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Argentina à beira do maior colapso de sua história recente

Com inflação de 100% e níveis de pobreza alarmantes, o país flerta com populismo demagógico em ano eleitoral

democracia Abierta
10 Abril 2023, 10.00
Em fevereiro, a inflação anual de 102,5% superou os três dígitos pela primeira vez em 32 anos
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iStock / Getty Images Plus

Comer carne bovina na Argentina não apenas faz parte da identidade nacional – é praticamente um direito cidadão garantido pela história. No entanto, nas últimas quatro semanas, o preço da carne subiu 35%, fazendo dela algo reservado para minorias. Em fevereiro, a inflação atingiu principalmente o aumento dos preços dos alimentos, especialmente carnes, ovos, laticínios e frutas.

A inflação anual de 102,5% na Argentina, que em fevereiro ultrapassou os três dígitos pela primeira vez em 32 anos, preocupa toda a região. Embora a Argentina sofra com inflação crônica há vários anos, o recorde histórico do atual milênio levanta questionamentos de como evoluirá diante das eleições presidenciais de outubro.

A situação dolorosa não é nova. A Argentina foi vítima de um episódio de hiperinflação entre 1989 e 1990, quando a os valores atingiram 3.079% e 2.314%, respectivamente. O país ainda está longe desses números astronômicos, mas vive sua realidade mais crítica desde então.

Embora a Argentina ainda ocupe a terceira posição entre as grandes economias da região, em 2022 representava apenas um terço da economia mexicana, com um PIB nominal de US$ 483.765 milhões contra os 1.37 bilhões do México e os 1.8 bilhões do Brasil, e já atrás de pequenos países como Israel, cujo PIB ultrapassa os US$ 500 milhões.

Em dezembro de 2022, o presidente argentino, Alberto Fernández, fez um acordo com empresas de alimentos e higiene pessoal para congelar os preços de cerca de 2 mil produtos até março e limitar o aumento a 4% ao mês de outros 3 mil.

Duas em cada três crianças argentinas são pobres ou privadas de direitos básicos como proteção social, acesso à educação, moradia ou água

Soma-se a esta crise a desvalorização permanente do peso argentino (PAR) em relação ao dólar, o que torna cada dia mais difícil a sobrevivência de todos os argentinos. A realidade é tão premente que o dólar blue, o dólar americano que se compra no mercado negro e informal da Argentina, já é cotado e oferecido abertamente. O preço oficial oscilou em meados de março em torno de 200 PAR por dólar, enquanto os cueveros (vendedores ambulantes do dólar blue) pagavam cerca de 370 PAR por dólar.

"Os argentinos pensam verde", diz um velho ditado nacional, já que o dólar é a principal moeda de poupança na Argentina há décadas. Apesar de as restrições implementadas pelo governo limitarem a quantidade de dólares que as pessoas podem comprar no mercado oficial, a demanda pelo dólar blue no mercado negro continua disparando.

Segundo o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA), a pobreza monetária na Argentina atinge 43,1% da população e a indigência 8,1%. Agravando ainda mais a situação, duas em cada três crianças argentinas são pobres ou privadas de direitos básicos como proteção social, acesso à educação, moradia ou água, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).

Assim, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INDEC), no primeiro semestre de 2022, 51,5% das crianças na Argentina viviam na pobreza e em domicílios cuja renda não é suficiente para cobrir a cesta básica de alimentos e serviços. Além disso, 66% da população infantil, o que equivale a 8,8 milhões de crianças, é privada de seus direitos básicos. O crescimento da pobreza na Argentina é inversamente proporcional à contínua queda das exportações e ao aumento da dívida pública, que não parou nos últimos anos.

Outro fator que leva o país a um ponto crítico é a seca que há três anos assola o interior da Argentina, um dos principais produtores de alimentos do mundo. Segundo o relatório da Bolsa de Valores de Rosario, a seca causou perdas de cerca de US$ 19 bilhões, o que significa que custou três pontos do Produto Interno Bruto (PIB) argentino estimado para 2023.

A situação tem provocado uma queda nas exportações de grãos (trigo e milho), o que não só afeta o campo, mas também corrói a arrecadação de impostos do Estado. Finalmente, a pecuária também se vê afetada devido à diminuição de alimentos disponíveis para os animais. De acordo com a Direção Nacional de Emergência e Risco Agrícola, no seu relatório de fevereiro deste ano, “existem mais de 179 milhões de hectares em risco, e 24,3 milhões Cabeça de gado".

O populista libertário Javier Milei está em terceiro lugar nas pesquisas eleitorais, atrás apenas das principais coalizões políticas

Assim, a inflação, aumento da pobreza e a seca mostram a realidade da Argentina, um país com reservas do Banco Central em queda, com finanças complexas e que deverá ter um crescimento econômico baixo em 2023, podendo até entrar em recessão.

As eleições presidenciais de outubro serão decisivas para medir a percepção dos cidadãos sobre a crise. Em 22 de outubro, o país não apenas elegerá um presidente, mas também votará para definir 130 deputados, 24 senadores federais e outros tantos regionais.

O primeiro turno das eleições começa oficialmente em 13 de agosto. A disputa não será fácil. O peso da crise socioeconômica fez com que candidatos populistas libertários como Javier Milei ganhassem espaço. Em pouco tempo, Milei disparou ao terceiro lugar nas pesquisas, atrás apenas das principais coalizões políticas. Seu plano de governo é assustador. Milei defende a extinção dos ministérios da Educação, Saúde e Assistência Social, a venda de órgãos e a de armas para civis.

Do lado governista, os nomes levantados são: Eduardo de Pedro, ministro do Interior kirchnerista, e Sergio Massa, ministro da Economia. Também, por mais desacreditado que esteja, o atual presidente Alberto Fernández. Do lado da oposição conservadora, na ausência de Mauricio Macri que não se candidatou, estão Horacio Rodríguez Larreta, chefe de governo da cidade autônoma de Buenos Aires, que já havia apresentado sua candidatura anteriormente, e Patricia Bullrich, ex-ministro da Segurança de Macri.

O que mostra a popularidade de Milei, visto até recentemente por muitos como um charlatão televisivo, é o cansaço dos argentinos com o onipresente peronismo e a imobilidade do establishment. Depois de anos de crise e vendo que a tendência para 2023 é piorar, os cidadãos parecem dispostos a abraçar um demagogo trumpista radical para derrubar o status quo político. Se o atual governo e a política argentina em geral não conseguirem sequer fingir que estão implementando planos que ajudem e proponham fórmulas para que o país supere a crise, a batalha para impedir que o mais vociferante populismo chegue ao poder será muito difícil.

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