ourEconomy: Opinion

Mesmo com uma vitória de Lula, Brasil precisa revisar modelo de desenvolvimento

A esquerda latino-americana precisa renovar estratégia extrativista para impedir a hemorragia de suas ‘veias abertas’

Andy Robinson
26 Outubro 2022, 12.01
Lula ganhou o primeiro turno das eleições com 48% dos votos
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Roberto Casimiro/Fotoaren

Dezenas de plantadores de cana-de-açúcar cortam a encosta ocre do Alagoas com enxadas de um metro e meio, chegando a lavrar até 6 km de terra por dia por apenas R$ 41 — menos de US$ 8, para cada turno extenuante.

A diária dos trabalhadores não dá para muito hoje em dia no Brasil. Os custos de alimentos e combustíveis estão subindo, impulsionados por especuladores multinacionais e de commodities. O espectro da fome está de volta ao interior do Alagoas, classificada em sétimo lugar no índice da pobreza de 2021 de 146 municípios brasileiros compilado por Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas (FGV). Em Alagoas, 64% da população ganha menos de US$ 5,50 por dia e muitos dos trabalhadores, como em outras partes do país, estão contando os dias para o segundo turno da eleição presidencial de 30 de outubro e uma esperada vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

”Lula vai baixar os preços”, disse José, plantador de cana de uns 30 anos de idade, lembrando a enorme transformação social dos trabalhadores mal pagos – especialmente na região Nordeste – engendrada pelos governos do PT entre 2002 e 2013. Seu pai e avô trabalhavam cortando cana-de-açúcar e seus parentes mais distantes serviram como escravos nas plantações.

Sob o calor escaldante, José e outros trabalhadores esperam o ônibus da empresa, que os levará de volta à Usina Santo Antônio. A empresa se recusou a fornecer mais de uma viagem por dia de volta aos bairros residenciais, obrigando os trabalhadores a esperar no calor até o final do segundo turno.

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“Estamos trabalhando enquanto esperamos, mas sem remuneração”, lembrou outro trabalhador, que trabalha e mora na propriedade da empresa há 25 anos. “Quando Lula era presidente, descobrimos pela primeira vez que temos direito ao pagamento de horas extras.”

Os altos preços dos alimentos são especialmente ruins para os plantadores e cortadores de cana-de-açúcar, porque “o proprietário não nos deixa plantar nossas próprias colheitas (feijão, mandioca e outros alimentos básicos) na propriedade da empresa para nos alimentarmos”, disse Ribamar, um trabalhador de 20 e poucos anos.

Ironicamente, no Brasil, o maior produtor de açúcar do mundo e onde o etanol de cana é amplamente utilizado nas bombas de gasolina, o aumento do preço do açúcar contribui para a inflação de combustíveis e alimentos.

Embora a cana-de-açúcar brasileira agora seja cultivada principalmente no estado de São Paulo, ela está simbolicamente associada aos estados do Nordeste, onde a economia de plantação do século 18 erodiu o solo e as florestas. Como observou o falecido Eduardo Galeano, escritor uruguaio cuja obra iluminou a história e a política de todo o continente em ”As Veias Abertas da América Latina“, a região, “naturalmente apta à produção de alimentos”, tornou-se “um lugar de fome”.

Bolsonaro esvaziou as instituições que monitoram os direitos e condições trabalhistas

Nos anos 2000, o programa de transferência de renda de Lula de 2003, o Bolsa Família, bem como maiores direitos para os trabalhadores e melhores condições e negociações salariais contribuíram para a redução da desigualdade. O Partido dos Trabalhadores (PT) também investiu em infraestrutura pública, especialmente de água. Mas o presidente de direita, Jair Bolsonaro, atrasou o relógio.

”Bolsonaro esvaziou as instituições que monitoram os direitos e condições trabalhistas”, disse Alexandre Valadres, especialista em trabalho rural do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de Brasília. Ele destacou que “a cana-de-açúcar, como qualquer outra monocultura, espreme a agricultura familiar” – tornando a situação dos trabalhadores da cana especialmente precária.

Os sindicatos de trabalhadores rurais, muitas vezes o único apoio aos trabalhadores ameaçados por facçõea armadas em áreas remotas, estão carentes de financiamento.

“A maioria dos nossos escritórios fechará se Bolsonaro permanecer no poder”, disse Zé Areia, da Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetagri), em Ourilândia, uma vila no estado do Pará, na região amazônica. A violência contra líderes trabalhistas e comunitários aumentou no Pará desde que Bolsonaro chegou ao poder, em 2019. Areia diz que Paulino da Silva, seu colega no pequeno escritório da Fetagri em Ourilândia, foi assassinado no ano passado.

Lula, que nasceu na pobreza no vilarejo de Caetés, 240 km ao norte da Usina Santo Antônio, agora é visto como a única esperança para uma enorme faixa de trabalhadores de baixa renda nas regiões pobres no Nordeste, na Amazônia e nas favelas urbanas do Rio ou de São Paulo.

De acordo com pesquisas de opinião do Datafolha, mais de 50% dos trabalhadores que ganham R$ 2,2 mil ou menos por mês vão votar em Lula. Mas o dilema para esses trabalhadores de cana-de-açúcar – de não poderem cultivar seus próprios alimentos, mesmo trabalhando em uma economia de commodities de monocultura – reflete um dilema maior para os planejadores econômicos do PT.

’Fome em um mar de grãos’

Mais do que em qualquer outro momento desde o início do século 20, a economia brasileira é impulsionada pelas exportações de commodities, de alimentos básicos, como cereais ou carne bovina, a minérios como ferro, bem como a exploração de petróleo offshore no Atlântico.

As exportações de soja, milho, algodão e açúcar impulsionam os lucros do agronegócio, especialmente em estados como Mato Grosso, um reduto de Bolsonaro no Centro-Oeste, onde novas “cidades da soja” estão sendo construídas às margens da floresta amazônica.

A disparada dos preços internacionais das commodities, exacerbada pela invasão da Ucrânia pela Rússia, se traduziu em enormes lucros para grandes produtores de soja, comerciantes de commodities como Cargill e Bunge e fundos de ações globais.

Mas os pequenos produtores estão sendo pressionados, o investimento nas indústrias manufatureiras está estagnado e a maioria da população é gravemente atingida pelo aumento dos preços dos alimentos. “Estamos vendo fome em um mar de grãos”, disse Luiz Alberto Melchert, economista brasileiro especializado em agronegócio.

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O resultado é que, se Lula vencer esta eleição, terá de enfrentar uma escolha difícil. Redistribuir a renda do boom das commodities por meio de programas sociais, assim como fez há duas décadas – mas agora com maiores restrições orçamentárias e preços de commodities menos previsíveis – ou, implementar uma transição para um modelo de desenvolvimento menos dependente do agronegócio e outras indústrias extrativas. Até agora não está claro o que o PT vai escolher fazer.

A dívida pública alta e as taxas de juros crescentes farão com que os aumentos progressivos de impostos sejam uma parte necessária de qualquer estratégia de redistribuição. Economistas próximos a Lula, como Guilherme Mello, da Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo, defendem maior foco na política industrial e investimento público em manufatura e menor ênfase nas exportações de commodities.

A pressão do movimento ambientalista para combater o desmatamento da Amazônia, que bateu taxas recordes no governo Bolsonaro, também pode forçar uma mudança no modelo de crescimento de commodities do Brasil. Mas com colheitas comerciais em maior demanda internacionalmente, preços de petróleo de três dígitos e uma transição energética global aumentando a demanda por ferro e outras commodities, as chances de romper totalmente com esse modelo baseado em exportações de commodities são baixas.

Uma nova onda rosa?

O dilema é familiar em outros países sul-americanos onde governos de esquerda assumiram recentemente o poder, como Chile, Colômbia, Bolívia e, até certo ponto, Peru.

De Caracas a La Paz, de Santiago do Chile a Brasília, os governos que tomaram posse na primeira onda rosa no início dos anos 2000 basearam seus programas de redistribuição de riqueza e antipobreza em um enorme ganho inesperado do chamado superciclo de preços das commodities. Durante essa fase, os preços de matérias-primas se mantiveram em alta por quase duas décadas. Mas o modelo de crescimento desmoronou em 2013, quando os preços do petróleo e de outras commodities entraram em queda livre. Agora, com as cadeias de suprimentos passando por instabilidades e maiores preocupações com o meio ambiente – impulsionadas em grande parte pelos movimentos sociais de Bogotá e Santiago – os governos estão tendo que repensar a estratégia.

Considere o novo presidente da Colômbia, Gustavo Petro, economista e ex-guerrilheiro. Definindo sua agenda como a defesa da “vida” contra a oligarquia de combustíveis fósseis, mineração e grandes negócios, o recém-eleito líder de esquerda prometeu eliminar gradualmente a exploração de petróleo, reduzir o número de licenças de mineração e criar alternativas ao agronegócio liderado pela exportação.

Petro nomeou Irene Vélez, uma economista especializada em ecologia política e ambientalismo como ministra de energia e mineração. Sua vice-presidente, Francia Márquez, ativista negra que ganhou o prêmio ambiental Goldman por impedir a mineração ilegal de ouro em terras ancestrais afro-colombianas, é outra poderosa voz antiextrativista no governo.

Se a Colômbia se precipitar em seu projeto, o tiro pode sair pela culatra

“A Colômbia está caminhando para uma economia menos extrativista”, disse Joan Martinez Allier, influente economista ambiental da Universitat Autònoma de Barcelona, ​​na Espanha.

Mas os desafios da transição para energias renováveis ​​e um modelo agrícola baseado na soberania alimentar seguem fortes. O mesmo acontece com o potencial para uma reação ao estilo do Chile, cujos cidadãos recentemente rejeitaram uma nova constituição progressista. Se a Colômbia se precipitar em seu projeto, o tiro também pode sair pela culatra. A direita, liderada pelo ex-presidente colombiano Álvaro Uribe, já está atacando os planos de reduzir a escala de combustíveis fósseis, mineração e fracking. A decisão de permitir o aumento dos preços da gasolina subsidiada – um estopim para protestos anteriores em países como Equador – também testará a popularidade do governo de Petro.

Chile como alerta

De fato, o Chile prenuncia os perigos de priorizar os direitos ambientais e as políticas antiextrativistas. Quando 60% dos eleitores chilenos rejeitaram um projeto de constituição que reconhecia o “direito da natureza de respeitar e proteger sua existência”, foi porque muitos a viram como desvinculada da realidade de uma economia baseada em commodities.

Essa derrota certamente enfraquecerá o governo do ex-líder estudantil Gabriel Boric, que venceu a eleição em dezembro de 2021 como o presidente mais jovem da história do Chile com uma agenda radical de mudança.

Boric planeja transformar a economia do Chile, que depende das exportações de cobre, em um centro estratégico de fornecimento de veículos elétricos e células fotovoltaicas necessárias na transição energética global. As enormes minas de lítio do país no deserto do Atacama serão importantes na revolução das baterias de íons de lítio que alimentarão veículos elétricos, armazenamento de energia doméstica e até cidades inteiras. Boric também espera aumentar o investimento em parques eólicos na Patagônia chilena, perto do Ártico, onde estão em andamento projetos multinacionais para fabricar e exportar hidrogênio verde e combustível renovável.

Mas em um país atingido pela seca, não é simples apostar mineração de lítio e cobre, bem como projetos de produção de hidrogênio que consomem muita água, a fim de salvar o planeta.

Enquanto isso, o presidente socialista da Bolívia, Luis Arce, oferece um argumento convincente para uma abordagem mais extrativista do desenvolvimento social. O país está usando o velho modelo socialista de mineração estatal e extração de combustíveis fósseis para financiar programas sociais. Até agora, o modelo manteve a conquista espetacular do ex-presidente Evo Morales, antes de ser removido em um golpe apoiado pelos EUA em 2019, de reduzir a pobreza extrema de 45% para 11%.

Portanto, o dilema segue vigente para a esquerda da América Latina. A região deve seguir a agenda familiar de crescimento impulsionado pela extração de recursos ou um novo modelo baseado na agricultura de menor escala e na transformação industrial liderada pelas mudanças climáticas? Até que possa decidir, as ‘veias abertas’ da América Latina, como Eduardo Galeano as chamou, continuarão a sangrar.

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