
Angela Merkel e Dilma Rousseff. Demotix. All rights reserved.
A cena mostra a família sentada à mesa para o jantar. Pais e filhos reunidos para um dos momentos mais sagrados da família brasileira. De repente, não há comida nas panelas. Os pratos com a comida somem, deixando as pessoas desoladas. Nosso olhar então é conduzido a outro aposento, onde banqueiros comem desbragadamente um banquete. Mensagem final: é isso que vai acontecer, caso Marina Silva ganhe a eleição, dará poder aos bancos e será o retorno do neoliberalismo [1]. Este foi apenas um exemplo da feroz campanha publicitária de Dilma Rousseff contra os dois principais candidatos da oposição. A sucessora de Lula ganhou a eleição, conferindo ao Partido dos Trabalhadores (PT) ao quarto mandato consecutivo na administração federal (2003- ).
Um ano depois da propaganda eleitoral, o país passa por uma aguda crise econômica com queda de 2% do PIB projetada para 2015. O dólar oscila ao redor de R$ 4,00, uma marca histórica, e a inflação beira os 10% ao ano [2]. O governo responde com um ajuste fiscal, cortes em aposentadorias, direitos trabalhistas, gasto público e investimento social. Exatamente a receita de austeridade que Dilma, na campanha, atribuía à oposição. O ministro da economia, Joaquim Levy, é um executivo do banco Bradesco e a sua formação no neoliberalismo monetarista (Chicago School). É grave a crise, mas ao longo de 2015, o lucro líquido do Banco Itaú, por exemplo, subiu para R$ 6 bilhões de reais/trimestre, um aumento de 25% em um ano [3]. No mesmo período, a taxa base de juros definida pelo governo subiu cinco vezes, chegando a 14,25% [4]. No capitalismo, a resposta padrão da crise costuma ser salvar os bancos e socializar as perdas.
O que aconteceu entre a eleição e a posse de Dilma em janeiro? Um dos intelectuais ligados ao PT, o economista Márcio Pochmann, se limitou a justificar que "ela mudou de estratégia" [5]. A "estratégia" de assumir uma agenda neoliberal contra a crise, no entanto, já estava delineada antes da eleição, quando o ministro era Guido Mantega. O governo sabia da situação de crise e já preparava o arrocho fiscal para o ano seguinte [6]. Na eleição, portanto, o governo mentiu duas vezes. A primeira ao negar que a economia do país estava em maus lençóis. A segunda ao atribuir aos adversários as políticas que, precisamente, seriam aquelas a ser adotadas, uma vez terminado o pleito. O governo adotou a mentira como método e venceu.
Logo no começo de 2015, a crise econômica se tornou inegável. Junto com a verdade sobre a crise e os remédios pretendidos, também explodiram no noticiário os detalhes da operação LavaJato, conduzida pela polícia federal e o judiciário. Revelou-se ao público um megaesquema de corrupção envolvendo a Petrobrás, grandes empreiteiras da construção civil e políticos, principalmente de partidos ligados à base do governo: PMDB, PT e PP. Mais do que vício moral dos envolvidos, a LavaJato expôs como no núcleo do projeto econômico desenvolvimentista funcionou por anos um esquemão de governabilidade estruturalmente corrupto. Os fundos do trabalhador e da exploração do petróleo foram usados sistematicamente, por meio do banco público de investimento (BNDES), para irrigar e sedimentar um cinturão de oligopólios em setores-chave. Esses "campeões nacionais" recebiam então o inteiro favorecimento político do governo para competir no mercado internacional, ao custo de frustrar o dinamismo interno e dar carta branca para essas empresas espoliarem o trabalhador e o meio ambiente.
A farra começou a acabar no começo de 2015. Quando se perceberam, ao mesmo tempo, o fracasso econômico do projeto desenvolvimentista, o fato que a conta seria repassada à população (ajuste fiscal) e a participação direta dos partidos do governo na corrupção, o índice de aprovação de Dilma despencou. Hoje, a sua popularidade é menor do que a inflação [7], um recorde negativo, menor até que o índice do ex-presidente Collor às vésperas de seu impeachment, em 1992. O resultado nas ruas foi um engrossamento do movimento anticorrupção. Usando a autoconvocação pelas redes sociais e de maneira policêntrica, esse movimento de luta social levou milhões às ruas em três ocasiões: em março, abril e agosto. No país todo, as passeatas dos indignados superaram quantitativamente em cerca de dez vezes as "contra-marchas" organizadas pelas forças governistas.
Diante do quadro, a esquerda brasileira em geral tem sido incapaz de dar uma resposta forte à crise. Em vez de focar a crítica nas políticas de desenvolvimento e na governabilidade adotados pelo governo, a esquerda tem preferido colocar em evidência o congresso conservador e o que seria um avanço social reacionário inédito. O resultado disso é a percepção, no interior da esquerda, que, apesar de tudo, o governo Dilma ainda estaria mais à esquerda do congresso e a sociedade. Em consequência, avaliações voltadas a dizer que o governo Dilma não é esquerda o suficiente acabam servindo para sutilmente continuar defendendo-o. Esta foi a lógica que sustentou o "voto crítico", isto é, votar na continuação do governo por ser o "menos pior", diante o que seria a restauração do neoliberalismo. Essa lógica continua funcionando. Afinal, o governo precisa ser esquerda apenas o suficiente para estar à esquerda do Congresso e da sociedade em geral.
Dessa estratégia para manter a coesão interna deriva a intensa campanha das mídias governistas em carregar nas tintas para demonstrar como o problema maior estaria no congresso e na própria sociedade brasileira. É uma propaganda do tipo "direitismo-exploitation", que tem se desdobrado na campanha "Fora Cunha" (contra o presidente do Congresso) e na desqualificação do ciclo de manifestações de 2015, como sendo manipuladas pela direita. Não se dá importância o fato incômodo que o próprio ex-presidente Lula tem articulado politicamente para salvar Cunha e os demais aliados do PMDB [8]. O drama, contudo, não é que a direita venha se beneficiando da crise, mas sim que a justa indignação popular está convergindo contra toda a esquerda, pela incapacidade praticamente congênita dela própria descolar-se do PT e do governo.
Em junho de 2013, um levante de proporções quantitativas parecidas com as manifestações de 2015 tomou ruas e redes no país, porém ele foi qualitativamente diferente em várias questões, em relação à série atual de protestos. Aquele levante há dois anos, inscrito no ciclo global das primaveras árabes, do 15M europeu, do Occupy e dos protestos de Gezi Park, era muito mais do que o movimento anticorrupção e incluía a agenda pelo transporte coletivo, a moradia, a transformação das instituições políticas, em suma, lutava-se pelo aprofundamento do regime de transição democrática pós-ditadura. Havia ali, de fato, a possibilidade concreta de torcer a correlação de força e mudar o rumo dos projetos políticos e econômicos. Entretanto, tanto o governo do PT quanto a maior parte da esquerda desprezaram os protestos, acusaram-no de caldo protofascista, e contribuíram para a formulação de um consenso repressivo que, meses depois, se abateu brutalmente sobre ativistas e lutas. A expressão social não repercutiu em nenhuma mudança das instituições, acelerando o desencanto geral pela política e os políticos. Por parte da direita punitiva brasileira, o levante de 2013 foi reprimido sob a acusação de vandalismo e crime organizado. Mas a esquerda também se uniu nessa tarefa, agregando uma acusação adicional: seriam grupos fascistas, manipulados pela CIA, a serviço do imperialismo etc.
Hoje, forças governistas protestam contra o golpismo da oposição. Mas vale colocar em perspectiva, à luz da história recente, essa cartada do golpismo, usada desde pelo menos 2005 na época do escândalo do Mensalão. Em agosto de 2013, depois do auge dos protestos, Dilma sancionou a Lei das Organizações Criminosas [9]. A lei forjou a categoria do "crime por associação" e passou a ser imediatamente usada para investigar e prender grupos militantes e de direitos humanos. Só no Rio de Janeiro, entre 2013 e a realização da Copa de 2014, 72 coletivos de luta foram criminalizados, com centenas de ativistas encarcerados e quebra generalizada do sigilo de comunicação, atingindo também sindicatos e políticos da oposição de esquerda.
Além disso, nos últimos anos, o governo autorizou a intervenção militar nas favelas com forças federais, reforçando a política de "pacificação militar", inspirada em Medellin e Gaza, e que já vinha sendo conduzida pelos seus aliados do PMDB no estado do Rio. Enquanto isso, nada foi feito pelo governo quanto à persistência dos "autos de resistência", uma espécie de salvo-conduto concedido à polícia para execuções sumárias, o que contribui para camuflar os números de assassinatos e desaparecimentos. Diante da morte de suspeitos pela polícia, o procedimento do auto de resistência permite resolver a situação com o preenchimento de uma declaração de que a morte foi em conflito, dispensando assim maiores investigações sobre as circunstâncias. Essa foi outra promessa de campanha de Dilma em 2014 descumprida, contrariando as demandas dos movimentos de direitos humanos [10].
Para completar o quadro, em 2015, Dilma encaminhou ao Congresso a primeira lei antiterrorismo do Brasil, um país que nunca teve tradição nesse tipo de atividade em sua história. A lei foi levada ao parlamento por Dilma em regime de urgência de votação [11], para poder ser aplicada durante as Olimpíadas de 2016, quando a crise provavelmente estará mais enraizada. Em certo sentido, o golpe já aconteceu.
Diante de tudo isso, a esquerda prefere mobilizar-se contra o impeachment (chamado de "golpe") e sistematicamente ridicularizar os protestos de rua que, com o agravamento da crise e o aprofundamento da operação LavaJato, não vão cessar tão cedo, devendo aumentar em número e intensidade. A saída se tornou uma idealizada "saída pela esquerda", como se houvesse uma porta ideológica pelo que pudéssemos simplesmente fugir. Não há. Como em 2013, a saída precisará ser aberta pelas próprias lutas, cavando uma brecha na conjuntura. Só que, em 2015, com a repressão que o próprio governo presidiu em 2013-14, as coisas estão mais difíceis para os novos movimentos.
Será preciso construir a partir da onda crescente de indignação que, de uma forma ou de outra, passa pela tendência global "antipolítica" e pelo movimento anticorrupção. Eles não devem ser negados de imediato. Necessitamos de uma visão prospectiva diante dessas forças. Não é possível fazer isso saindo às ruas com tábuas programáticas de salvação sobre as cabeças e bandeiras vermelhas, como a esquerda tem tradição de fazer. Somente uma inovação no campo político e organizativo, aproveitando as tendências e emergências de uma sociedade em movimento, é possível começar a responder com uma saída forte à crise, para além do ajuste fiscal, e para além das falsas polarizações em que nos encontramos armadilhados.
[1] - http://mais.uol.com.br/view/1575mnadmj5c/propaganda-de-dilma-ataca-autonomia-do-banco-central-prometida-por-marina-04020E983762E4895326?types=A
[2] - http://www.valor.com.br/valor-data/tabela/5800/inflacao
[3] - http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/itau-unibanco-tem-lucro-liquido-de-r-5-945-bi-no-3o-tri
[4] - http://g1.globo.com/economia/seu-dinheiro/noticia/2015/10/bc-mantem-juro-em-1425-veja-5-perguntas-e-respostas-sobre-selic.html
[5] - http://www.infomoney.com.br/mercados/politica/noticia/4325036/dilma-nao-mentiu-ela-mudou-estrategia-diz-presidente-ipea
[6] - http://www.folhapolitica.org/2015/09/voce-quer-que-eu-perca-eleicao-rebateu.html
[7] - http://www.diariosp.com.br/noticia/detalhe/87438/dilma-segue-com-popularidade-baixa-diz-pesquisa
[8] - http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/10/1700172-a-pedido-de-lula-pt-recua-nas-criticas-a-levy-e-poupa-cunha.shtml
[9] - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm
[10] - http://www.pt.org.br/dilma-defende-lei-contra-autos-de-resistencia/
[11] - http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/06/1644803-as-vesperas-das-olimpiadas-governo-cria-projeto-que-tipifica-terrorismo.shtml
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