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Javier Milei: o outsider 'anarcocapitalista' que ameaça a Argentina

Com ideologia 'libertária' de extrema direita importada dos EUA, o economista subiu para o terceiro lugar nas pesquisas

Pablo Stefanoni
21 Abril 2023, 10.00
Javier Milei no encerramento da campanha do partido La Libertad Avanza nas eleições primárias da cidade de Buenos Aires, em novembro de 2021
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Ricardo Ceppi/Getty Images

Como um autodenominado libertário, admirador de Donald Trump e Jair Bolsonaro que quer privatizar até as ruas, conseguiu chegar ao terceiro lugar nas pesquisas para as eleições presidenciais de outubro de 2023? A história da chegada de Javier Milei na política argentina poderia começar com essa pergunta.

O economista de 52 anos com um estilo "roqueiro" ganhou fama há alguns anos em programas de entrevistas na televisão, onde atacava virulentamente o economista britânico John Maynard Keynes usando argumentos de que não passava de um economista que trabalhava para "políticos ladrões". Ao mesmo tempo, difundiu suas ideias "libertárias" em uma peça teatral, uma espécie de monólogo com pouca produção, diante de grandes plateias, na qual se destacava uma grande presença de jovens.

Vários meios de comunicação começaram a falar sobre o economista do "penteado estranho", devido ao seu estilo particular. Em resposta, Milei dizia que simplesmente abria a janela do carro e a mão invisível do mercado penteava seus cabelos. Pela primeira vez, nos grandes programas de televisão veiculados em horário nobre, via-se alguém que se autodenominava "anarcocapitalista" e que defendia que o Banco Central tinha que ser dinamitado.

Ciente da enorme popularidade que sua mensagem havia conquistado, Milei decidiu se lançar na política. Nas eleições de 2021, sua frente La Libertad Avanza (A liberdade avança) obteve 17% dos votos na Cidade de Buenos Aires e entrou no Congresso Nacional.

A de Milei é uma batalha em que suas visões ideológicas se misturam com um processo de conversão pessoal. Tudo começou em 2013, como ele mesmo disse. Naquele ano, o economista leu um artigo do americano Murray Rothbard, que fez com que suas ideias anteriores desmoronassem.

Na época, Milei considerava que tudo o que havia ensinado como professor de microeconomia — basicamente teoria neoclássica — "estava errado". Foi então que ele se converteu à escola austríaca de economia de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek.

Foi uma verdadeira ruptura que, segundo diz, mudou sua visão de mundo. Mas o que alguns anos antes poderia ter passado despercebido, ou como um fenômeno puramente folclórico, germinou em um momento particular do mundo: a expansão do trumpismo, da alt-right e rejeição da política tradicional. Também coincidiu com um momento particular da Argentina: o de desilusão tanto com o peronismo quanto com a centro-direita.

Se no início de suas aparições públicas Milei só falava de economia, aos poucos ela passou a incluir uma série de temas da nova direita: o novo anticomunismo, a obsessão pelo Foro de São Paulo (rede de partidos de esquerda latino-americanos sem grande incidência real), a rejeição do "politicamente correto", a denúncia da "casta" política, a reivindicação da "liberdade" e, em termos gerais, a adesão ao novo anti-progressivismo corporizado na direita radical. A partir desta plataforma, à qual ele acrescentou seu estilo irreverente, ele pôs em marcha um verdadeiro fenômeno político.

Murray Rothbard (1926-1995), referência intelectual de Milei, já havia escrito em 1992, de forma bastante profética, que os libertários – ele preferia se chamar de paleolibertário para se diferenciar dos "hippies anti-autoridade" do Partido Libertário Americano – deveriam promover o populismo de direita como estratégia política.

A estratégia traçada por Rothbard buscava, fundamentalmente, tirar os libertários de seu isolamento político. Segundo suas previsões, uma aliança com forças de direita conservadoras e reacionárias lhes permitiria "chegar até o povo". Seu projeto antecipou fenômenos posteriores como o Tea Party ou o trumpismo.

Milei recupera, à sua maneira, essa tradição. Curiosamente, é hoje o candidato mais "ideológico" da oferta eleitoral argentina. E é a tal ponto que corre o risco de perder votos por isso. Um bom exemplo aconteceu há alguns anos, quando, para não contradizer sua ideologia, defendeu "mercados desconfortáveis" como o de venda de órgãos e até de crianças.

No plano internacional esteve ligado ao partido de extrema-direita espanhol Vox, a Bolsonaro (especialmente com o filho Eduardo) e a figuras como José Antonio Kast no Chile. Além disso, apoia Donald Trump, incluindo suas alegações de fraude e seu negacionismo climático. Na discussão intralibertária sobre o aborto, Milei se define como "pró-vida".

Com 20% das intenções de voto, Milei conta com uma interminável quantidade de líderes locais que querem 'surfar' em sua onda

Hojem o economista se dedica a construir seu projeto nas províncias argentinas, onde a política é mais "territorial" do que ideológica. Em seu círculo íntimo estão sua irmã, a quem chama de "La Jefa" (a chefe) apesar de não ter a menor experiência política, e Carlos Kikuchi, que já foi porta-voz do ex-ministro da Economia, Domingo Cavallo, durante a presidência de Carlos Saúl Menem.

Com 20% das intenções de voto em algumas pesquisas, Milei conta com uma interminável quantidade de líderes locais que querem “surfar” em sua onda nas eleições de 2023. Segundo várias fontes, ele teria colocado como condição para qualquer aliança com políticos locais que, primeiro, apoiassem publicamente sua candidatura presidencial e, depois, conquistassem pelo menos 15% das intenções de votos.

Longe de apostar em jovens libertários inexperientes e utópicos para renovar a política, Milei aposta em figuras locais no interior da Argentina ou estruturas já instaladas, mesmo que façam parte da odiada “casta” política.

Assim, em Tucumán, Milei aliou-se a Ricardo Bussi, filho de Antonio Domingo Bussi, condenado por crimes contra a humanidade durante a ditadura militar. Ricardo Bussi faz campanha de estande de tiro a favor do porte livre de armas. É muito improvável que algum desses políticos provincianos tenha jamais ouvido o nome de Rothbard ou possa explicar o termo "anarcocapitalismo", mas são perfeitamente capazes de repetir alguns slogans sobre a decadência argentina e a "liberdade".

Se a centro-direita sustenta que a Argentina "se ferrou" com o peronismo, Milei situa esse momento bem antes na história e leva sua retro-utopia para a Argentina liberal do século XIX (quando ainda não existia o Banco Central). Curiosidades argentinas: Assim como o macrismo e outros anti-peronistas, Milei acredita que o melhor presidente argentino foi Carlos Menem, um peronista, responsável pelas privatizações em massa da década de 1990.

Ideologicamente, os libertários de extrema direita de Milei mantém uma ambiguidade fundamental: se às vezes consideram o Estado um mal absoluto – Milei chegou a dizer que o Estado é pior que a máfia – e defendem o armamento individual como solução ultra-individualista para a insegurança , outras vezes apoiam a mão de ferro e defendem a polícia, ou governos como o de Bolsonaro.

É um dilema familiar do ultra-liberalismo: entre uma democracia "socialista" e uma ditadura liberal, a última seria melhor. Por isso, no passado, vários "liberais" apoiaram a ditadura de Augusto Pinochet no Chile. Mas no caso de Milei não se trata apenas de cinismo ou padrões duplos. Nas suas propostas existe uma tensão entre o seu "anarquismo" e o seu "direitismo" e uma rejeição mais ou menos explícita da democracia, associada aos odiados políticos da "casta".

Milei propõe privatizar toda a vida social, incluindo "as ruas", que, sendo públicas, "exalam socialismo", ou as prisões. Como odeia a política profissional, ele sorteia seu salário de deputado todos os meses entre milhares de inscritos.

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Sem dúvida, se o candidato da oposição for o chefe de governo da Cidade de Buenos Aires Horacio Rodríguez Larreta (centro-direita mais moderado), as chances de Milei em outubro de 2023 são maiores do que se for a ex-ministra da Segurança, Patricia Bullrich, que encarna um discurso mais duro. Na verdade, Milei considera que Bullrich, como Macri, não pertence à "casta".

Segundo algumas pesquisas, Bullrich, com um discurso "populista de direita", está crescendo enquanto Rodríguez Larreta permanece estagnado com sua aposta mais centrista. Rodríguez Larreta, no entanto, conta com grandes recursos do governo da cidade mais rica do país.

Na província de Buenos Aires, distrito estratégico, o peronismo cruza os dedos para que Milei cresça e tire votos do macrismo. Como na província não há segundo turno eleitoral (tudo se define no primeiro), uma vantagem do voto libertário garantiria a reeleição do kirchnerista Axel Kicillof como governador.

Enquanto isso, Juntos por el Cambio tomou nota do novo clima e está procurando blindar suas listas com candidatos "liberais", numa tentativa de neutralizar o fenômeno Milei.

Quanta rebelião conformista há nos muitos jovens que tiram selfies com o libertário? Quanta homenagem à cultura das celebridades existe em seus fãs? Milei expressa um fenômeno subcultural (na época desprezado por alguns cientistas políticos) que se espalhou para a política. Uma espécie de tribo urbana que de repente foi capaz de gerar um fenômeno eleitoral.

"Liberdade" como um significante vazio é a chave do discurso de Milei. E esse termo tem várias declinações, desde o "direito humano" de sonegar impostos (Milei dixit) até a demanda pela economia informal em áreas populares, o que também lhe dá votos em espaços sociais que antes eram reativos ao voto para liberais que eram demasiado rígidos e elitistas.

Esse "libertarismo" será um fenômeno passageiro ou se enraizará no cenário político local? É muito cedo para saber. De todas as forma, sua ascensão reflete uma espécie de retorno dos reprimidos da crise de 2001. Hoje o mal-estar voltou, em meio a uma inflação descontrolada e um futuro em crise, mas as ofertas "anti-neoliberais" são corroídas pelos resultados ambivalentes da própria experiência Kirchnerist pós-2003.

Nesse quadro, emerge algo que permaneceu latente (derrotado ideologicamente) em 2001: o compromisso de superar a crise não questionando o "neoliberalismo", mas, ao contrário, dando um salto à frente: dolarizando a economia – proposta levantada por Menem em 2003.

Milei faz parte de um fenômeno mais amplo que tem outros atores na mesma linha: o fato de que Patricia Bullrich, ex-líder do peronismo de esquerda e agora líder de direita, tem agora chance de chegar à Casa Rosada com um discurso mão de ferro – tanto contra o crime quanto contra o protesto social – faz parte deste revival de 2001 sem massas nas ruas, mas com muita frustração social.


Este artigo foi publicado originalmente em espanhol na revista argentina Nueva Sociedad.

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