
Alerta Democrático. Twitter.
Que os governadores do FMI e do Banco Mundial se reúnam pela primeira vez na sua história num país latino-americano (Peru, 5-12 de Outubro) é um sinal inequívoco de como mudou a região- e de como mudou a imagem internacional da região- nos últimos anos.
O enorme potencial que pelos seus recursos, energia e jovem população urbana a América Latina oferece ao futuro coletivo do planeta não se põe em questão, e a sua aposta pela democracia, num momento em que a mesma se debilita ou simplesmente não existe noutras regiões do mundo, deve ser defendida e consolidada.
Ciclo de crescimento e políticas progressistas
As instituições de Bretton Woods agora reunidas em Lima representaram durante demasiado tempo na América Latina pouco mais que o braço armado do imperialismo neoliberal, e muitas das suas políticas, tristemente encarnadas no “Consenso de Washington”, tiveram um impacto sumamente negativo para a maior parte da sua população.
Foram politicas centradas na estabilidade macroeconómica como valor supremo, e na liberalização dos mercados externos e internos, incluídas privatizações de setores estratégicos, que tiveram nalguns casos efeitos desastrosos imediatos para as economias latino-americanas, que, apesar disso, conseguiram finalmente equilibrar-se e crescer com força nos últimos 10 a 15 anos.
Em parte, como resposta à agressividade das consequências da aplicação do citado “Consenso” durante os anos 80 e 90, a partir do ano 2000 a região presenciou a chegada generalizada ao poder de governos progressistas de diferentes intensidades, desde o rosa pálido Chileno ao vermelho carne Venezuelano.
Impulsados por um ciclo forte de crescimento dos mercados emergentes e uma robusta demanda externa liderada pela China, e aproveitando uma subida continua dos preços das matérias primas, os países latino-americanos obtiveram um notável crescimento do seu PIB. Os seus governos puseram em movimento políticas de natureza social que conseguiram reduzir a pobreza, nalguns casos de forma significante, e afiançaram as suas ainda jovens democracias, mantendo ao mesmo tempo estáveis os seus fundamentos macroeconómicos e financeiros.
Mas a região arrasta problemas educativos e de produtividade, assim como uma forte dependência dos mercados exteriores. Uns 170 milhões de latino-americanos, aproximadamente 30% da população, continua a viver na pobreza. E perante um cenário económico global de fraca recuperação, uma crescente incerteza sobre o modelo de crescimento da China, os baixos preços das matérias primas e as tensões nos mercados financeiros ante a possível subida dos tipos de interesse nos Estados Unidos, não podemos dar por consolidados os avanços na América Latina.
Não devemos esquecer que a região tem um passado não tão longínquo de ditaturas militares e autoritarismos, em determinados casos muito duros, ao que se juntam potentes oligarquias locais que, às vezes em conivência com redes de crime organizado, não só sobreviveram à chegada da esquerda, senão que se fortaleceram ao beneficiar-se do crescimento económico e continuaram a exercer o seu poder sobre o governo, a economia e a sociedade, em ocasiões através da práticas, infelizmente habituais, mas extremadamente corrosivas e potencialmente letais para os representantes públicos e para a democracia: a corrupção.
Como temos vindo a analisar na DemocraciaAbierta, chegado o momento de fazer um balance do progressismo na América Latina, muitos analistas prognosticam a perda de popularidade dos populismos na região. Estamos perante o fim do relato progressista? Estamos a assistir a uma paralisação crescente da esquerda? Ou perante o regresso das práticas neoliberais que alguns dizem que nunca desapareceram na realidade, senão que estavam disfarçadas nos benefícios do crescimento, investidos só parcialmente em políticas sociais redistributivas?
Alguns intelectuais de esquerda podem ser mais optimistas e identificar estes críticos como profetas do “fim de ciclo”, defendendo que a maré rosa de governos latino-americanos não chegou ao seu fim, e que o experimento radical de progresso social e democracia não terminou. A realidade, em qualquer caso, reflete que a mudança de clima económico e político é evidente e os cenários estão abertos.
Mas, tanto ou mais que com a desigualdade ou a pobreza, os cidadãos latino-americanos estão preocupados sobretudo com a insegurança e a violência, que afeta não só endemicamente os pequenos países centro-americanos ou a Colômbia, envolvida numa guerra com as FARC e o ELN, mas também duas das maiores potencias da região, o México e o Brasil. Nestes países, ao Estado é-lhe imputável como mínimo um abandono de responsabilidades, se bem que em certos casos tende a participar diretamente em casos de repressão direta ou encoberta, como demonstra o escandaloso caso de Ayotzinapa. Além disso, nestes países a separação de poderes não está garantida, e os mecanismo de fortalecimento institucionais, prestação de contas e prevenção da corrupção são, no mínimo, deficientes. Os desafios aos que se enfrenta a democracia continuam a ser sumamente importantes.
Alerta Democrático: cenários para a democracia 2015-2030
Precisamente por esta razão, é especialmente pertinente um exercício de prognose sobre os possíveis cenários futuros da democracia na região, que, sob o projeto Alerta Democrático, realizaram um grupo de 37 atores de muitos diversos âmbitos da sociedade civil latino-americana (académicos, parlamentários, jornalistas, jovens, ativistas, empresários, grupos indígenas, ou fundações).
Tendo em conta a frase de Karl Popper que diz que o futuro não está escrito, mas que depende do que nós façamos (individual e coletivamente) e que não dependemos de nenhuma necessidade histórica, o grupo realizou um rico exercício de planificação por cenários durante o primeiro semestre de 2015, tendo sido financiado por três grandes fundações que tem vindo a trabalhar intensamente na promoção da democracia e progresso na região: a Open Society Foundations, a Fundação Ford e a Fundação Avina.
O objetivo do exercício de Alerta Democrático é estabelecer um marco conceptual e uma linguagem comum que “permita um melhor entendimento das forças que determinam e moldam o futuro das democracias na América Latina”. Parte de um diagnóstico segundo o qual a consolidação da democracia no continente estaria ainda muito longe de ser irreversível. Mais além da celebração generalizada de eleições periódicas, a democracia tem ainda um largo caminho pela frente em questões como o Estado de Direito, as liberdades civis, os direitos humanos e a liberdade de associação e participação da sociedade civil.
Assim, e perante as crescentes ameaças de um enfraquecimento do panorama económico que impacte negativamente as novas classes médias, cujo retrocesso teria consequências muito negativas como o demostram experiência passadas, o Alerta Democrático planteia a necessidade de desenhar as possibilidades de percursos que tem a região a curto, médio e longo prazo (o exercício propõe três lustros, ou seja, até 2030).
Se a América Latina se encontra perante uma bifurcação, os caminhos que empreendam os indivíduos e a sus instituições determinarão o seu futuro. Contar com os possíveis trajetos é relevante para tomar as decisões idôneas.
Apesar de nos encontrarmos com uma grande diversidade de nações ao sul do Rio Grande, havendo países necessitados de uma maior qualidade democrática ao mesmo tempo que outros que devem lutar por manter vivas as mínimas garantias para a sobrevivência do sistema, todos tendem a compartilhar um destino comum. E é esta consciência de um futuro coletivo o que outorga potencial e relevância ao exercício de prognose, que propõe uma “aproximação holística e integral na que se enfatizam os desafios comuns e o potencial regional para tomar o controlo de um sonho e de uma responsabilidade compartilhada”.
Algumas características sociais comuns na maioria dos países podem ser relevantes para a construção deste futuro democrático imaginado, que passa inevitavelmente pela conflitividade social, assim como pela mobilização popular de uma população sobretudo urbana (cujo aumento exponencial nos últimos anos faz com que a região conte hoje com um 80% de cidadãos a viver em cidades).
Os diferentes movimentos demostraram ser muito ativos nos últimos anos, tanto através de protestos massivos nas ruas como no uso das redes por parte de jovens ativistas que podem considerar-se, quase todos, como nativos digitais, conscientes também de que a desigualdade na era digital afeta especialmente a América Latina. De como se traduza este ativismo numa verdadeira incidência política dependerá em grande parte a eficácia das novas agendas propostas. Existem na região interessantes experiências de inovação política e de desenvolvimento de ferramentas que, nas mãos de novas lideranças, podem ser chave para a democracia no século XXI.
Transformação, Tensão, Mobilização, Agonia
Os quatro cenários desenhados pelos atores que participaram no projeto (Democracia em Transformação, em Tensão, em Mobilização e em Agonia) podem entender-se através de elementos tais como a estrutura do poder, as instituições democráticas, a participação cidadã, o desenvolvimento económico e social, e a integração regional.
Num primeiro cenário, a “Democracia em Transformação”, assistimos à redistribuição do poder, à melhoria da capacidade de governar com maior transparência e eficiência sob a base de reformas estruturais com o objetivo de obter uma democracia com maior participação social e uma maior inclusão e pluralismo. Neste cenário, uma maior ênfase na educação cidadã pode estabelecer um eleitorado mais exigente, ao mesmo tempo que facilitar umas melhores políticas meio-ambientais e redistributivas que ajudariam a superar desafios estruturais, tais como a pobreza, desigualdade e a baixa produtividade. No âmbito da integração regional, estaríamos perante um processo de estabelecimento de blocos comerciais e políticos e perante uma melhoria da inserção da região no mapa global.
Um segundo cenário, a “Democracia em Tensão”, significaria a concentração de poder, que debilitaria os controlos e contrapesos estruturais, numa disputa permanente que enfraqueceria o exercício democrático. A um voto cativo, pouca participação eleitoral e uma crescente desconfiança para com a esfera pública somar-se-ia uma dinâmica económica de curto prazo, na qual a eficiência econômica se colocaria claramente por cima da justiça social, do equilíbrio meio-ambiental e da redistribuição. Neste cenário, a integração regional desaceleraria, afetando negativamente a competividade em relação com outras regiões do mundo
O terceiro cenário, denominado “Democracia em Mobilização”, provavelmente é o que oferece maiores aliciantes, uma vez que propõe uma desconcentração de poder ao mesmo tempo que uma interpelação do poder tradicional. Trabalho estratégico nas redes, pressão popular sobre o estado e o uso extensivo das novas tecnológicas por parte dos cidadãos e movimento sociais suporiam o avançar da apropriação cidadã dos bens comuns, inovando frente aos esquemas tradicionais de poder representativo. Modelos de desenvolvimento económico mais inclusivos, sustentáveis e de dimensão local facilitariam inovações através de formas de comercialização mais justas e da potencialização do trabalho na rede. A influencias das redes também teria impacto na integração regional territorial introduzindo novas agendas nos organismos multilaterais a nível global.
Finalmente, desenhasse um cenário distópico, não tão distante de algumas realidades, que se define como “Democracia em Agonia”. Neste caso, a preponderância do poder do crime organizado e da violência determinariam a erosão das instituições, debilitando o ideal democrático através de uma maior e mais sofisticada penetração do Estado, fazendo avançar a corrupção, a violência, a impunidade e a afeição a soluções autoritárias. Tudo isto implicaria um cenário de degradação dos valores cívicos e uma prevalência do medo, da autocensura e duma dupla moral entre a população, ao mesmo tempo que uma economia exclusiva faria avançar a pobreza, a desigualdade e o desequilíbrio ambiental no território. O Estado, muito fraco, seria incapaz de garantir qualquer redistribuição. Em tal cenário, a integração regional ralentar-se-ia.
Em qualquer caso, e depois de uns lustros de crescimento e de boas perspectivas, a América Latina estaria melhor preparada que nunca para encarar o fortalecimento das suas democracias como alguma garantia. A forma em que o ciclo económico afete o ciclo político determinará em grande parte o ritmo de avanço, havendo países, como o México, Colômbia, Chile e Peru que oferecem perspectivas economicas distintamente melhores que outros, tais como o Brasil, Venezuela e em certa medida, a Argentina.
A forma na qual se acabem por implementar os cenários desenhados pelo Alerta Democrático depende muito daquilo que os cidadãos e os seus governos decidam democraticamente, e não só através das eleições. Como diz o documento de trabalho, “a realidade será uma se se transita pelas vias da renovação e reforma, e outra se se prioriza a disputa de poder e a tensão entre diversas forças políticas e económicas sob uma democracia aparente y superficial”.
Temos que estar em alerta.
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