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A América Latina continua falhando com suas crianças

Casos de violência e/ou abuso de crianças e jovens causaram indignação esta semana no Brasil, Colômbia e México. Onde estão os Estados?

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19 Agosto 2020, 5.59
Crianças penduram cataventos em uma cerca durante o Mês de Prevenção do Abuso de Crianças em 11 de abril de 2019, na Base Aérea de Malmstrom, Montana, EUA.
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Senior Airman Daniel Brosam/U.S. Air Force

No Brasil, uma menina de 10 anos teve que entrar no hospital no porta-malas de um carro para se proteger de grupos religiosos. Depois de anos de estupro nas mãos do tio, a menina engravidou e precisou de um aborto legal.

Na Colômbia, nove jovens, incluindo cinco menores, foram mortos ao serem baleados durante um churrasco por um grupo de desconhecidos. Foi o segundo massacre de jovens no país em menos de uma semana, totalizando 18 vítimas em quatro dias.

No México, um agente da polícia foi pego com uma menina de 10 anos nua em seu carro. Uma série de irregularidades legais em seu caso desencadeou uma onda de indignação no país.

Esta é apenas uma das notícias dos últimos dias. A América Latina está falhando com suas crianças.

Brasil: dupla vitimização

A menina de 10 anos de idade foi ao médico no começo do mês devido à dores abdominais. Ao confirmar a notícia de sua gravidez, ela disse às autoridades que era abusada desde os 6 anos de idade por seu tio, parceiro de sua tia. Ela acrescentou que nunca denunciou o crime por ter recebido ameaças.

O caso foi noticiado imediatamente, mas este era apenas o começo do processo de dupla vitimização que a criança sofreria.

A interrupção de uma gravidez é permitida pela legislação brasileira em casos de risco à vida, gravidez resultante de estupro e quando há anencefalia fetal. Na sexta-feira (14), a Justiça do Estado do Espírito Santo autorizou o procedimento no caso. Entretanto, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, ligado à Universidade Federal do Espírito Santo, negou o pedido de interromper a gravidez da menina.

Ela teve que viajar para Pernambuco, a mais de 1.600 km de São Mateus, ou 24 horas de carro, para ter acesso a um direito legal.

E as falhas do Estado e da sociedade brasileira não parariam por aí. A militante bolsonarista Sara Giromini, também conhecida como Sara Winter, divulgou o nome da vítima – cuja identidade é protegida por lei – e o nome do hospital onde o procedimento deveria ocorrer em um vídeo publicado em suas redes sociais no domingo (16) para incentivar protestos.

Na segunda-feira (17), a menina teve que se esconder para entrar no hospital enquanto o médico, Olimpio Moraes, atraía fanáticos religiosos e políticos para o portão principal, uma vez que os manifestantes haviam se separado e bloqueado todas as entradas para impedir que a menina realizasse o procedimento.

Que tipo de trauma sofrerá a menina depois de 1) ser estuprada por uma pessoa de confiança durante quatro anos; 2) ficar grávida; 3) ter que passar por um aborto; 4) ser forçada a se esconder no porta-malas de um carro enquanto ouve gritos de "assassino" e "demônio" dirigidos a seu médico?

Colômbia: em uma semana, dois massacres de jovens

A violência que assolou a Colômbia por mais de meio século está de volta e explodiu durante a pandemia.

Na noite de sábado (16), um grupo de jovens universitários que, segundo relatos iniciais, estavam retornando à seus vilarejos por causa da quarentena do coronavírus, foram mortos durante um churrasco em uma casa nos arredores de Samaniego, no departamento de Nariño. Segundo testemunhas, um grupo de homens encapuzados chegou ao local em uma camionete e atirou indiscriminadamente com espingardas automáticas.

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Algunos de los jóvenes asesinados en Samaniego | Gobernación de Nariño

O crime chama a atenção porque ocorre apenas dias após outro massacre em Cali, a capital do Valle del Cauca. Na terça-feira (11), cinco adolescentes de 14 e 15 anos foram encontrados mortos a tiros em um canavial no bairro de Llano Verde. Os corpos tinham sinais de tortura.

Essas cenas de violência, que haviam diminuído após o Acordo de Paz assinado pelo Governo e pelas FARC em 2016, estão voltando com toda a força. Em um cenário de crescente descumprimento do acordo e um sentimento de impunidade agravado pelos confinamentos em meio à pandemia de Covid-19, os assassinatos são mais uma vez escandalosos.

"Há surtos de violência nos territórios. Os assassinos não estão confinados enquanto o país se dilacera e a polarização aumenta. Quem está respondendo? O Estado tem que sair do confinamento, capturar os assassinos, tomar liderança dos territórios e devolver a confiança ao povo", disse o procurador geral Fernando Carrillo.

O escritório colombiano do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos relatou 33 massacres até agora em 2020, com sete ainda indocumentados.

"Onde está o governo nacional? Contemplando impávido a expansão da pandemia de massacres de jovens e pobres? Onde está o plano para oferecer-lhes educação, emprego e oportunidades? Onde está o presidente mais jovem que a Colômbia já teve?" tuitou Claudia López, prefeita de Bogotá.

México: abuso sexual infantil e o medo da impunidade

Em 26 de julho, Luis Alonso "N", diretor de recursos humanos da polícia de Puerto Vallarta, estado de Jalisco, foi preso após ter sido pego com uma menina de 10 anos sem roupas em seu veículo.

Estes são casos de violência e revictimização de crianças pelo Estado, o que aponta para deficiências projetadas para a proteção dos perpetradores

O juiz Jorge Luis Solis Aranda do Centro de Justiça de Mulheres de Puerto Vallarta tomou a decisão de acusar Luis Alonso apenas do crime de abuso sexual infantil sem o agravante de corrupção de menores, que havia sido solicitada pelo Ministério Público.

A ausência do fator agravante significa que, além de uma pena de no máximo cinco anos, o réu tem o direito de solicitar a suspensão condicional do processo, o que lhe permitiria permanecer livre com medidas cautelares, tais como uso de tornozeleira, o compromisso de não se aproximar de sua vítima ou de receber tratamento psicológico.

O juiz Solís Aranda tomou a decisão de não acusar o agente do Estado de "corrupção de menores" com base no fato de que a vítima "não sentiu prazer".

"O juiz não sabe o que o princípio do melhor interesse da criança implica, e não sabe o que significa julgar sob a perspectiva de gênero. Ela não é apenas um menor, ela é uma criança, então o protocolo exige que nesta situação de dupla vulnerabilidade, tanto o protocolo que protege o melhor interesse do menor quanto a perspectiva de gênero devem ser usados", disse Sandra Quiñones, coordenadora do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), em entrevista com a Animal Político.

"Estamos preocupados, porque então sabemos que os processos legais conduzidos por ele serão na mesma linha, revictimizando meninas e mulheres, negando o acesso à justiça e deixando os agressores livres", continuou ela.

Esses três casos quase simultâneos mostram uma série de falhas dentro do aparato governamental que não só permitiu que os crimes ocorressem, mas também permitiu que as vítimas sofressem consequências desproporcionais.

Estes são casos de violência e revictimização de crianças pelo Estado, o que aponta para deficiências projetadas para a proteção dos perpetradores.

A violência na América Latina é estrutural. Como podemos melhorar as assombrosas estatísticas em uma região onde a violência começa a ser sentida antes dos 10 anos de idade?

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