova constituição. “Se for bem-sucedido, será um modelo de esperança, e não apenas para o Chile”, diz o especialista constitucional Bruce Ackerman. Durante os protestos de 2019, protestantes picharam nas paredes: "O neoliberalismo nasce e morre no Chile". Uma nova constituição poderia tornar esse desejo realidade.
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