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Eco-constituintes chilenas trabalham por constituição com direitos para a natureza

Na convenção constituinte nasceu um grupo de representantes que visa reconhecimento da natureza como sujeito de direito

Cecilia Román
29 Novembro 2021, 12.01
Altos níveis de poluição do ar obscurecem o Costanera Center e outros edifícios em Providencia, Santiago, Chile
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Paul Kennedy/Alamy Stock Photo

Com o microfone em uma das mãos e segurando a bandeira Mapuche na outra, a acadêmica e linguista Elisa Loncón, prometeu no dia 4 de julho que a Convenção Constitucional que hoje preside transformaria o Chile em um país que cuida da terra e reconhece seus direitos: “A Convenção que presido hoje transformará o Chile em um Chile que cuida da Mãe Terra, em um Chile que limpa as águas, em um Chile livre de qualquer dominação”, disse naquela tarde.

Com seu discurso – "Todos juntos, pu lamngen (saudação Mapuche), vamos refundar este Chile" – inaugurou o uso de uma linguagem que não ocupava um lugar relevante na política de massas chilena e que hoje está atravessando plenamente o corpo que irá criar a nova Constituição. Uma linguagem que faz parte de outro paradigma, que já fazia parte do DNA dos povos indígenas e cujo eixo central é a compreensão da natureza como entidade viva, que não pode ser um simples objeto de apropriação pelo ser humano.

Para uma parte importante dos membros da Convenção Constitucional, que ouvia Loncón animada, essas palavras não eram estranhas. Muitos deles chegaram lá depois de anos de luta pela recuperação das águas, contra a depredação da natureza, e pela luta contra as chamadas “zonas de sacrifício”, nas quais a intenção de avançar no desenvolvimento prejudicou e até fez a população ficar doente.

No processo de elaboração da Carta Magna nasceu um grupo de representantes que se autodenominam “eco-constituintes”, formado principalmente por ativistas ambientais independentes, que compartilham da necessidade que emerge das palavras da presidente da convenção: sair do modelo antropocêntrico da vida e passar para um ecocêntrico.

Uma dessas novas visões, talvez a mais inovadora, é reconhecer a natureza como sujeito de direito

Para isso buscam, como ponto de partida, a criação de uma “eco-Constituição”.

Avançar em direção ao bem viver

O coração dessas transformações estará na Comissão de Meio Ambiente, Direitos da Natureza, Bens Comuns e Modelo Econômico. Esta é uma das sete instâncias que trabalharão os conteúdos da nova Carta Magna nos próximos meses e tem uma particularidade: 12 dos seus 19 membros são eco-constituintes.

Com esse número, basta que eles aprovem e proponham ao plenário da convenção novas visões sobre a relação da sociedade com a natureza e, assim, reflitam conceitos que os povos indígenas já vivem como parte de sua cosmovisão: suma qamaña (Aimará) ou kume mongen (Mapuche). Ambos falam – com suas diferenças sutis – de viver em harmonia ou de "viver bem".

Uma dessas novas visões, talvez a mais inovadora, é reconhecer a natureza como sujeito de direito, como Loncón anunciou em 4 de julho.

“Na nova Constituição, os direitos da natureza devem ser consagrados. Vai ser uma mudança radical no paradigma de como nos relacionamos, porque estamos perante uma crise climática sem precedentes e uma mudança constitucional em meio a ela não pode ser ignorada ”, explica Yarela Gómez, professora e constituinte.

A abordagem de Gómez para o ativismo remonta à sua adolescência e ela se lembra disso ao buscar informações sobre o impacto ambiental das mega-barragens, quando ainda estava em sua escola na região de Aysén, no extremo sul do Chile. Hoje é ativista do Movimento pela Defesa do Acesso à Água, Terra e Proteção ao Meio Ambiente (Modatima).

“Isso está ligado ao território a que pertenço e aquela sensibilidade particular de se encontrar com a natureza e compreender que somos interdependentes”, diz Gómez.

'A única solução é uma Eco Constituição!'

A demanda por uma eco-Constituição foi ouvida nos discursos de abertura do processo por pelo menos uma dezena de constituintes. Mas não é um pedido alheio à academia. Entre as organizações e especialistas que solicitaram audiências, o professor de Direito e Regulação Ambiental e diretor executivo da ONG FIMA, Ezio Costa, esteve há algumas semanas na Comissão de Meio Ambiente para apresentar os principais conceitos para alcançá-la.

No entanto, a presença de Eco Constituintes em quase todas as comissões não garante a aprovação das suas propostas

Alguns exemplos são os novos princípios como a justiça intergeracional, o princípio da precaução, o princípio da prevenção e a proteção de bens comuns como água, montanhas altas ou rios. Isso significa que, antes de serem utilizados pelas indústrias, devem satisfazer as necessidades básicas das pessoas. Depois disso, podem ser cedidos para outros usos.

Também abordou a forma como os direitos da natureza podem ser consagrados e mencionou especificamente dois: o direito à existência e à restauração, conforme constam na Constituição do Equador, e que se referem principalmente aos deveres dos cidadãos.

Costa defende ainda a possibilidade de criação de um “Defensor da Natureza”, que já é objetivo da Comissão de Sistemas de Justiça, Órgãos Autônomos de Controle e Reforma Constitucional. E nesse espaço, claro, há também eco-constituintes, como em praticamente todas as comissões, que vão redigir a proposta da nova Constituição.

“O espaço eco-constituinte poderia ser mais um lugar a partir do qual nos posicionamos para não esquecer que a questão ecológica esteja presente na Comissão dos Sistemas de Conhecimento, por exemplo, ou na Comissão de Forma de Estado e Descentralização. A questão ecológica terá que estar nos princípios fundadores da comissão de Princípios Fundamentais ou nos sistemas de justiça que queremos instituir”, responde a licenciada em Direito, ativista e constituinte, Camila Zárate.

No entanto, a presença de Eco Constituintes em quase todas as comissões não garante a aprovação das suas propostas, uma vez que tudo será analisado no final pelo plenário e deverá ser aprovado por dois terços dos 155 constituintes. “Para conseguir maiorias em nível de plenário, vamos exigir sim ou sim desses espaços de articulação, onde possamos gerar propostas comuns e depois conversar com as diferentes forças políticas”, acrescenta Zárate.

A estratégia dos eco-constituintes para convencer representantes dos partidos políticos e da centro-esquerda a aderir a uma Constituição ecológica foi distribuir-se por todos os espaços e oferecer uma perspectiva ecológica em todas as comissões. Os 30 – dos quais 18 são mulheres – também estão realizando intensos debates para chegar a um consenso sobre como alcançar esse objetivo comum. Estão em discussão os conceitos de desenvolvimento sustentável, como atribuir uma função ecológica à propriedade – como faz a Constituição da Colômbia – e quais novos princípios acrescentar à nova Constituição.

Esses debates ainda geram alguma resistência em setores mais ligados à direita, porque a comissão tem outro grande objetivo: deve definir também as bases para o modelo econômico que o Chile terá. Atingir o delicado equilíbrio entre desenvolvimento e proteção do ambiente já é considerada uma das discussões mais difíceis na Comissão do Ambiente.

“Se não houver um modelo econômico que dê sustentabilidade e desenvolvimento a um país, o país mergulha na pobreza e quando há pobreza aumenta a poluição”, critica o ex-secretário ministerial regional de Minas do presidente Sebastián Piñera e hoje integrante da mesma comissão, Roberto Vega.

Gloria Alvarado, ativista pela água e eco-constituinte, dá nuances a essa visão. “Eles sempre falam que nós somos os malucos, os verdes, mas você tem que perceber uma coisa: a natureza nos dá serviços ecossistêmicos, e ela está lá para pegarmos o que precisamos. Mas se não dermos a ela capacidade de recuperação própria, como teremos esses serviços amanhã e depois de amanhã?”, questiona.

“Não somos contra a produtividade. Sabemos que gera emprego e economia para o país, mas tem que ser feito com equilíbrio ecológico, com empatia e respeito pelas pessoas que vivem nos territórios. Queremos que haja produtividade, é necessário, mas tem que estar na medida certa”, acrescenta.


Esta reportagem pertence à série Cartas Chilenas, produto da aliança editorial entre #NuestrasCartas e o democraciaAbierta/openDemocracy

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