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Pós-conflito na Colômbia (6). Transição militar e policial: Cinco desafios

O caso colombiano quebra qualquer tipo de molde e seguramente será o modelo a seguir para superar os conflitos armados não internacionais próprios do século XXI, que não podemos caracterizar como guerras civis. English Español

Jean Carlo Mejía Azuero
12 Fevereiro 2016
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Forças Especiais Colombianas durante uma parada militar em 2015. Fernando Vergara / AP/Press Association Images. All rights reserved.

A Colômbia encontrasse atualmente a estruturar um sistema inovador e único de justiça transicional, como resultado da utilização de dois preceitos: o primeiro consiste na aplicação dum marco constitucional (Marco Jurídico – Político para a paz) e o segundo têm como origem o diálogo com o principal grupo armado à margem da lei que existe no país (horizontalidade na mesa).

Tendo em conta o primeiro preceito, e como resultado do respeito pela Constituição e pela Lei, o governo defendeu desde o começo que as Forças Armadas não serão negociadas na Havana e assim aconteceu, como o manifestaram os dois Generais que atuam como negociadores plenipotenciários na mesa. De facto, o recente acordo sobre justiça teve um componente unilateral, ao assinar-se o compromisso governamental por parte dos ministros da justiça e de defesa no campo de desfiles da Escola Militar de Cadetes, que inclui os parâmetros de uma “justiça conjuntural” para os agentes do Estado; dentro dos quais se incluem os membros das Forças de Segurança Pública.

A simbologia do ato levado a cabo na Escola José Maria Córdova resulta estratégica para a memória institucional e coletiva das Forças Armas nos últimos cinquenta e dois anos; muito mais porque se realizou no dia de promoção a general do atual comandante do Exército Nacional, encarregado de levar a cabo a maior transformação da Força que foi decisiva na guerra, e que sem nenhuma dúvida será transcendental para a construção da paz. Mas dita transformação não é o resultado duma visão conjuntural, mas sim duma política sectorial enraizada no ano 2006, quando se começaram a elaborar as normas estratégicas que originariam as regras de engagement das Forças Militares, a Política Integral dos Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário, a organização profissional dos assessores jurídicos operacionais, entre outros aspetos.

Mas existem em relação ao sector da segurança [1] ou em relação ao sistema de segurança [2], em função de se optar pela posição da ONU ou da OCDE em relação às transições militares, muitos desafios em relação ao entendimento e dimensão de reformas institucionais no Ministério de Defesa, nas Forças Militares e na Policia Nacional. Tentaremos abordar cinco desses desafios, que em termos genéricos poderíamos denominar como: (1) Entendimento através duma estratégia pedagógica das diferenças na forma de atuar das Forças Armada Colombianas em comparação com aqueles países que tiveram expressões de violência estrutural resultantes de autoritarismos ou guerras civis. (2) Entender os processos de transformação institucional e a sua evolução, ponderando-os com as eventuais recomendações da Comissão de Esclarecimento da verdade, para um contexto sui generis. (3) Compreensão dos fracassos que se podem encontrar noutras experiências internacionais relacionados com transições militares e policiais e os seus efeitos atuais em termos de segurança. (4) Análise profunda da existência ou não de estândares internacionais em relação às garantias de não repetição que pudessem ser aplicáveis à transição militar e policial colombiana. (5) Redefinição de roles, funções e missão das Forças Militares e da Policia Nacional num complexo contexto de multi-criminalidade. Analisemos brevemente cada uma delas, através duma denominação tentativa mas não fechada.

1. Criação duma estratégia pedagógica em redor ao fenómeno de violência na Colômbia, a participação das Forças Armadas e as diferenças com outros casos de superação do passado.

O caso da violência na Colômbia difere doutros casos no Cone Sul, América Central, Europa oriental, África e Asia, tendo em conta as situações que originaram o estabelecimento de transições politicas em direção a democracia, já fosse para superar regimes autoritários ou para superar guerras civis, no sentido clássico. Se bem que é verdade que não se distingue de ditos casos em relação à gravidade de muitos factos, sim que se distingue ostensivamente em elementos que defenderam o Estado, os diferentes governos e ainda certas instâncias da comunidade internacional. 

A Colômbia é um Estado com instituições respeitáveis, sendo algumas delas centenárias, com uma democracia em funcionamento e além disso com um reconhecimento por parte dos cidadãos em relação às suas Forças Armadas tanto a nível urbano como a nível rural. Assim o indicam as principais sondagens (Gallup, 2015) e estudos tão sérios como os da Universidade dos Andes e o Barômetro das Américas (Barômetro, 2015). Não obstante, muitos setores consideram que o caso Colombiano se enquadra dentro da experiência internacional e regional, o que gera em termos estratégicos o desafio de demonstrar a todos os níveis e lugares que não é assim.

Nestes dias de celebração do décimo-quinto aniversário do plano Colômbia, recordou-se precisamente a enorme dificuldade para convencer o Congresso América naquele então, de que o caso colombiano não era igual aos outros casos que tiveram lugar no continente em épocas de democratização e como se conseguiu alcançar dito feito.

É necessária uma pedagogia mais forte para mostrar ao mundo o motivo pelo qual a transição na Colômbia é única, porque não se podem aplicar estândares de transição para as Forças Armadas iguais aos aplicados noutras latitudes e porque precisamente as Forças Militares e Policiais foram as propiciadoras estratégicas do final do conflito armado.

2. A transformação do Sector de Segurança e Defesa na Colômbia e as eventuais recomendações dum Comissão de Verdade.

Talvez um dos desafios mais difíceis que enfrentará a Colômbia nos próximos anos será o ter em conta todas as transformações que se têm vindo a produzir a nível das Forças Armadas sobretudo na última década, em relação ao cenário de verdade extrajudicial com alto conteúdo de memória histórica; quer dizer, de narrativas geradas pelas vítimas dentro duma Comissão da Verdade. Se a Colômbia não contextualizar a experiência comparada ou se contextualizar com os olhos fechados em relação ao direito International, podemos enfrentar muitos problemas em relação a como enquadrar o papel da Força Pública dentro do conflito armado através das diferentes etapas.

Como se têm vindo a estruturar a nossa justiça transicional, privilegiando a verdade judicial e extrajudicial com a aplicação de critérios de justiça restauradora e remunerativa com flexibilidade de aplicação de sanções punitivas, parece claro que o cenário macro estratégico de garantia de não repetição será o extrajudicial. Ali terá que haver muito cuidado, sobretudo na forma em que se devem avaliar as transformações do sector de segurança e defesa, com as eventuais recomendações da Comissão da Verdade.

3. A experiência comparada mostra grandes fracassos no tema da justiça para a transição militar e policial no contexto regional.

A Rede de Segurança e Defesa da América Latina no seu Atlas comparado da Defesa para o ano 2014 (RESDAL), reflete como 94% das Forças Militares da região são usadas contra as ameaças tradicionais e as novas ameaças contra a segurança cidadã, que classicamente têm vindo a ser resolvidas pela polícia. Além disso, um 76% dos países da região também usa os seus exércitos de terra, mar e ar na luta contra o narcotráfico. O triangulo norte (Guatemala, Honduras, Salvador) é a sub-região maus violenta do mundo. As Honduras são o pais do mundo com a maior taxa de homicídios do mundo.

Hoje, muitos destes países, e lentamente alguns dos Cone Sul como a Argentina, têm vindo a militarizar novamente e de forma progressiva as suas sociedades, depois de terem recuperado a democracia há três décadas. A Colômbia, com a desmobilização dos paramilitares e o surgimento de grupos criminosos, viu como a finais da década passado se deu inicio o declive na perceção de segurança cidadã e o aumento de fenómenos que afetam a vida cotidianas das pessoas.

É a radicalização de algumas transições do sector de segurança e defensa a causa do aumento da criminalidade que se observa na atualidade? Esta pregunta, que em si mesma constitui todo um desafio deve ser respondida pela Nação. Pessoalmente, pensamos que sim, que se trata duma causa.

4. Estândares internacionais de garantias de não repetição frente às Forças Armadas agora aplicados à Colômbia?

Outro desafio singular que devemos levar a cabo como Nação é entender se os princípios (soft law) do direito internacional sobre a luta contra a impunidade, concebidos noutros contextos e momentos, podem ser aplicados à Colômbia, sobretudo em relação às reformas do setor militar e policial. Temas como a depuração, desaparecimento de especialidades (como a inteligência militar), reformas doutrinais, curriculares, entre outras, tem que ser estudadas e analisadas com lupa, porque seriam muito possivelmente contra fácticos. A Colômbia é o Estado na região que mais capacitou soldados e policias em Direitos Humanos e DIH, segundo estatísticas do Ministério de Defesa para novembro de 2014; além disso é líder em direito operacional, sendo reconhecida a este nível pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

A degradação da guerra no país através das suas diferentes etapas e a presença de elementos como o financiamento do narcotráfico, a captura do Estado, o tráfico de pessoas, o tráfico de espécies, mineração ilegal, entre outros fatores, não podem levar-nos a tomar decisões que poderiam afetar a segurança no conflito a medio e longo prazo. Acreditamos que não há estândares em termos gerais que possam ser aplicados à Colômbia neste campo. Não obstante, vale a pena continuar a estudar o tema.

5. Roles, missões e funções

Um dos desafios mais interessantes no pós-acordo e noutras etapas de consolidação do mesmo será a forma em que se definam os roles, as missões e as funções entre das Forças Militares e da Policia Nacional. O tema realmente de fundo versa sobre quando separar a Policia Nacional do Ministério de Defesa e como aumentar a visão civil que não se pôde consolidar devido à existência do conflito armado e à existência duma polícia militarizada em muitos dos seus componentes. Nesse sentido, o verdadeiro desafio não se circunscreve a definir se se separam as FFMM da Policia Nacional, o que gerou algumas complicações em relação às missões, roles e funciones, mas também determinou o triunfo estratégico operacional sobre a subversão.

O tema consiste em saber quando; enganar-nos no timing e na forma pode supor demasiados problemas previamente reconhecidos na experiência internacional; muito mais quando a nível global se repensa o papel das Forças Militares numa democracia perante ameaças à segurança nunca antes imaginadas.

Como se pode ver são demasiados os desafios e as aristas que implicam os mesmos, para ser tratados em tão breve espaço de tempo. A realidade é que não há fórmulas mágicas para resolver problemas particulares de violência estrutural, que vêm duma guerra como a colombiana onde as Forças Armadas foram essenciais para a geração dum espaço de negociação e de possível terminação do conflito armado. Umas Forças Armadas que ao mesmo tempo tiveram que enfrentar fenômenos violentos que a população colombiana considera muito mais graves que o conflito armado, como o demostram estudos de Medicina Legal (2015) e a Direção de Investigação judicial da Policia Nacional (Dijin), através do seu relatório de criminalidade publicado anualmente desde os anos 60.

Para qualquer observador casual, inclusive para um investigador formado, mas sem experiência in situ, o caso colombiano é parecido aos outros casos da região (em termos de indicadores de violência), que originaram estândares internacionais para lutar contra a imunidade; mas a realidade é que o caso colombiano rompe com qualquer molde e seguramente será o modelo a seguir para superar conflitos armados não internacionais próprios do Século XXI, aos que não podemos caracterizar como guerras civis em todos os casos.

[1] Aproximação desenvolvida pela ONU em diferentes instâncias, relatórios e princípios, que se referem ao Ministério de Defesa, ao de Segurança e aos elementos militares e policiais.

[2] Aproximação aberta que estabelece a necessidade de reformar logo após uma transição política todas as entidades e organismo do estado que tenham alguma relação com o tema de segurança, entendo este conceito de forma multidimensional.

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