
‘Jair Bolsonaro (sem partido)’ é como a imprensa se refere ao respectivo presidente desde novembro de 2019. O ‘sem partido’, ainda que entre parênteses, causa um mal-estar aos apoiadores da estrutura democrática-partidária. E concretiza um projeto ideológico para o estabelecimento de retrocessos coordenados.
Jair Bolsonaro é sem partido como o retrógrado programa ‘Escola sem Partido’. Jair Bolsonaro é sem partido como, em junho de 2013, pregou-se o ‘sem partido’, durante as manifestações populares. E finalmente, é sem partido como o regime militar de 1964-1985 baniu o multipartidarismo.
É preciso entender o perigo de um presidente sem partido. Aliás, é necessário que se entenda o ‘Bolsonaro sem partido’ como um sintoma do enfraquecimento da democracia: o da vilanização da política – postura que ajudou Bolsonaro a se eleger em um contexto de crescente despolitização.
Infelizmente, esse apartidário projeto bolsonarista ameaça as instituições democráticas brasileiras.
Há quase dez meses ‘sem partido’, Bolsonaro deixou o Partido Social Liberal (PSL) em novembro de 2019. Na ocasião, entre confrontos e declarações agressivas, anunciou que criaria seu próprio partido – ‘Aliança pelo Brasil’. De legenda 38, tal qual a arma de fogo exaltada por sua base.
Lançado no melhor estilo de ‘campanha fanatista’, característico do populismo de Bolsonaro, hoje pouco se comenta sobre a continuidade da Aliança pelo Brasil. E Bolsonaro (propositalmente?) segue um presidente sem partido. Pois como já deixou claro, discorda da estrutura democrático partidária e mais ainda, da própria democracia.
A pós-política é uma ilusão liberal de que a política pode existir sem políticos
Além de um alinhamento ou desalinhamento com certa ideologia política, esse não-partidarismo aparece no contexto de uma estratégia de despolitização, iniciada antes mesmo da eleição de Bolsonaro. Como aponta a pesquisadora e socióloga Sabrina Fernandes, a pós-política cria uma ilusão de que a melhor política é a feita sem políticos.
Há, então, uma redução do espaço político e com isso, do espaço de discussão. A pós-política sugere uma imparcialidade, disfarçada de técnica e ética. Atua-se como se não houvesse um debate político quando há de fato uma clara preferência por um lado. Segundo Fernandes, a pós-política é uma ilusão liberal de que a política pode existir sem políticos.
A despolitização cresce no contexto de crise de representação ou de desilusão com a política. Vale retomar, então, uma análise do projeto ‘Escola sem Partido’, instrumentalizado na campanha de Bolsonaro para pregar a ‘desesquerdização' das escolas.
O Escola sem Partido surgiu em 2004, porém se fortaleceu sobretudo após 2013, impulsionado pela organização da direita conservadora no Brasil. Apesar de anunciar-se como apartidário e sem ideologia, promovia claros valores conservadores. Por exemplo, ao pregar a proibição de discussão sobre temas relacionados a gênero e sexualidade nas escolas – considerados, dentro do projeto, como ‘político partidários’.
Junto com o ‘Escola sem Partido’, outros movimentos sociais conservadores também se fortaleceram em 2013, no período das ‘Jornadas de Junho’. Então, discursos como ‘sem partido’, ‘sem bandeira’ e a famigerada frase de ordem ‘nem esquerda, nem direita, para frente!’ encobriram a instrumentalização dos protestos por projetos neoliberais e conservadores.
O perigo existe, então, na vilanização da estrutura partidária, da negação da importância dos partidos políticos e com isso, do sistema democrático partidário
Nesse sentido, gritos de ‘sem partido’ ou ‘nem esquerda, nem direita’ promoveram a despolitização dos manifestantes pela vilanização do sistema político partidário e da política. Projetos políticos como o de Jair Bolsonaro começaram a ser desenhados em 2013, alimentando discursos antipartido, antipolítica e antipetistas.
Diferente da ‘Escola sem Partido’ e das ‘Jornadas de Junho’, o ‘sem partido’ de Bolsonaro não mascara seu conservadorismo, uma vez que o discurso ultradireitista foi abertamente usado para sua eleição. O perigo existe, então, na vilanização da estrutura partidária, da negação da importância dos partidos políticos e com isso, do sistema democrático partidário.
Um dos maiores legados da redemocratização brasileira é o estabelecimento do pluripartidarismo na constituição federal, uma vez que em períodos de violência autoritária, a existência ou a autonomia partidária foi negada. Como o reconhece o próprio Tribunal Superior Eleitoral brasileiro:
“Na nossa experiência histórica, as noções de partidos políticos e de democracia (...) estão intimamente ligadas, pois a divulgação, pelos partidos, de diversas doutrinas filosóficas e políticas existentes no mundo tem fomentado o debate e a busca de soluções para as diversas mazelas que afligem nossa sociedade, favorecendo a formação de opinião sobre as principais questões que envolvem o país e o amadurecimento do eleitor para o exercício da cidadania.
Desde os tempos de parlamentar, Bolsonaro flerta abertamente com o autoritarismo – seja em posturas necropolíticas, na defesa de torturadores, ou em interferências diretas no governo. Porém, ao seguir governando ‘sem partido’, mostra, de fato, uma postura de afronta direta à histórica luta democrática brasileira e aos direitos políticos enquanto componentes da cidadania.
Um presidente sem partido minimiza o papel da mobilização política e alimenta a despolitização e a antipolítica em sua base, enquanto celebra a erosão das próprias estruturas democráticas que o levaram ao poder.
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