Embora haja poucas dúvidas sobre o impacto no mundo real da desinformação maliciosa – a começar pelo negacionismo oficial da vacina enquanto o Brasil acumulava o segundo com o maior número de mortes mundiais por Covid-19 –, não há consenso entre os brasileiros sobre como lidar com um dos mais novos e os mais intratáveis problemas da democracia.
Como costuma acontecer na política brasileira, parte do esforço para conter a desinformação também é pessoal. A repressão institucional de Lula se deu após uma bateria de ameaças e ataques online de turbas de direita contra ministros do STF e seus familiares. Grande parte da raiva se concentra em um homem: o ministro Alexandre de Moraes, ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo.
Desde que foi nomeado para o STF em 2017, Moraes assumiu uma postura firme contra as fake news. Ordenou que fossem presos e multados aqueles que as financiam, e derrubou dezenas de contas de mídia social supostamente sediciosas. Moraes tornou-se tão onipresente que a analista política brasileira Beatriz Rey, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), recentemente o chamou, em tom de brincadeira – ainda que com um fundo de verdade –, de "protetor do reino", em referência à série “Game of Thrones”.
Embora a cruzada do Brasil para reprimir a desinformação arranque aplausos, ela também inspira apreensão. Por mais que os brasileiros de esquerda argumentem que a maioria dos ministros, colegas de Moraes, acabam apoiando suas decisões, nenhum deles, nem outra liderança do país, levou o papel de vingador tão a sério. Sugere-se que a inspiração de Moraes seja outra figura jurídica polêmica: Sergio Moro, o ex-juiz que presidiu o escândalo de corrupção da Lava Jato, mas que caiu em desgraça por extrapolar suas funções em decisões consideradas parciais.
“Moraes usa a mesma caneta poderosa [que Moro]”, disse Claudio Lucena, acadêmico da Universidade Estadual da Paraíba, que faz parte do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade. “Sim, a maioria dos juízes tende a apoiá-lo, mas ninguém tem coragem de tomar a iniciativa”, disse Lucena, referindo-se aos críticos que acusaram Moraes de testar os limites da lei.
Embora o ativismo de Moraes incomode os críticos, ele evidencia a desconfiança em relação a outras instituições nacionais. Legisladores federais têm hesitado sobre um projeto de lei para conter fake news e o chamado "gabinete do ódio", uma fábrica de discurso rancoroso, alegadamente supervisionada pelo segundo filho de Bolsonaro, Carlos. Em vez de investigar alegações de difamação digital, incitação à violência e conteúdo malicioso, o procurador-geral da República fez vista grossa
A inércia oficial forçou a mão do STF, que se precipitou em algumas oportunidades. Parte do problema é a missão impossível do órgão, que serve simultaneamente como tribunal constitucional, tribunal de última instância do país e tribunal de primeira instância para autoridades eleitas que gozam da imunidade processual em tribunais inferiores.
O resultado é uma lista anual de dezenas de milhares de casos, conferindo poderes desproporcionais aos 11 ministros, cada palavra da qual é divulgada, examinada e atacada online e offline. O Congresso encoraja o excesso judicial, recorrendo rotineiramente das derrotas legislativas para o mais alto tribunal. Esses processos são onerosos. De fato, o Brasil tem o judiciário mais caro do mundo em termos de paridade de poder de compra.
No entanto, seria enganoso reduzir a resposta do Brasil à desinformação apenas a um vingador togado. A criação da nova procuradoria faz parte de um esforço contínuo do judiciário e de grupos da sociedade civil para remover fake news, conspirações e discursos de ódio das plataformas de mídia social. Uma nova Secretaria de políticas digitais, vinculada ao Ministério da Justiça, também entrará na luta.
No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça e o STF, juntamente com mais de uma dezena de órgãos e organizações, lançaram um painel multissetorial para conscientizar a população sobre os riscos de produzir e compartilhar desinformação. A campanha #fakenewsnao atingiu dezenas de milhões de pessoas. Enquanto isso, o mais alto tribunal eleitoral do país assinou acordos com grandes empresas de mídia social para reprimir a desinformação e criar um observatório liderado pela sociedade civil para monitorar e relatar conteúdo nocivo online.
Os dissidentes de extrema-direita incluem o deputado federal e herdeiro de Bolsonaro Eduardo, bem como muitos membros de partidos fora da bolha de Bolsonaro, como os deputado federais Kim Kataguiri do liberal-conservador União Brasil, Lucas Redecker do PSDB e Adriana Ventura, do libertário Novo. A principal preocupação deles é o risco de o governo Lula criar um sistema de vigilância estilo Big Brother para espionar adversários e cercear a liberdade de expressão, além de confundir opinião com incitação ao crime.
No Brasil, o debate sobre como regular os danos digitais está esquentando. Com vários dispositivos do decreto presidencial a serem regulamentados, a AGU deve cumprir a promessa de impedir que a vigilância se transforme em censura. Ao mesmo tempo, políticos e influenciadores que transformaram fake news, conspirações e discursos de ódio em um nicho de negócios estão direcionando suas armas digitais para o novo órgão. De qualquer forma, enquanto legisladores e juízes brasileiros desbravam novos caminhos, os governos de todo o mundo estarão observando de perto.
Há muito em jogo – e não apenas no Brasil. Se instituições legadas estão perdendo credibilidade em todos os lugares, o mesmo acontece com a integridade das informações online. A confiança na internet caiu 18% no Brasil desde 2019, uma das quedas mais acentuadas entre os 20 países analisados pelo New Institute, sediado na Alemanha. Talvez não seja nenhuma surpresa que os novos trapaceiros midiáticos que dependem da via digital sem restrições para disseminar seu rancor pelo mundo possam se transformar em seus próprios piores inimigos.
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