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Pós-conflicto na Colômbia (4). Sem convite: mulheres na Havana

A situação e incidência das mulheres nas negociações de paz têm sido escassa a nível global. Qual é a situação nos diálogos entre o governo colombiano e as FARC na Havana? English Español

Isabela Marín Carvajal
4 Fevereiro 2016
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Guerrilheiros das FARC. Ricardo Mazalan /AP/Press Association Images. All rights reserved.

No segundo semestre de 2013 e quando se estava perto de cumprir um ano do avançado processo de paz entre as FARC e o governo colombiano, a Mesa de Negociações da Havana estava formada por vozes quase exclusivamente masculinas, contando nesse momento com somente uma mulher entre os negociadores – Judite Simanca Herrera, alias “Victoria Sandino”, membro da Mesa de Negociações desde abril de 2013. Contudo, durante os anos seguintes o panorama tem vindo a transformar-se notavelmente.

Fatores como as ações levadas a cabo pelas mulheres para aumentar a sua influência sobre as negociações de paz, a presença de atores com influência sobre a toma de decisões nas negociações que assumiram um papel de aliados/as das mulheres e a instalação de mecanismo formais para garantir a participação da sociedade civil, colocam o processo de negociação de paz na Havana num lugar “exemplar” no que toca à participação das mulheres nas negociações de paz e na abertura de espaços para a sua relevância no planeamento do pós-conflicto e a construção da paz.

Tendo isto em conta, a Colômbia passou a ser um dos poucos casos, juntamente com países como as Filipinas, Guatemala e Irlanda do Norte, nos quais se conseguiu alterar um pouco a balança de inequidade que se tende a dar nestes tipos de espaços de toma de decisões.

A luta das organizações de mulheres e os seus êxitos ante o processo de paz

Um primeiro acontecimento que marcou a diferença no decorrer das negociações de paz, foi a realização da Cimeira de Mulheres e Paz em outubro de 2013. A cimeira teve lugar a partir a da iniciativa de dez organizações de mulheres do país e o apoio da ONU Mulheres, que procuravam através deste espaço a confluência de uma grande multiplicidade de organizações de mulheres aumentar a presença das mesmas nas negociações de paz. Na Cimeira participaram mais de 500 mulheres de diferentes setores sociais. A partir da realização da Cimeira de Mulheres e Paz, elaborou-se um documento que recolhe as 810 propostas que as mulheres apresentaram em dito espaço, o qual foi apresentado à Mesa de Negociações em 2015. Este documento incluiu uma serie de considerações gerais incluindo os princípios básicos para a incorporação do approach de gênero em todos os pontos do acordo.

Os esforços das organizações de mulheres no marco da realização da Cimeira e o apoio da ONU Mulheres atraíram a atenção de outros membros da comunidade internacional, os quais também começaram a exercer pressão sobre o governo colombiano sobre a importância de incluir mais mulheres na mesa de negociações e na verificação e execução dos acordos. Desta maneira, um mês depois da Cimeira, a finais de novembro de 2013, anunciou-se a nomeação de duas plenipotenciárias que substituíram Luís Carlos Villegas (que fora presidente da Associação Nacional de Industrias da Colômbia durante vários anos, antes de ser nomeado plenipotenciário em setembro de 2012) na mesa de negociações em representação do governo. Por um lado, nomeou-se Nigeria Rentería, Alta Conselheira para a mulher, e por outro lado, nomeou-se Maria Paulina Rivero, até ao momento Diretora de direitos humanos do ministério do Interior.

Por outra parte, entre novembro de 2012 e setembro de 2013, instalaram-se os Foros e Mesas de Trabalho a nível nacional e regional nos quais as mulheres puderam deixar patentes a suas propostas sobre os temas do Acordo Geral, conhecido como as consultas cidadãs para a finalização do conflito armado e a construção duma paz estável e duradoira. De acordo com informação disponível sobe os eventos, a participação de mulheres nestes espaços formais foi de 4.276 propostas, o que representa um 45% total dos participantes. Os foros tiveram representação de mulheres indígenas, afrodescendentes, camponesas, jovens, LGBTI, mulheres vítimas do conflito armado, empresarias, defensoras dos direitos humanos, ativistas de paz, sindicalistas, de partidos e movimentos políticos. Os resultados foram sistematizados pela ONU e entregados à Mesa de Conversações através dos países garantes, a Cuba e a Noruega.

Os temas priorizados pelas mulheres nos foros foram a verdade, reparação e justiça, incluído no ponto sobre as Vítimas, assim como o desenvolvimento social rural e medidas efetivas para promover uma maior participação política. Algumas das propostas consistiram em que, uma vez conhecida a verdade, os atores legais e ilegais assumissem a responsabilidade pelos factos victimizantes. Também se sublinhou a necessidade de criar comissões de verdade que deviam incluir mulheres na equipa e de criar subcomissões especiais para tratar os assuntos de gênero. E em quanto ao componente de reparação, a criação de programas de proteção das mulheres vítimas e líderes em situação de risco, nas que se adoptariam medidas especiais de prevenção, proteção e garantia de não repetição sobretudo em zonas de reintegração de combatentes.

As propostas incluídas no ponto de desenvolvimento agrário centraram-se nas necessidades educativas, de saúde, habitação e ingressos. Adicionalmente, neste ponto, recomendou-se como algo fundamental incluir um capitulo específico sobre a Mulher Rural (articulado em função da lei 731 de 2002 que pretende favorecer a mulher rural) na futura lei de terras e desenvolvimento rural. Sobre a participação política as exigências foram dirigidas a reduzir a inequidade de gênero na participação nos espaços de toma de decisões, como os partidos, a administração pública e os espaços de participação cidadã, assim como transformar as práticas discriminatórias dos partidos e outas expressões de participação politica y cidadã. Por último, nas consultas destacou-se uma proposta que se incluiu entre os temas transversais do Acordo, que se referia às contribuições à cultura de paz através da rejeição da militarização, da guerra e da violência contra a mulher, como a expressão da cultura patriarcal na que prevalecem os padrões de discriminação.

Finalmente, em setembro de 2014 anunciou-se a instalação duma Subcomissão de Gênero na Havana. A Subcomissão é uma instancia de caráter técnico que se encarrega de rever os acordos em função das recomendações apresentadas por especialistas/os em temas de género. Está formada por cinco representantes do governo e cinco da guerrilha, liderada por Maria Paulina Rivero, em representação do governo, e Victoria Sandino, em representação da guerrilha. No marco da criação da Subcomissão, viajaram até Cuba organizações nacionais e regionais de mulheres vítimas do conflito, de empoderamento e defesa dos direitos das mulheres, de construção de paz desde a arte, de ex-combatentes, de luta pelo reconhecimentos de direitos LGBT, e de organizações indígenas, camponesas e negras (em representação das organizações viajaram 16 mulheres e 2 homens).

Ditas viagem tiveram como objetivo disponibilizar um espaço para que cada representante apresentasse as suas posições e reivindicações, principalmente perante a Subcomissão de Gênero e, nalguns casos, perante parte dos negociadores. Da mesma forma, os representantes entregaram uma proposta coletiva sobre os acordos que estão a ser negociados. E nos ciclos de visitas das delegações de vítimas também houve uma participação bastante alta de mulheres: das 60 pessoas que fizeram parte das 5 delegações de vítimas, 36 eram mulheres, ou seja, 60%. No marco deste mecanismo, conseguiu-se colocar em cima da mesa o tema da violência sexual durante o conflito armado, que é um dos assuntos mais importantes para as organizações que participam nas negociações de paz. Uma das preocupações é a falta de reconhecimento deste delito por parte dos atores armados ilegais – se bem que o Registro Único de Vítimas tem documentados 1.724 casos de violência sexual que tiveram lugar entre 1985 y 2012, os paramilitares, durante o processo Justiça e Paz com as AUC, os mesmos tão só confessaram um total de 96.

Uma das especialistas em gênero, que viajou à Havana, entrevistada em março de 2015, disse o seguinte referindo-se às vantagens da criação da subcomissão de gênero:

“(...) eu acho que realmente esta subcomissão de género está a ter sucesso; ganhou um reconhecimento e legitimidade por parte da mesa de tal forma que quando se leem os pontos acordados damo-nos conta que alguém levantou a mão pelos direitos das mulheres, não porque sejam mais feministas, mas claramente porque se evidencia o trabalho levado a cabo, fundamentalmente, pela subcomissão de gênero”.

Não é tudo “cor-de-rosa”

Pese ao expressado anteriormente, ainda há vários espaços paralelos à mesa de negociações nos que se discutem temas fundamentais em termos de verdade, justiça transicional e planeamento do pós-conflito nos quais a representação de mulheres continua a ser mínima. Alguns destes espaços são: o Concelho Nacional de Paz, que conta unicamente com uma quota para organizações de mulheres; a Comissão de Esclarecimento Histórico, na qual entre 12 comissionados e os dois redatores convocados para escrever os relatórios, só se encontra uma mulher; nem entre os especialistas nacionais e internacionais que estiveram na Havana assessorando as delegações, nem entre os assessores que discutem os temas de fundo de negociação nem entre os expertos que foram convocados para discutir cada um dos temas da agenda tem havido mulheres, com a exceção do ponto sobre as vítimas.

Por outra parte, as organizações de mulheres têm uma visão pessimista do que se está a conseguir no marco das negociações e do Acordo de Paz, enquanto as suas reinvindicações à volta do tema da violência sexual, por motivos tais como a dificuldade em que os seus perpetradores aceitem a responsabilidade por este tipo de atos, a pouca documentação e investigação que há sobre como se produziu a violência sexual durante o conflito armado na Colômbia e as barreiras que existem para interpor denúncias, em grande parte devido ao estigma social que recai sobre as vítimas e pela re-vitimização que sofrem por parte dos funcionários públicos que as questionam. Como o expressou uma das especialistas de género que viajou à Havana, entrevistada em Bogotá em março de 2015, a importância de que os atores reconheçam a sua responsabilidade em atos e violência sexual é fundamental a nível simbólico para o processo de reparação e empoderamento das vítimas:

“Nós sublinhamos muito mais o efeito da justiça nas mulheres vítimas de violência sexual porque, em primeiro lugar, a mulher que é violada considera que não tem direitos. Mesmo as pessoas mais discriminadas neste pais têm consciência de que a guerra violou fortemente os seus direitos, mas a realidade é que as mulheres partem do princípio de que não é um direito seu que não as violem, que não é um direito seu que não as maltratem, que não é um direito ter uma vida livre de violência. Pensam que ele lhe bateu porque eu não tinha a comida pronta, que o senhor me violou por tal coisa. O único caso no qual é a vítima que se sente culpada e com vergonha é a violência sexual. E se a mulher chega a esquecer-se que ela é a culpada do que aconteceu ou começa a superá-lo, dita “culpa” é-lhe recordada pela comunidade, pela família, pela administração de justiça.”

Contudo, associado a este tema, pode-se interpretar como um êxito parcial o facto de que a violência sexual tenha sida classificada como um dos delitos sobre os quais não haverá amnistia ou indulto na Jurisdição Especial para a Paz e no esboço conjunto do Acordo sobre Vitimas do Conflito, publicado em dezembro de 2015, onde também se estabelece que a Unidade de Investigação e Acusação contará com uma equipa de investigação especial para os casos de violência sexual, e que se “terão em conta as disposições especiais sobre como se provam os factos em dita matéria, incluídas no Estatuto de Roma”.

Assim as coisas, a experiência que teve a Colômbia em quanto à inclusão de mulheres numa perspetiva de género nas negociações e o Acordo de Paz da Havana, é pelo menos, encorajante. Ainda falta por ver se este ímpeto se mantem durante o período de implementação dos acordos e nos mecanismos que se estabeleçam para o seu desenho, ou se novamente se deve pressionar desde as organizações de mulheres para assegurar que a sua voz e a sua agenda são tidas em conta na construção dum país em paz.

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