democraciaAbierta: Opinion

O preço da greve e da paz no Equador

É uma paz macabra que não esconde o que todos sentimos: não haverá paz enquanto não houver justiça ecossocial

Manuela Lavinas Picq
5 Julho 2022, 12.01
Polícia dispersa manifestantes durante greve nacional no Equador, em junho de 2022
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Alamy Stock Photo

Na tarde de 30 de junho, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) e o governo do presidente Guillermo Lasso assinaram um "ato de paz" sob a mediação da Conferência Episcopal Equatoriana, encerrando uma greve de 18 dias. Durante quase três semanas, o país viveu uma convulsão social, marcada por centenas de interdições de estradas em todo o país, estado de emergência e forte repressão governamental. Antes mesmo de começar os diálogos, o governo Lasso declarou guerra ao povo, prendendo o presidente da Conaie, Leonidas Iza, e autorizando o uso de força letal contra os manifestantes.

O ato de paz pôs fim a duras semanas de grande violência, em que milhares de manifestantes permaneceram em vigília dia e noite e outras milhares ficaram sem o trabalho diário que põe comida na mesa de suas famílias. A assinatura da paz pôs fim ao confronto do povo armado contra o povo desarmado.

Lasso se salvou do impeachment, mas perdeu a legitimidade e está mais vulnerável do que nunca

Mas ninguém saiu ganhando. No entanto, quem mais perdeu foi o povo. Ele colocou seu corpo na linha de frente e perdeu vidas, além do custo humano de centenas de feridos e detidos. Há muitos corpos para curar e pessoas criminalizadas para apoiar. O governo também perdeu. Lasso se salvou do impeachment, mas perdeu a legitimidade e está mais vulnerável do que nunca. A paz pôs fim à violência armada, mas deixou a violência social intacta — talvez pior.

Que paz e a que preço?

Através do ato de paz, o governo concordou em baixar o preço do combustível em 15 centavos, revogar o Decreto 95 que amplia a exploração de petróleo na Amazônia e suspender o estado de exceção em várias províncias. A revogação do Decreto 95 talvez seja a única conquista importante. O resto do acordo é uma lista de boas intenções: "alterar" o Decreto 151, que concede licenças ambientais por dois meses ao invés de 15 para indústrias extrativas de mineração, "trabalhar" as políticas de subsídios, "garantir" consulta prévia, livre e informada (que já é um direito constitucional) e "emitir" uma declaração de emergência para o sistema de saúde.

A Conaie iniciou a greve com dez demandas, todas viáveis, que incluíam direitos coletivos ao consentimento prévio, moratória à mineração em mananciais, direitos trabalhistas e sanitários, moratória às pequenas dívidas, ajuda aos camponeses e maior investimento em saúde e educação. São demandas importantes e legítimas, que atingem diversos setores do povo equatoriano, não apenas os povos indígenas.

Mas praticamente todas essas demandas permanecem desatendidas. Vários grupos, como jovens, estudantes, feministas e trabalhadores, se uniram à causa indígena, justamente porque as demandas eram amplas e legítimas. No entanto, o diálogo começou tarde demais, depois de duas semanas, e na ausência do presidente Lasso, que em vez de enfrentar os problemas do país que lidera, enviou seus ministros, assim como os latifundiários enviaram seus capatazes para dialogar com os indígenas.

Em vez de incentivar o racismo, Lasso poderia ter unido forças com a Conaie, uma autoridade inegável em um país multinacional como o Equador

Os 18 dias de greve tiveram um alto preço humano e social. Não são apenas os mortos, os mais de 300 feridos e as centenas de detidos, mas também o legado da violência militar e racista. O Equador se encontra novamente diante da polarização social e ataques contra o povo vistos em diversas partes do país, como a violência racista de jornalistas, a violência de manifestantes contra jornalistas, a violência das mulheres manifestantes contra as mulheres de mercado, a violência de manifestantes contra aqueles que se recusaram a protestar. O que restou foi uma sociedade ferida de corpo e alma. Agora precisamos encontrar maneiras de costurar as cicatrizes em meio a esse legado de racismo, ódio e violência em um país mais polarizado e profundamente pobre e desigual.

Antes e depois da greve

A crise não é de hoje. O Equador sofre com o autoritarismo, o extrativismo e a corrupção que dilaceram a América Latina. Mas a greve nacional convocada pela Conaie tem seu contexto. Depois de uma década de progressismo autoritário, erroneamente chamado de “Socialismo do Século 21”, que promoveu políticas neoliberais, patriarcais e extrativistas e criminalizou o protesto social e indígena, nos vemos agora diante do neoliberalismo de um banqueiro do Opus Dei implicado nos Papéis de Pandora, que vive em uma bolha de insensibilidade social.

Assim que assumiu a presidência em 2021, Lasso aumentou o preço do combustível. Em direção contrária à maré verde, vetou a lei do aborto por estupro aprovada pelo Tribunal Constitucional. Em vez de servir ao povo, comprometeu-se com o extrativismo rentista.

Por um lado, promete duplicar a exploração de petróleo na Amazônia, inclusive na reserva de Yasuní, onde ocorreria um ecocídio e genocídio dos povos isolados Tagaeri e Taromenani. Por outro, amplia o extrativismo mineral, permitindo a entrada de empresas estrangeiras em territórios com ecossistemas frágeis na zona andina, o que aumentaria a poluição ambiental e a desapropriação dos territórios ancestrais de comunidades indígenas e camponesas, acelerando as mudanças climáticas.

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A reação (e repressão) do governo à mobilização social liderada pelo movimento indígena já causou fatalidades

Em 2022, apenas 30% da população economicamente ativa do Equador tem emprego estável, um terço das crianças sofre de desnutrição e o nível de gravidez na adolescência está entre os mais altos da região. O analfabetismo aumenta enquanto mais de um milhão de jovens não têm acesso à universidade. Essa exclusão gerou um aumento sem precedentes da violência, mesmo no sistema prisional. Sob Lasso, a migração em massa disparou, forçando milhares de famílias a arriscar suas vidas em busca de trabalho na América do Norte. Enquanto as pessoas migram e enviam remessas para o Equador, o presidente evade impostos sobre sua fortuna de milhões de dólares através de paraísos fiscais na Flórida e Dakota, nos Estados Unidos. A sensação de desapropriação, roubo e abuso é profunda.

Essas desigualdade culminaram na greve nacional convocada pela Conaie. O governo colocou lenha na fogueira ao prender Leonidas Iza já nas primeiras horas da greve e ao lançar uma ofensiva repressiva contra os protestos sociais. Escancarando sua arbitrariedade moral, Lasso decretou estado de emergência para manifestantes indígenas ao mesmo tempo que convocou "marchas pacíficas" contra a greve em bairros de classe alta; chamou ao diálogo na televisão, enquanto ordenou que os mais vulneráveis, incluindo crianças, fossem reprimidos com balas. Foi uma mistura explosiva de repressão, racismo e falta de diálogo que gerou mais resistência, aumentou a violência social e aprofundou a revolta popular.

Em vez de declarar estados de exceção, restringir direitos fundamentais e matar, o governo deveria ter buscado diálogo desde os primeiros dias. Em vez de incentivar ataques racistas, Lasso poderia ter unido forças com a Conaie, uma autoridade inegável em um país multinacional como o Equador, para identificar soluções.

Foram 18 dias de violência e desacordo, de polarização e frustração. Os manifestantes deixaram a capital após o ato de paz, muito contestado entre as lideranças indígenas responsáveis ​​pela greve, e anunciaram que permanecerão vigilantes nos próximos 90 dias, indicando que voltarão às ruas caso o governo descumpra o estabelecido no acordo.

Agora o que resta é desfrutar desta paz amarga. Agora resta desejar que os mortos descansam em paz e que as cidades voltem ao normal. Mas o preço da paz é alto. Ela custou sangue e a prevalência do status quo. É uma paz macabra que não pode esconder o que todos sentimos: não haverá paz social enquanto não houver justiça ecossocial.

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