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A luta para dar a volta à crise brasileira

Os momentos de crise são também oportunidades para criar algo novo. O Movimento Passe Livre é uma boa contribuição para converter a negatividade da crise em positividade de inovação democrática. Español English

Bruno Cava
25 Janeiro 2016
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Protestas del Movimento Passe Livre. Newton Menezes/Futura Press

Em junho de 2013, o estopim para as grandes manifestações no Brasil foi o aumento do bilhete do transporte coletivo, que afeta imediatamente milhões de pessoas. Na época, foram 20 centavos. O ano de 2016 começa com protestos contra o aumento dos bilhetes por todo o Brasil. Em São Paulo e Belo Horizonte, a passagem subiu em 30 centavos; no Rio de Janeiro, em 40. Tanto quanto há três anos, os protestos estão sendo puxados pelo Movimento Passe Livre (MPL), um pequeno coletivo autônomo que defende o subsídio público integral dos bilhetes, de maneira que seu custo ao usuário seja zero. A diferença entre 2016 e 2013 é que, hoje, uma crise econômica e política sem horizonte de resolução semeia os ventos de pólvora e qualquer faísca pode levar a um tumulto de grandes proporções. O desencanto com a política é geral: existe indignação disseminada pelos escândalos de corrupção, perda do poder aquisitivo, aumento do desemprego, falta de perspectivas econômicas.

O bilhete do transporte é apenas um dos custos que vem aumentando. Num cenário de perda salarial, subiram também a tarifa da energia elétrica, gasolina, aluguéis, material escolar e outros itens básicos. A taxa de inflação de 2015 fechou em 10,7%, a maior em 13 anos, bem acima da meta oficial de 4,5%. Ela ficou acima, inclusive, do rendimento da poupança, prejudicando principalmente os pequenos poupadores que não investem em aplicações mais rentáveis. Enquanto isso, o governo aferra-se a uma política contracionista, com corte do investimento público e redução de direitos sociais e subsídios. O aperto fiscal do programa de austeridade, somado com um cenário externo desfavorável, tira do governo qualquer capacidade de reagir à espiral recessiva. Além disso, a Operação Lava Jato, conduzida pela polícia e justiça federais, não dá trégua aos políticos ligados ao governo e, em menor grau, também à oposição. A extensão e a profundidade das investigações da Lava Jato estão se mostrando uma verdadeira Glasnost do sistema político brasileiro e seus parceiros empresariais e financeiros. Ninguém parece estar a salvo, nem mesmo Lula. Tudo isso, aos olhos da população, deixa o caldo ainda mais azedo, provocando mais sentimento antipolítico e revolta.

Em São Paulo, os protestos puxados pelo MPL batem às portas do prefeito Haddad e do governador Alckmin. Haddad pertence ao Partido dos Trabalhadores (PT), o partido do governo federal. Alckmin, ao Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), o principal partido de oposição. Mas quando se trata de repassar os custos da crise à população, situação e oposição, esquerda e direita se unem para garantir a austeridade. É mais uma evidência do esvaziamento da polarização partidária entre as forças tradicionais, uma constante no Brasil desde a década de 1990. Na última eleição, Dilma situou a economia em primeiro plano, pautando a sua campanha no fato que não faria um ajuste estrutural neoliberal e que seus opositores fariam. Uma vez reeleita, o governo Dilma adotou, sem por nem tirar, o programa econômico da oposição. O resultado imediato foi a desilusão entre as suas próprias fileiras, do PT, exatamente num momento eufórico de vitória eleitoral que poderia ter sido aproveitado. Mais preocupante, foi a percepção de muitos eleitores que a presidenta mentiu. A ausência de figuras renovadoras ou forças políticas alternativas em escala completam o rol de ingredientes para uma crise permanente. No Brasil, não apareceu ainda nenhum Podemos, Pablo Iglesias ou Ada Colau e os personagens mais visíveis que vão emergindo da crise são os juízes e promotores à frente da Lava Jato, como Deltan Dallagnol (35 anos) e Sergio Moro (44 anos). O contexto não deixa de lembrar os anos 1990 na Itália, quando a operação mani pulite desmantelou os principais partidos, deixando um grande vazio que viria a ser ocupado por Berlusconi.

Em 6 de junho de 2013, os protestos do MPL começaram com 200 manifestantes em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em questão de duas semanas, as ruas estavam tomadas por milhões, em mais de 400 cidades, com ocupações de casas legislativas e a multiplicação das pautas e formas de protesto. Um dos destaques do levante de 2013 foi a campanha “Cadê o Amarildo?”, que ganhou projeção internacional, sobre o pedreiro negro, morador da favela da Rocinha, no Rio, torturado e assassinado pela polícia. Aquelas noites drásticas ficaram permanentemente na memória militante. No entanto, a progressão geométrica da quantidade de manifestantes não se repetiu depois de 2013, embora seja frequente ouvir nas marchas que “existe um cheiro de junho”. Por um lado, isto se deve ao aperfeiçoamento das técnicas repressivas por parte do estado, tais como o kettling, a vigilância das redes sociais e alterações legislativas. Em agosto de 2013, por exemplo, foi sancionada por Dilma a lei que cria o crime de “organização criminosa”, que permite denunciar pessoas apenas por “associação” a coletivos militantes. Para 2016, ano das Olimpíadas, a novidade será o crime de terrorismo, apresentado em regime de urgência pela presidência e tramitando no Congresso. Por outro lado, se deu também o desgaste da rotina de ir às ruas reivindicar, ser reprimido e depois concentrar-se na própria repressão e nos direitos humanos como pauta principal, num tipo de círculo vicioso que desvia o foco. Os protestos de rua durante a realização da Copa em 2014 foram pequenos e dispersivos. Em 2015, bem maiores, se concentraram no grito anticorrupção. Muitas vezes desprezado pela esquerda como pauta moral, o movimento anticorrupção na verdade serviu de guarda-chuva abrangente para as mais diversas irritações diante de governos, partidos e políticos. Toda essa indignação continua girando em falso, buscando formatos, narrativas e arranjos políticos para exprimir-se.

Para o MPL, o passe livre para todos poderia ser subsidiado mediante uma reforma tributária, cobrando-se um imposto progressivo de terra e habitação. Para o prefeito de São Paulo, isto seria inviável. Segundo ele, significaria consumir a totalidade do orçamento municipal de R$ 8 bilhões (US$ 2 bilhões), quadruplicando o subsídio já existente direcionado a idosos e estudantes. O MPL responde que não se trata apenas de uma questão quantitativa, mas de uma mudança do modelo de negócio que determina o transporte coletivo, além de toda uma filosofia de uma “vida sem catracas”. Coletivos como o MPL ou o Tarifa Zero (Belo Horizonte) propõem uma democratização qualitativa da organização da circulação e dos fluxos da cidade. Fosse conferida transparência aos contratos e abertas as “caixas pretas” do lucro dos empresários, certamente a conta seria diferente. Além disso, aplicar recursos na mobilidade urbana não pode ser encarado meramente um gasto, mas como um investimento direto na produtividade da metrópole. Mas Haddad limita-se a argumentos tecnocráticos, assim como o governo Dilma, sintoma de uma esquerda que, bom vinho nos anos 1990, já virou vinagre. Em vez de inovações democráticas, limita-se a apresentar planilhas e cálculos, ou então a propor novas leis repressivas. Incapaz de dialogar politicamente com os militantes do MPL, a quem já chamou de “fundamentalistas”, só resta mesmo ao prefeito aliar-se ao governador e chamar a polícia militar, cuja truculência é uma marca nacional tanto quanto o futebol.

Mas nem tudo são aspectos negativos. Em 2015, além do movimento anticorrupção, houve também um movimento vibrante de estudantes secundaristas que ocupou quase 200 escolas em São Paulo, tornando-as espaços autogestionários. Essa onda de ocupações surgiu em resposta à reforma escolar pretendida pelo governo estadual, o que levaria à redução do número de escolas. De maneira inesperada, os estudantes autonomamente se organizaram e conseguiram, depois de alguns meses, a suspensão da reforma e a exoneração do secretário de estado da educação. Também, no segundo semestre de 2015, aconteceu a primavera feminista, uma mobilização baseada nas redes sociais que, com diversas tendências internas e conflitantes, assumiu um sentido geral bastante positivo. Outra mobilização marcante foi o movimento ambientalista em resposta ao rompimento da barragem de Mariana, no estado de Minas Gerais, que causou 17 mortes e destruiu os ecossistemas do Rio Doce. A barragem pertence a um consórcio formado por uma grande empresa de mineração brasileira, a Vale S.A., e a anglo-australiana BHP Billiton, e integra o projeto estratégico desenvolvimentista abraçado pelo governo Dilma. Todos esses quatro blocos de lutas – anticorrupção, estudantil, feminista e ambientalista – não podem ser reduzidos a correias de transmissão dos principais partidos ou governos. Eles transcendem os jogos políticos definidos pela polarização entre situação e oposição, ainda que, em todos os casos, sempre haja a tentativa de captura. É uma indignação que não se organiza segundo os canais tradicionais partidários ou sindicais, e que ganhou massa crítica no ano passado.

Momentos de crise aguda são também oportunidades para se criar o novo. Quando os arranjos de poder parecem se esfacelar, é uma boa hora para construir novas forças políticas e econômicas, capazes de converter a negatividade da crise em positividade da inovação democrática. O próprio PT apareceu assim, na decadência da ditadura militar, acelerando o seu fim. Isto implica lidar com a indignação latente pela sociedade e ser capaz de oferecer um projeto alternativo que enfrente os temas da corrupção, do direito à cidade, do desenvolvimento, do meio ambiente, entre outros. Sem uma intervenção criativa nesse sentido, contudo, nada impede que a crise brasileira se distenda ainda por muito tempo, numa longa amargura. A ação do MPL é uma contribuição para que isto não aconteça.

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