
Violência sexual, centro de tortura e luta pela memória histórica no Chile


Uma casa aparentemente sem nada de mais na Rua Irán, no sudeste de Santiago, capital do Chile, esconde uma história sombria. A estrutura de dois andares foi usada para deter, torturar e assassinar oponentes políticos durante a ditadura chilena de Augusto Pinochet (1973-1990).
O uso generalizado de violência sexual contra os detidos, que permaneciam sempre com os olhos vendados, gerou o macabro nome “Venda Sexy” (de venda para os olhos), supostamente cunhado pelos autores das atrocidades.
As mulheres foram particularmente alvo de abuso sexual, estupro, gravidez forçada, aborto e assédio sexual. Um cão pastor alemão chamado Volodia foi treinado para estuprar reclusos. Tanto os prisioneiros homens como mulheres foram submetidos a espancamentos, enforcamentos, choques elétricos, roleta russa, asfixia e privação de sono, entre outros métodos de tortura. Os prisioneiros chamavam o centro de detenção secreta, a Discoteca, devido aos agentes de Pinochet tocarem música alta o tempo todo.
Segundo a associação de sobreviventes, pelo menos 85 presos políticos foram mantidos no local entre 1974 e 1977. Mais de um quarto deles (23) foi morto e “desaparecido”. Eles estavam entre as 41.470 vítimas de detenção política, tortura, desaparecimento forçado e execução extrajudicial perpetradas pelo regime de Pinochet em 1.168 centros de detenção - crimes que em muitos casos, como observa a Anistia Internacional, ainda estão esperando a revelação da verdade, justiça e a reparação.
Após décadas de campanha pelos sobreviventes, em 2016 o Estado concedeu status de Monumento Histórico à propriedade
Venda Sexy está em mãos privadas desde o final da era Pinochet. Após décadas de campanha pelos sobreviventes, em 2016 o Estado concedeu status de Monumento Histórico à propriedade. Mas a venda misteriosa em abril do imóvel por seu proprietário a um agente imobiliário irritou sobreviventes e ativistas que têm a esperança de que Venda Sexy possa finalmente ser transformada em um centro memorial aberto ao público.
Além disso, teme-se que o antigo centro de detenção seja demolido, apagando não apenas um importante local de memória, mas também uma chave para entender as origens da violência de gênero atual, praticada pelo Estado contra opositores políticos no atual Chile.
Memória à venda
O empresário José Saravia comprou a Venda Sexy em 2005 e morou lá com sua família até recentemente. Em 2016, o Estado ofereceu a Saravia o preço de avaliação de 356.000.000 pesos chilenos (US$ 495.765), mas ele exigiu 486.000.000 pesos chilenos (US$ 676.803) e se recusou a negociar um preço mais baixo. No entanto, em abril deste ano, Saravia, dono da empresa Aluminios Centauro Limitada, vendeu a casa à empresa imobiliária Sociedad de Inversiones Arriagui Limitada por apenas 211.000.000 pesos chilenos (US$ 293.838).

Esse acordo ocorreu apesar da lei chilena dar prioridade ao Estado na aquisição de Monumentos Históricos de propriedade privada, se eles forem colocados à venda. Respondendo a uma solicitação de informação apresentada pelos sobreviventes, o Conselho Nacional de Monumentos disse que não foi informado da venda e que está atualmente em contato com dois ministérios para encontrar uma solução. Não está claro por que Saravia decidiu vender a casa por menos da metade do dinheiro que ele pedia anteriormente ao Estado, ou por que uma empresa imobiliária compraria uma propriedade cuja história manchada de sangue é tão notória.
Desde que as notícias da venda se tornaram públicas em agosto, os ativistas organizaram vários protestos na frente de Venda Sexy, com cartazes que dizia “La memoria no se vende” (a memória não está à venda).

Os sobreviventes acreditam que aqueles envolvidos na venda e compra de Venda Sexy estão tentando impedir que a propriedade se torne um memorial público. Muitos temem que a propriedade seja demolida, como aconteceu com outros notórios centros políticos e de tortura da ditadura, como Villa Grimaldi e José Domingo Cañas 1367.
Cantos cautivos
Minha conexão com Venda Sexy é tanto pessoal como profissional. Quando criança, eu tinha pouco conhecimento da violência política da era Pinochet. Moramos no exterior, e meus pais, exilados políticos, pouco me contavam. Somente na adolescência, na década de 1990, depois que retornamos ao Chile, comecei a compreender a magnitude do que aconteceu nos centros de detenção do regime de Pinochet.
Mesmo contra a vontade deles, acompanhei meus pais a um culto ecumênico realizado na frente de Venda Sexy. Eles haviam estado presos lá, e essa era a primeira vez que voltavam desde então. Do lado de fora, em uma noite cinzenta, a dor e a emoção de sua experiência dificilmente podem ser descritas.

Participar do serviço e conhecer outros sobreviventes também teve um impacto profundo em mim. Naquela época, eu estava estudando violino e me chocou muito descobrir que a música havia tido um papel tão proeminente na Venda Sexy, para disfarçar os sons e até mesmo como como um componente de tortura.
Isso despertou meu interesse duradouro em coletar músicas e memórias de experiências musicais em centros de detenção política, muitas dos quais fazem parte de um arquivo digital que compilei.
Embora os agentes de Pinochet usassem música contra presos políticos em vários centros de detenção, essa prática parece ter sido aplicada de forma mais sistemática na Venda Sexy. Para a sobrevivente Beatriz Bataszew, a música alta e constante "era só barulho, exceto por uma música gravada em minha mente".
A música era “Hoy canto por cantar” (hoje eu canto por cantar), popularizada pela cantora porto-riquenha de Nova York Nydia Caro. “Os agentes da polícia secreta DINA se divertiam com isso”, lembra Bataszew. "Eles nos diziam para "cantar" porque cantar também significa entregar a outros".
Outro sobrevivente, Elías Padilla, me disse que “eles tocavam a Rádio Concierto FM ao longo do dia. Era algo muito estranho, absurdo, contraditório e até chocante. Você ouvia os hits musicais de 1974, como os de Barry White ou Charles Aznavour, enquanto te torturavam. Além disso, a música silenciava nossos gritos e lamentos”.
Mas, como em outros centros de detenção política que pesquisei, os presos de Venda Sexy também usavam a música como forma de expressão, comunicação e resistência. Foi o caso de Ana María Arenas que, depois de ser brutalmente torturada, cantou um bolero mexicano e uma canção de Natal para avisar sua amiga, uma cativa da Venda Sexy, que ela estava lá.
O reconhecimento da violência sexual e memória
Venda Sexy tem uma importância histórica única como um local de tortura e resistência. Mas também serve como um lembrete vital da violência de gênero perpetrada pelo regime de Pinochet - e do progresso que o Chile ainda tem pela frente em relação a isso.
A violência sexual foi um mecanismo institucionalizado da tortura sob Pinochet e foi relatada por quase todas as mulheres sobreviventes. Mas, talvez como resultado do fracasso da sociedade em reconhecer plenamente esse legado, o Chile pós-transição também é lento em prevenir a violência sexual política.
Em novembro de 2016, o Parlamento chileno aprovou uma lei sobre tortura e tratamento cruel, desumano e degradante. Embora essa lei faça referência a trauma e sofrimento de natureza sexual, as mulheres sobreviventes pressionaram sucessivos governos desde 2014 por uma legislação separada que classifica a violência sexual política como um crime distinto.
Bataszew, uma das líderes do Colectivo Mujeres Sobrevivientes Siempre Resistentes (Coletivo Mulheres Sobreviventes Sempre Resistentes), insiste que essa lei é necessária para processar crimes passados e impedir que sejam repetidos hoje.
A violência sexual foi um mecanismo institucionalizado de tortura sob Pinochet e foi relatada por quase todas as mulheres sobreviventes
O Colectivo é talvez o grupo de sobreviventes mais importantes que reivindicou Venda Sexy como um local de memória e denunciou sua recente venda. Grupos de sobreviventes, acadêmicos e ativistas, entre outros, propuseram várias ideias para o futuro da propriedade, se o Estado conseguir adquiri-la e disponibiliza-la para um memorial, semelhante à Calle Londres 38, outra antiga casa de tortura.
Bataszew imagina que Venda Sexy seria dirigida principalmente por mulheres e prevê uma ampla consulta entre grupos de sobreviventes e feministas para decidir os detalhes de como melhor fazer uso da propriedade.
O Colectivo está em campanha lado a lado com a Coordenadora Feminista 8M. Este último é um grupo eclético de mulheres de todas as idades, de alunas do ensino médio a aposentadas, que lutam pelos direitos das mulheres e a igualdade de gênero.
Formada em 2018, a Coordenadora organizou uma "Greve Geral Feminista" no Dia Internacional da Mulher (8 de março) por dois anos consecutivos. A manifestação deste ano, chamada “Super Lunes Feminista” (Segundona Feminista), envolveu ações direcionadas, como mudar o nome das estações de metrô para o de mulheres de destaque, muitas vezes ignoradas na história chilena, bem como uma marcha em Santiago que atraiu 800.000 pessoas, segundo os organizadores. As demandas por justiça e verdade em relação às violações históricas dos direitos humanos também são apresentadas nos dez pontos da Coordenadora Feminista 8M.
Bataszew se orgulha de que a questão seja do interesse de outros grupos. “Nós mulheres sobreviventes da ditadura de Pinochet somos herdeiras de lutas passadas e nos conectamos com lutas atuais”, ela me disse. "É por isso que precisamos de uma memória ativa".
Demolir Venda Sexy, ou colocá-la em mãos particulares pelas próximas décadas, negaria aos sobreviventes e ativistas a oportunidade de transformar essa sinistra propriedade em um espaço que possa levar a sociedade a refletir sobre as violações dos direitos humanos cometidas por Pinochet e as maneiras em que a violência estatal de gênero ainda é generalizada.
Javiera Manzi, porta-voz da Coordenadora Feminista 8M, me disse que o Estado chileno continua a usar violência sexual política contra meninas e mulheres que protestam por direitos iguais. “Essa é uma prática sistemática que afeta desigualmente as mulheres”, argumentou.
Um exemplo recente disso inclui um grupo de agricultoras mulheres, meninas e uma mulher grávida que foram detidas pela polícia, forçadas a se despir e mantidas em um quintal durante a noite sem roupas, comida ou água. "Há uma necessidade de memória agora e no futuro", acrescentou Manzi.
Os protestos pela recuperação da Venda Sexy continuam. No mês passado, um grande evento em frente a propriedade incluiu discursos, a dança cueca sola (uma variante da dança nacional do Chile, dançada por mulheres cujos entes queridos estão desaparecidos) e a peça de teatro Yo amo los perros (Eu amo os cães), que trata do treinamento e uso de cães para estuprar mulheres detidas nesta casa de tortura. O evento também incluiu a inauguração de um azulejo que comemora as vítimas do sexo feminino, criado coletivamente.
Zabrina Pérez, membro do grupo de mulheres sobreviventes e a força motriz por trás da criação do azulejo, explica por que ele foi colocado em frente a Venda Sexy: "Aqui viveram um grande terror as companheiras, mas esse terror também se torna força e vida".
Uma segunda peça de teatro sobre Venda Sexy, Irán #3037, acaba de estrear na Universidade Maior de Santiago e pode ser vista até 26 de outubro. Este trabalho imagina a vida doméstica da família que habitava a antiga casa de tortura até recentemente.
Enquanto o futuro da Venda Sexy como lugar de memória ainda é incerto, as várias iniciativas de ativistas e artistas mostram uma clara determinação em manter viva a memória da ditadura e construir uma sociedade livre de violência sexual.
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