democraciaAbierta: Analysis

Austrália debate implementar Delegacia da Mulher inspirada no Brasil. Funciona para 'todas' as mulheres?

Estabelecidas nos anos 80, as unidades especializadas em vítimas mulheres se espalharam pelo mundo. Mas, a quem atendem?

Ann Deslandes
Amanda Porter Crystal McKinnon Marlene Longbottom Ann Deslandes Nicole Froio
3 Fevereiro 2023, 11.53

Governo de São Paulo

Propostas de expansão do poder policial, criminalização do controle coercitivo e o estabelecimento de delegacias da mulher já ocuparam espaço proeminente nos debates sobre violência contra a mulher na Austrália.

A proposta de estabelecer delegacias da mulher tem recebido atenção na grande mídia e na academia. Também apareceu em debates sobre desenvolvimento de políticas públicas como a recente Força-Tarefa de Segurança e Justiça das Mulheres, baseada em Queensland.

No movimento local e global pelas vidas pretas e Indígenas, onde campanhas associadas estão pedindo ao público que examine os poderes da polícia e discuta o desfinanciamento da polícia, muitas feministas australianas têm defendido soluções punitivas para a violência doméstica.

Porém, atualmente não existem evidências confiáveis ​​para apoiar a implementação de delegacias de mulheres, e a pesquisa que sustenta a proposta na Austrália é problemática de várias maneiras.

O que é uma delegacia da mulher?

A delegacia da mulher é planejada para responder especificamente à violência contra a mulher. Elas fazem parte do policiamento na Argentina, Brasil e outros países latino-americanos desde meados da década de 1980, bem como em partes da África e da Ásia.

Algumas delegacias da mulher adotam uma abordagem “multidisciplinar” para o policiamento da violência doméstica. Eles contam com equipes de policiais que trabalham ao lado de assistentes sociais, psicólogos e advogados. No entanto, as delegacias da mulher ainda são delegacias de polícia.

As delegacias da mulher variam em aparência, algumas com design colorido e com salas de jogos para crianças e salas de boas-vindas decoradas com flores e murais.

Sua função é fornecer serviços para as mulheres. Não está claro se estas delegacias fornecem serviços para pessoas que se identificam como mulheres mas que se encontram fora do binário cisgênero.

O que dizem os estudos?

Até hoje, reportagens australianas sobre delegacias da mulher tem dependido quase exclusivamente na pesquisa da criminologista australiana Kerry Carrington.

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Jornalistas e comentaristas tem usado esta pesquisa frequentemente para argumentar pelo estabelecimento de delegacias da mulher na Australia. O jornalist investigativo Jess Hill afirma:

Não usamos policiais para combater incêndios ou dirigir ambulâncias, porque isso é considerado trabalho especializado. Então, por que não pegamos a polícia que adora responder à violência familiar […] e criamos uma força paralela? […] É um modelo comprovado que existe na América Latina (e em vários outros países) há 35 anos.

As evidências apresentadas a favor das delegacias da mulher são, em grande parte, extraídas de dois estudos originais. Ambos estudos foram liderados pela professora Carrington da Universidade de Tecnologia de Queensland.

O primeiro foi um estudo realizado na Argentina durante um período de três meses.

Esta pesquisa incluiu entrevistas com 100 funcionários de dez delegacias da mulher na província de Buenos Aires, Argentina. Os participantes da pesquisa foram selecionados pelo Ministério de Segurança da província – a quem a delegacia de polícia responde.

O segundo estudo baseou-se nos resultados de duas pesquisas realizadas na Austrália sobre atitudes em relação à proposta de delegacias da mulher.

Essas duas pesquisas aconteceram das seguintes formas: uma pesquisa feita com a “força de trabalho”, que foi distribuída a policiais australianos, organizações não-governamentais e assistentes sociais; a segunda pesquisa foi “comunitária”, com recrutamento de adultos australianos por meio de publicidade no Facebook.

O segundo estudo descobriu que as pessoas achavam que as delegacias da mulher poderiam melhorar o policiamento da violência de gênero em comunidades Indígenas na Austrália se fossem compostas por equipes adequadamente treinadas que trabalhassem com perspectivas sensíveis ao gênero e a culturas não-hegemonicas.

Os autores do estudo concluem:

adaptadas ao contexto australiano onde as mulheres Indígenas são muitas vezes mais propensas a sofrer violência doméstica familiar, essas delegacias de polícia especializadas precisarão ser adequadamente equipadas por oficiais Indígenas e não Indígenas treinados para trabalhar com perspectivas sensíveis ao gênero e a culturas não-hegemonicas.

Problematizando os estudos

Os dois estudos tem questões problemáticas.

Em relação ao estudo na Argentina — todos os 100 participantes eram funcionários remunerados das duas delegacias pesquisadas. 79% dos participantes eram policiais e 21% eram advogados, assistentes sociais ou psicólogos empregados ou de outra forma envolvidos nas duas delegacias selecionadas para o estudo

As delegacias da mulher não estão livres de discriminação e violência, já que existem denúncias de transfobia

O estudo não considera como a condição dos participantes da pesquisa como funcionários das delegacias pode ter influenciado suas opiniões.

Uma segunda questão é que o estudo não incluiu entrevistas com sobreviventes de violência de gênero ou suas famílias ou redes de apoio. Também não incluiu entrevistas com pessoas das comunidades que as delegacias atendem.

Uma terceira limitação (que os autores reconhecem) é que o estudo não examina se essas delegacias reduziram as taxas de criminalidade, estatísticas de violência doméstica ou apreensão de ordens de violência.

Além disso, não são fornecidos dados sobre fatores importantes para avaliar as reivindicações de benefício das delegacias da mulher em outros assuntos relacionados à violência doméstica. Por exemplo, se as delegacias da mulher aumentam o acesso a apoio legal ou se melhoram a capacidade de uma pessoa denunciar a violência.

Por fim, nenhum dos estudos analisa se houve redução nos índices de criminalidade ou nas estatísticas de violência doméstica, feminicídio ou mandados de apreensão de violência.

É difícil avaliar a eficácia das delegacias da mulher sem esses dados.

Estudos apontam que delegacias da mulher não funcionam

Avaliações das delegacias da mulher tiveram resultados inconclusivos. Por exemplo, um recente resumo de estudos na Índia descobriu que “delegacias só para mulheres não melhoraram os serviços para vítimas de violência de gênero”.

O estudo não descobriu nenhuma melhoria na delação ou responsabilização de agressores em relação às delegacias de polícia da mulher na Índia.

E há evidências que sugerem que as delegacias da mulher não estão livres de discriminação e violência, já que existem denúncias de transfobia.

Um artigo do jornal de língua espanhola Delito y Sociedad, em 2016, relatou que policiais do sexo feminino associadas à delegacia da mulher de La Plata (província de Buenos Aires, Argentina) prenderam e revistaram publicamente dez mulheres transgênero. As mulheres disseram que foram ameaçadas de serem baleadas caso se movessem. Elas afirmaram que quatro delas foram detidas por razão nenhuma além de sua visibilidade como mulheres trans.

O evento levou à condenação generalizada da delegacia da mulher de La Plata por grupos de defesa de pessoas trans, especialmente porque a equipe da delegacia na época incluía uma mulher trans.

Há também a questão da morte de Úrsula Bahillo que indica que essas delegacias nem sempre são eficazes na proteção de pessoas que sofrem violência doméstica.

Bahillo denunciou a violência de seu namorado policial à delegacia da mulher em pelo menos 18 ocasiões diferentes. Ela morreu três dias depois de denunciar seu caso a uma delegacia da mulher na província de Buenos Aires em fevereiro deste ano.

O La Capital informou que a família de Bahillo afirmou que a delegacia da mulher “não fez nada”.

BBC Mundo noticiou:

O caso de Úrsula Bahillo ficou famoso pelas repetidas vezes que ela pediu ajuda, denunciou seu agressor [à polícia] e não foi ouvida.

Estudos sobre policiamento realizados na Austrália e no Reino Unido sugerem que simplesmente aumentar o número de policiais do sexo feminino nunca será suficiente para melhorar o policiamento discriminatório.

Apesar da liderança feminina no policiamento em Queensland, ainda há relatos de sexismo e racismo entre a polícia, inclusive instancias de policiais postando nas redes sociais que as mulheres mentem sobre violência doméstica.

E quanto as mulheres Indígenas e pretas?

Encontramos muito poucos estudos sobre as experiências de mulheres pretas e Indígenas com delegacias da mulher, além de um relatório de 2010, sobre a América Latina, que observou:

As mulheres Indígenas e afrodescendentes têm acesso limitado [às delegacias da mulher] porque poucos operadores vêm de ou entendem essas culturas e poucos falam suas línguas.

As delegacias não são locais seguros para pessoas Indígenas

Defensores dos direitos Indígenas têm repetidamente chamado a atenção para o fracasso da polícia em proteger as mulheres e famílias Indígenas.

Um exemplo disso é o caso de Tiffany Paterson, uma mulher indígena do Território do Norte que foi violentamente agredida depois que a Polícia do Território do Norte não a protegeu. Tiffany, que sobreviveu ao ataque, mais tarde processou a Polícia do Território do Norte por negligência e estabeleceu termos confidenciais.

É amplamente sabido nas comunidades Indígenas que as delegacias não são locais seguros para pessoas Indígenas. Elas também não são seguras para que pessoas Indígenas peçam assistência, em casos de violência doméstica ou de violência sancionada pelo Estado.

Sabemos que as famílias e comunidades Indígenas costumam responder na linha de frente à violência doméstica. As mulheres Indígenas são mais propensas a denunciar violência ou buscar apoio de funcionários de organizações Indígenas, não da polícia ou de serviços não-Indígenas.

Sabemos que o policiamento da violência doméstica desempenha um papel significativo na remoção de crianças Indígenas de suas famílias. A profunda desconfiança na polícia dentro das comunidades Indígenas é reconhecida pela própria polícia.

A delegacia da mulher não é a solução

A literatura produzida com comunidades Indígenas por pesquisadores Indígenas e não-Indígenas na Austrália aponta alternativas concretas para mulheres e famílias Indígenas em situação de violência.

Isso inclui serviços comunitários e serviços de apoio jurídico culturalmente seguros.

As feministas brancas devem ouvir os povos e organizações Indígenas que estão na linha de frente, oferecendo serviços de prevenção e intervenção precoce baseados em evidências, bem como pesquisadores Indígenas com experiência vivida.

Quem anteriormente apoiou as delegacias da mulher deve estudar estas pesquisas importantes e reconsiderar sua posição. É um momento crucial para essas discussões, no aniversário de 30 anos da Comissão Real de Mortes Aborígenes sob Custódia, com o aumento das taxas de encarceramento indígena e a preparação de um novo Plano Nacional de dez anos para lidar com a violência contra mulheres e crianças.

*Traduzido por Nicole Froio


Originalmente publicado em inglês na The Conversation, Australia, 17 de setembro.

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