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Argentina: o que será do peronismo?

Frente aos fracassos econômicos do governo, a direita aumenta sobe nas pesquisas e a extrema-direita surge com força

Francisco Longa
19 Maio 2023, 10.00
As pesquisas apontam os candidatos da oposição como favoritos
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El presidente Alberto Fernández y su vicepresidenta Cristina Fdz. de Kirchner en los momentos previos al debate sobre el Estado de la Nación en Buenos Aires, en Octubre de 2023

O governo da Frente de Todos (FdT), que tomou posse em 2019 com Alberto Fernández como presidente e Cristina Fernández de Kirchner como vice-presidente, representou as expectativas de reparação econômica frente ao que o malfadado governo do Juntos pela Mudança (JxC ) havia deixado para trás. Durante a presidência do empresário Mauricio Macri, entre 2015 e 2019, o poder de compra dos salários caiu em média 20%.

A inflação ultrapassou os 50% em seu último ano de governo, a pobreza aumentou e o presidente contraiu o maior empréstimo que o Fundo Monetário Internacional (FMI) concedeu em toda a sua história. O empréstimo tinha um forte simbolismo político, já que "FMI" é uma sigla particularmente desagradável para a memória coletiva dos argentinos.

Esse cenário delicado foi o contexto em que Cristina Fernández de Kirchner idealizou um dispositivo político único e arriscado. A duas vezes presidente do país concebeu a FdT como uma ampla aliança peronista, na qual coexistiriam a "esquerda" peronista - sintetizada nela e em seus seguidores - e os peronistas pró-mercado, como o próprio Alberto Fernández ou Sergio Massa, um líder com raízes liberais, favorável aos negócios e em diálogo frequente com a embaixada dos EUA.

Essa aproximação com o centro foi eleitoralmente bem-sucedida: a FdT venceu Macri confortavelmente e frustrou sua reeleição. Mas uma coisa é vencer e outra bem diferente é governar.

Desde que chegou ao poder, o desempenho da coalizão tem sido extremamente deficiente. Cada "campo" do governo operou de forma isolada, em muitos casos boicotando as iniciativas do outro espaço. "Cristãos" e "albertistas" mergulharam em um internalismo exasperante, que em muitas ocasiões chegou a paralisar a gestão do Estado. Por exemplo, o setor da vice-presidente questionou a maneira como o presidente e seus ministros abordaram a renegociação da dívida com o FMI e exigiu uma postura mais rígida em relação à organização. Esse desempenho político deficiente teve seu correlato no desempenho econômico.

Três anos e meio depois de sua vitória eleitoral, os resultados do governo estão longe do esperado. A inflação no ano passado esteve perto de 100%. As reservas do Banco Central são escassas e a instabilidade da taxa de câmbio denota a baixa confiança da população no peso argentino. Embora o país tenha dado sinais de recuperação econômica após a pandemia – o PIB aumentou e o desemprego caiu – a pobreza cresceu no atual governo, chegando a 39%, além de a distribuição de renda ser ainda mais desigual do que no quadriênio macrista.

A coalizão governista enfrenta então uma nova instância eleitoral este ano o boletim praticamente reprovado, com uma acirrada disputa interna entre os parceiros da coalizão governista – Alberto e Cristina não se falam há meses –, e negociando contra o relógio para obter adiantamentos do FMI que lhe permitam chegar com um mínimo de reservas em dólares para aplacar as corridas cambiais que desestabilizam o cenário.

Não surpreende, portanto, que Alberto Fernández tenha desistido de concorrer à reeleição. Isso, porém, não foi suficiente para acalmar os ânimos do partido governista, nem para chegar a uma chapa eleitoral consensual.

As pesquisas apontam os candidatos da oposição como favoritos. Será que o país está à beira de uma nova alternância de poder?

A FdT ainda não tem candidatos definidos e – se as negociações continuarem infrutíferas para encontrar um candidato – caminha para resolvê-los por meio de eleições primárias, opção inusitada para o peronismo, mais acostumado a acertar chapas por meio da negociação de seus dirigentes. Massa, que parece mais próximo, é hoje ministro da Economia e se dedica todos os dias a apagar incêndios, principalmente para evitar que o valor do dólar azul (preço informal do mercado) saia do controle. Soma-se a isso o fato de que as pesquisas apontam os candidatos da oposição como favoritos. Será que o país está à beira de uma nova alternância de poder?

Pêndulo ou tobogã?

Para alguns analistas, a sociedade argentina se move como um pêndulo: oscila entre a eleição de governos peronistas e liberais. Os primeiros são historicamente orientados para o mercado interno, o protecionismo econômico e a distribuição de renda, enquanto os segundos favorecem a desregulamentação da economia e são mais abertamente pró-mercado. Movimentos sociais e sindicatos de um lado, empresários e grupos financeiros internacionais de outro operam respectivamente como base de sustentação de cada bloco.

Se as pesquisas estiverem corretas em suas previsões, a Argentina mais uma vez endossará seu "bipartidarismo" em 10 de dezembro: dois blocos que substituíram o tradicional sistema bipartidário de peronistas e radicais. A chegada de um governo de uma persuasão política diferente também confirmaria a tendência regional de (com exceção do Paraguai) derrubar os partidos no poder. O fato de terem governado durante os tempos sombrios da pandemia poderia explicar a falta de sucesso das administrações atuais na tentativa de se revalidarem nas urnas.

Ao contrário do que ocorreu em períodos de longas hegemonias, como a de Carlos Menem (1989-1999) e a de Néstor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner (2003-2015), a volatilidade do voto desde 2015 significa que nenhuma das duas principais coalizões parece capaz de implementar seu programa, que acaba sendo bloqueado nas eleições seguintes pelo partido de oposição.

Algo como um loop de identidades negativas que se manifesta nas urnas, para usar a conceituação inovadora de identidades políticas proposta pelo cientista político peruano Carlos Meléndez em seu recente livro The Post-Partisans: Anti-Partisans, Anti-Establishment Identifiers, and Apartisans in Latin America (Cambridge UP, 2022).

Essa alternância contínua poderia configurar um "impasse hegemônico" aggiornado, fórmula com a qual Juan Carlos Portantiero descreveu o cenário da década de 1960, em que dois grandes blocos políticos obstruíam os objetivos do adversário "mas sem recursos suficientes para impor, de forma duradoura, os seus próprios".

No entanto, a ideia do pêndulo político eleitoral ou da replicação do “impase” dos anos 60 omite uma tendência constante da estrutura social argentina. Como aponta o antropólogo Pablo Semán, se compararmos os indicadores socioeconômicos daqueles anos até hoje, o curso do país, mais do que a trajetória de um pêndulo, se assemelha mais à queda implacável de um tobogã.

Metamorfose no mundo do trabalho

As transformações na estrutura social argentina têm seu centro de gravidade no mundo do trabalho. A ditadura militar primeiro e a década neoliberal depois dissolveram a matriz produtiva que vinha sustentando aquela sociedade de quase pleno emprego. A destruição das estruturas de significado e sociabilidade proporcionadas pelo mundo do trabalho formal abriu caminho para uma profunda transformação dos laços sociais, em um processo de desfiliação partidária e desafeiçoamento social que modelava uma “sociedade excludente”, segundo a socióloga Maristella Svampa em seu livro que leva esse nome (Taurus, 2005).

A sociedade argentina, reconhecida décadas atrás por seus altos níveis de inclusão e por sua capacidade de ascensão social por meio da ação redistributiva de um Estado forte, agora parece coisa do passado. Para o sociólogo Juan Carlos Torre, nas últimas décadas a Argentina passou de um país de pobres para um país de pobreza, hoje estabelecida como um problema estrutural.

A crise de 2001 encenou dramaticamente essa transformação. As enormes massas de desempregados deixadas para trás pelas privatizações neoliberais correram para o espaço público exigindo empregos e assistência do Estado. Despojados dos repertórios de protesto oferecidos pelo mundo sindical do trabalho formal, eles o fizeram sem outra ferramenta de ação coletiva senão o bloqueio de estradas e ruas, os famosos “piquetes”. Assim nasceu o movimento “piquetero”, que dinamizou o protesto social naqueles anos de crise. Essas organizações sociais, longe de terem se dissolvido, continuaram a crescer.

O desenvolvimento dos movimentos sociais nos últimos anos reflete a evolução do mundo do trabalho e do peronismo como seu ponto de referência político "natural". Os governos Kirchner entre 2003 e 2015 conseguiram melhorar as taxas de emprego e reduzir a pobreza. No entanto, um setor da sociedade nunca conseguiu ser plenamente incluído e sobreviveu por meio de estratégias de trabalho autônomo em cooperativas de organizações sociais, a partir das quais disputou subsídios estatais e gerou empresas produtivas.

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Após 12 anos de kirchnerismo, quatro de macrismo e três de peronismo "albertista", esse setor não foi reabsorvido pelo emprego formal. Nos ciclos em que o desemprego caiu, ele o fez na base da informalidade. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em março de 2023, 45% das pessoas que trabalhavam na Argentina tinham empregos precários, sem direitos ou estabilidade no emprego. Além disso, muitos ganham salários extremamente baixos, o que é um fenômeno novo no país - embora talvez mais frequente nos países vizinhos -: a consolidação de um segmento da população com emprego formal, mas abaixo da linha da pobreza, os "trabalhadores pobres".

Atualmente, o Estado concede um subsídio mensal cujo valor equivale a 50% do salário mínimo a quase 1,2 milhões de pessoas que se encontram na informalidade. Em troca, devem cumprir um trabalho de meio período que geralmente fazem em cooperativas de movimentos sociais. Este é o setor de trabalhadores que as organizações que vêm do mundo piquetero procuram agrupar estrategicamente e cujas tarefas estão incluídas sob o rótulo de “economia popular”.

Esse setor, além de sua enorme capacidade de mobilização, vem diversificando suas estratégias de poder. Do lado sindical, formou um grêmio, a Unión de Trabajadores y Trabajadoras de la Economía Popular (UTEP), que já conta com quase meio milhão de membros. Por outro lado, iniciou negociações com os líderes do peronismo, com base nas quais apoiou a FdT e colocou militantes em cargos governamentais. Assim, desde 2019, observa-se a presença de líderes do movimento em cargos estatais, com a novidade particular de que oito deputados que respondem a essas organizações assumiram cargos no Congresso Nacional.

A mídia costuma mostrar como, em vários momentos, os governos devem negociar com sindicatos e movimentos sociais quase em conjunto. Este último é um setor que conquistou um espaço próprio no mundo político, a partir da representatividade que tem entre os mais necessitados. Mais de 20 anos após a eclosão social de 2001, tudo parece indicar que longos anos de destaque na cena pública aguardam os movimentos sociais.

Peronismo por trás da sociedade

O peronismo não era estranho a essas transformações no mundo do trabalho. Durante as últimas décadas, o movimento político mais importante da história argentina mudou sua relação com as bases sociais. Em seu livro "A transformação do justicialismo" (Siglo XXI Editores, 2005), o cientista político americano Steven Levitsky sintetizou esse percurso com uma frase sugestiva como subtítulo: "Do partido sindical ao partido clientelista". Com as estruturas sindicais enfraquecidas após a crise no mundo do trabalho, as redes de recrutamento do peronismo foram redirecionadas para os bairros populares por meio de mediadores estatais, tendo a periferia de Buenos Aires – a região mais populosa do país – como principal reduto eleitoral.

Ao mesmo tempo, e desde a redemocratização em 1983, uma das múltiplas facetas que o peronismo assumiu foi a de uma organização capaz de suturar cenários de crise econômica. Durante as duas crises mais dramáticas dos últimos anos, a de 1989 e a de 2001, os governos da época não conseguiram cumprir seus mandatos e nas eleições antecipadas os cidadãos deram votos de confiança ao peronismo para redirecionar a deterioração institucional.

Tanto em sua versão neoliberal com Carlos Menem nos anos 1990, quanto em seu formato progressista com Néstor Kirchner nos anos 2000, o peronismo oferecia ordem, estabilidade econômica e um ciclo inicial expansivo de consumo. A promessa de estabilidade e consumo também sintetizou as esperanças que a FdT suscitou após o fracasso de Macri. E é justamente o que agora retorna como enorme frustração para aqueles que apoiaram a candidatura de Alberto Fernández.

É verdade que, desde que assumiu o cargo, essa coalizão teve que enfrentar condições adversas: lidar com a pandemia de Covid-19, com a instabilidade dos preços em decorrência da guerra na Ucrânia e, mais tarde, com uma seca histórica que, de acordo com consultores privados, reduzirá as receitas para os cofres públicos em quase US$ 20 bilhões este ano devido à redução das colheitas. Mas não é menos verdade que tanto a pandemia quanto a guerra também afetaram o restante dos países e, se olharmos para o quadro regional, a maioria das economias latino-americanas teve índices de inflação muito mais baixos (que já estão em declínio), e seus índices de pobreza não aumentaram como na Argentina.

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No final deste ano, o país comemorará 40 anos de governo democrático ininterrupto. Essa estabilidade no regime político contrasta com a instabilidade econômica recorrente, com uma macroeconomia sempre afetada pela entrada insuficiente de divisas e pela ausência de projetos de desenvolvimento de longo prazo.

Quer a oposição vença este ano ou o partido no poder seja reeleito, o peronismo não poderá olhar para trás e dizer que desta vez cumpriu integralmente suas promessas de reparação econômica. Nesse sentido, um comercial da campanha eleitoral de 2019 agora retorna como uma lembrança desconfortável: a propaganda peronista mostrava um trabalhador em sua casa, com sua churrasqueira suja e em desuso devido à crise econômica do governo Macri. Uma voz em off narrava suas lamentações: "Antes, chegava o fim de semana e alguém dizia: 'Vamos fazer um churrasco?' A verdade é que, começar a perder essas coisas...". No final, o trabalhador diz animado: "O bom é que daqui a pouco tudo isso vai melhorar", antes de encerrar com o logotipo do partido e os nomes da chapa: "Alberto+Cristina".

O historiador Roy Hora apontou que o consumo de carne operou, durante o século 20, como uma "promessa peronista de reparar as mazelas do passado". As estatísticas atuais falam por si: em 2022 foi registrado o menor nível de consumo de carne dos últimos 100 anos.

Talvez essas frustrações, juntamente com os erros do macrismo e do peronismo em suas experiências recentes de governo, expliquem o surgimento do "libertário" Javier Milei, um economista de 52 anos expoente da extrema-direita. Sua figura procura incorporar uma versão local de Donald Trump ou Jair Bolsonaro.

De fato, nos segmentos juvenis – e especialmente entre os homens –, ele aparece como um candidato com uma imagem altamente positiva. Algumas análises sugerem que Milei consegue ser um catalisador para aqueles jovens frustrados pela falta de emprego e de horizontes econômicos, a que alguns acrescentam uma componente ideológica: este grupo seria o mais "prejudicado" pelo enorme avanço da agenda feminista e diversidade sexual. Mas sua proposta de dolarizar a economia e sua defesa do presidente Carlos Menem também estão ligadas a um certo anseio pela "estabilidade" dos anos 1990.

De todo modo, é evidente que na conjuntura atual o peronismo não é mais tão atraente quanto nos "anos dourados" do kirchnerismo, quando os jovens eram seduzidos pelos discursos apaixonados do líder e por um país com índices socioeconômicos mais saudáveis.

Foi a própria Ofelia Fernández, uma jovem ativista feminista e parlamentar que se juntou à FdT em 2019, que resumiu de forma inequívoca o que está acontecendo atualmente: "os jovens não se apaixonam mais pelo peronismo".

No entanto, não devemos perder de vista que, desde 1955, todos os presságios de morte do peronismo foram repetidamente negados pela realidade. Este movimento tem demonstrado ao longo dos anos uma enorme resiliência e capacidade de se reagrupar após situações críticas. Ele também exibiu reflexos e criatividade para irradiar nos setores médios e inferiores diante dos ventos ideológicos mutáveis.

Portanto, talvez não seja uma questão de prever um novo fim, mas sim de interpretar como esse movimento político histórico responderá aos novos tempos. Ou, para usar a pergunta de São Pedro: quo vadis, peronismo?


Este artigo foi publicado originalmente em espanhol pelo Nueva Sociedad.

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