democraciaAbierta: Opinion

Brasil está prestes a decidir entre democracia e autocracia

Se antes tínhamos um antipetismo liderado pela direita elitista, porém democrática, hoje temos uma extrema-direita sólida

Mari Stockler Rodrigo de Almeida
19 Outubro 2022, 12.01
Lula ganhou o primeiro turno das eleições com 48%, enquanto Bolsonaro levou 43%
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Pilar Olivares/REUTERS/Alamy Stock Photo

Depois de um resultado vitorioso, porém frustrante, para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no primeiro turno das eleições presidenciais brasileiras, os primeiros movimentos apontam para o desenho de algo desejado há bastante tempo no país e poucas vezes sedimentada: uma frente ampla, de natureza diversa e multipartidária, capaz de unir forças originalmente antagônicas no Brasil em torno de um projeto comum. É o efeito do que está em curso hoje por aqui: evitar que um segundo mandato de Jair Bolsonaro conduza o país ao aprofundamento do autoritarismo e dos retrocessos em áreas-chave, e se converta na formação definitiva de uma autocracia, com avanço ainda maior sobre os limites impostos pela democracia e pela Constituição e mergulho das instituições democráticas nacionais na falência e no esgotamento. Nos últimos quatro anos assistimos a um ensaio dessa autocracia – e já foi trágico de ver, sentir e sofrer.

Os sinais de resistência, porém, parecem evidentes, e vão além das preferências ou críticas ao ex-presidente Lula. Se ele já tinha o apoio de Marina Silva (ex-senadora, ex-ministra no primeiro mandato de Lula e ex-adversária de Dilma Rousseff na dura eleição que levou a primeira mulher ao poder no país), Lula ganhou a defesa explícita do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Se já tinha o apoio de nomes moderados e luminares da Justiça brasileira – como os ex-ministros do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, Carlos Ayres Britto, Carlos Velloso, Joaquim Barbosa e Nelson Jobim – Lula ganhou a defesa explícita da candidatura da senadora Simone Tebet (MDB), terceira colocada com cerca de 5 milhões de votos, e também de empresários que, no primeiro turno, a apoiavam. Se já tinha o apoio de representantes respeitados da sociedade civil, entre empresários, intelectuais, artistas, organizações do campo dos direitos humanos, da educação e do meio ambiente, Lula ganhou a defesa explícita de economistas que, anos atrás, gravitavam em torno dos governos do PSDB, partido de Fernando Henrique Cardoso e, até um passado recente, o único que polarizava com o PT.

Não é pouca coisa.

Há um eixo comum – e duplo – a todos esses diversos apoios conquistados pelo ex-presidente Lula. De um lado, a defesa da democracia. De outro lado, o temor e a resistência diante dos retrocessos e do aprofundamento da destruição que Bolsonaro representa para o meio ambiente, a cultura, a economia, os direitos humanos e as liberdades civis e políticas. Une fervorosos e fiéis eleitores de Lula e do PT (da esquerda à centro-esquerda) a liberais de centro e centro-direita. No resumo de um importante economista ligado ao PSDB, Persio Arida: “Eu não quero que a democracia morra. Bolsonaro é um risco à estabilidade institucional e ao equilíbrio dos Poderes. (...) O desempenho da economia foi muito ruim. (...) E voto também no Lula por causa da minha preocupação com o meio ambiente. Eu tenho a esperança que a gente vai deixar de ser um pária entre as nações mais desenvolvidas quando Bolsonaro sair. Faz parte da nossa responsabilidade perante o mundo, como parte da humanidade, zelar pela preservação do ambiente.”

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O ex-presidente é o único político brasileiro capaz de impor a paz em um país fraturado

Se a incerteza econômica, a emergência climática e as novas tensões geopolíticas dão o tom da conjuntura mundial – desafios para os quais Bolsonaro se mostrou incapaz de responder à altura da importância do Brasil – hoje integram a agenda de problemas domésticos o crescimento rastejante, as limitações fiscais crônicas, a degradação ambiental e, sobretudo, o crescimento da pobreza e da fome, que se ancoram na violência e desigualdades superpostas de renda, raça, gênero e região. Problemas para os quais – convém repetir – Bolsonaro não só se mostrou incapaz de responder adequadamente como trabalhou para aprofundá-los. Essas mazelas não nasceram com Bolsonaro, mas os seus quase quatro anos de governo aprofundaram praticamente todas elas, mesmo com a resistência (e resiliência) das instituições democráticas, da imprensa e da sociedade civil organizada.

O atual presidente lidera um grupo político que, para citar uma importante analista política brasileira, a jornalista Maria Cristina Fernandes, não chegou ao poder para governar, mas para desfazer. Durante o 1º turno das eleições, exibiu orgulhoso a retirada de 4 mil radares nas estradas brasileiras, num país onde morrem 3 pessoas por hora, ou 89 por dia, no trânsito. Ao defender o seu principal programa de assistência social, o Auxílio Brasil, trata de mostrar que chegou para substituir o Bolsa Família, programa do governo Lula responsável por reduzir a pobreza com as condicionalidades de permanência na escola dos filhos dos beneficiados. Na educação, viu-se uma política mais concentrada em guerras culturais e ideológicas, com militarização do ensino e completa omissão dos déficits de aprendizagem decorrentes da pandemia da Covid-19 (não nos esqueçamos que o Brasil foi um dos países que deixou as escolas públicas fechadas por mais tempo ao longo da pandemia). Na cultura, operou desmonte de políticas e instituições culturais, e incitou ataques e censura a artistas e produtores culturais, especialmente aos críticos ao seu governo. No meio ambiente, deu-se uma devastação nos órgãos de fiscalização de crimes ambientais, com desvio de funções de órgãos e perseguição a funcionários públicos.

Por fim, mas não menos a importante, a destruição da própria democracia, e não apenas pela constante retórica de ameaça a instituições e a “inimigos” na Suprema Corte, ou pela incitação à violência combinada com a política de estímulo às armas nas mãos de civis (nesses quatro anos saímos de 350 mil para mais de 1,3 milhão de armas registradas). Embora, como afirma Steven Levitsky, “autocratas sempre começam com palavras”. Bolsonaro já deu muitos passos além das palavras e sua eventual reeleição pode abrir-lhe a porta que faltava para acelerar o projeto. A reeleição de lideranças autoritárias, como mostram os casos da Hungria, da Índia, da Venezuela e das Filipinas, é o gatilho da virada de regime, ainda que sob a legitimidade das eleições.

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Fake news e desinformação tiveram um papel decisivo no primeiro turno, e terão um papel ainda mais decisivo no segundo turno

O campo progressista e democrata brasileiro saiu atônito no 1º turno. Ficou flagrante a sedimentação de uma base de direita e conservadora – ou, mais do que isso, reacionária – traduzida pelo crescimento considerável da bancada no Congresso Nacional e nos governos estaduais em estados relevantes do país. Como em 2006, em sua última campanha vitoriosa, Lula voltou a vencer em todos os estados do Nordeste. Já Bolsonaro repetiu seu desempenho em 2018 nos estados do Sul e do Centro-Oeste, e conta com aliados de peso em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. O Brasil pode ter virado de ponta-cabeça, mas o fato é que o mapa do país segundo as votações para a Presidência seguiu mais ou menos o mesmo padrão de eleições anteriores, considerando de 1994 para cá. Em outras palavras, há um Brasil que vota em Lula e/ou no PT e há um Brasil que os rejeitam.

A mudança é que, se antes tínhamos um antipetismo liderado pelo PSDB de Fernando Henrique Cardoso – uma direita elitista, porém democrática – hoje temos uma extrema-direita sólida, liderada e representada por Bolsonaro. O campo democrático (da centro-direita à extrema esquerda) ainda não sabe bem como lidar com esse ambiente. Pelas variadas experiências de vida, por demandas específicas, crenças, decepções e ressentimentos, o fato é que tudo isso confluiu na rejeição às bandeiras e valores da esquerda e encontrou um líder popular que as expressa da forma mais bárbara – tosca, raivosa e antidemocrática – levando grande parte do país a votar no presidente, apesar de todos os graves retrocessos mencionados antes. Basta ver a constatação surpreendente e desnorteadora de que Bolsonaro venceu nos municípios onde a pandemia da Covid-19 mais matou. Isso mesmo: o presidente que trabalhou contra a vacina, que desdenhou dos mortos e dos enlutados, que estimulou aglomerações em pleno momento de isolamento social ganhou votos onde a Covid-19 mais mostrou a sua face severa.

Os próximos dias servirão para entendermos a natureza desse eleitorado e, assim, recompormos o básico, para aí sim reconstruirmos os tecidos perdidos de conexão com esta parcela da população. Não custa repetir: está em jogo evitar o nascimento definitivo de uma autocracia na sua pior face e assegurar a própria existência da democracia na forma como a conhecemos. Uma democracia que vá além da visão minimalista de restringi-la a eleições livres. Uma democracia de direitos, participação e oportunidades.

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