democraciaAbierta: Analysis

Brasil inova na luta global contra as fake news

Após anos de toxicidade digital, o país se empenha em mostrar ao mundo como combater a desinformação

Mac Margolis Robert Muggah
10 Fevereiro 2023, 10.00
Nos quatro anos desde que Bolsonaro chegou ao poder em 2019, a maior democracia da América Latina se tornou um foco de fake news e teorias da conspiração
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ZUMA Press, Inc. / Alamy Stock Photo

Enquanto militares e policiais reprimiam  a insurreição de 8 de janeiro em Brasília, prendendo mais de mil baderneiros partidários, a máquina brasileira de rumores girava a todo vapor. Para surpresa de  ninguém, os apoiadores do presidente derrotado, Jair Bolsonaro, estavam convencidos de que os vândalos eram as vítimas. As mídias sociais e os grupos de mensagens privadas não cansavam de reverberar histórias de abuso policial, prisões arbitrárias e centros de detenção semelhantes a "campos de concentração".

Os influenciadores da “alt-right” brasileira se inspiram fortemente em seus homólogos americanos. Assim como os conspiradores dos EUA, insistiram que o movimento antifa e o Deep State estavam por trás do ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, alguns canais de mídia social de direita atribuíram  o ataque aos Três Poderes – o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) – a militantes da esquerda, que teriam  se infiltrado no movimento para difamá-lo.

A deputada federal Bia Kicis, fiel aliada de Bolsonaro, anunciou no Twitter a morte de uma idosa sob custódia policial. Era mentira, mas pouco importa: o tuíte acumulou 1,1 milhão de visualizações antes de ser  desmentido pelos verificadores de fatos. Os exaltados guerreiros de extrema-direita do Brasil não ficam atrás de ninguém na batalha campal da pós-verdade.

Afinal, eles  têm muita prática em disseminar desinformação. Nos quatro anos desde que Bolsonaro chegou ao poder em 2019, a maior democracia da América Latina se tornou um foco de fake news e teorias da conspiração, com muitos paralelos com os Estados Unidos.

Não faltam mentiras no espectro político do país, mas a extrema-direita dita o ritmo. Na campanha para as eleições de 2022, isso significou compartilhar boatos, ofensas, golpes baixos e mentiras descaradas, além de promover a pseudociência (sobre a pandemia, especialmente) e lançar desconfiança sobre o amplamente consagrado sistema de votação eletrônica brasileiro.

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Os bolsonaristas postaram cerca de três vezes mais vídeos no YouTube do que partidários de Lula e os perfis de esquerda, centro e da mídia tradicional, de acordo com pesquisa da equipe de segurança digital do Instituto Igarapé, um think tank brasileiro. Os canais de extrema-direita no YouTube também geraram mais de 1 bilhão de visualizações nas redes sociais entre agosto e outubro de 2022, com engajamento igualmente efusivo entre seguidores do Facebook e do Instagram.

O Estado de S. Paulo, terceiro maior jornal do Brasil, observou que o alvo preferencial da extrema-direita foi o STF, que segundo o jornal foi submetido a uma enxurrada de "ameaças, insinuações e muitíssima desinformação" sobre suas decisões destinadas a conter as fake news.

Embora falsidades partidárias não tenham conseguido mudar o rumo das eleições, elas seguramente ajudaram a diminuir a margem de vitória de Lula, que venceu no segundo turno por apenas 2 milhões de votos – levando a melhor na mais acirrada disputa eleitoral brasileira desde o retorno da democracia no final da década de 80. Uma pesquisa realizada logo após os ataques de 8 de janeiro mostrou que quase 40% dos brasileiros ainda acreditavam que Bolsonaro havia vencido a eleição presidencial. Que os manifestantes de Brasília tenham camuflado sua fracassada insurreição com as mesmas balelas apenas reforça a tática de transformar a desinformação em arma política.

Não surpreende que uma das primeiras ações de Lula como presidente foi lançar uma ofensiva contra a desinformação: a Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia (PNDD). Ao criar o novo órgão, submetido à Advocacia-Geral da União (AGU), o governo enviou uma mensagem inequívoca: Brasília está determinada a vencer a guerra contra as fake news.

A iniciativa provocou uma reação feroz da extrema-direita e de alguns defensores da liberdade de expressão, que acusaram o governo de criar um Ministério da Verdade orwelliano para promover a censura. E não é só a extrema-direita que desconfia da nova Procuradoria. Ativistas de direitos digitais levantaram preocupações sobre o que constitui "desinformação", quem decide quais opiniões constituem incitação e quais poderes a PNDD terá para administrar tudo isso.

É um tema comum ao redor  do globo: governos, empresas e ativistas estão debatendo não apenas como conter a desinformação, mas também para defini-la. A AGU elaborou sua própria definição: "mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas". É uma descrição tão ampla quanto imprecisa. A desinformação, segundo a instituição, inclui qualquer conteúdo destinado a promover ataques deliberados contra "membros dos Poderes". Tal definição tão ampla atraiu a rejeição de políticos da oposição e defensores dos direitos civis, que temem que a estrutura possa ser usada para silenciar oponentes e encorajar a censura.

Parlamentares  brasileiros estão cientes dos riscos inerentes a uma definição imprecisa. Eles estão preocupados que a nova autoridade possa ser um convite ao ativismo judicial, senão à arbitrariedade. O resultado poderia levar a uma infinidade de desafios legais que apenas os advogados poderiam desejar. A AGU tomou nota e prometeu evitar o exagero.

Novidade mundial

O Brasil não é o único país democrático que luta contra as fakes news digitais. As autoridades públicas da Índia também estão avaliando a proibição de qualquer notícia considerada "falsa" nas mídias sociais. No entanto, as peculiaridades do Brasil o tornaram um laboratório de experimentação política, improviso e pisadas em falso.

Mais que uma democracia vibrante e agitada, o Brasil é também uma sociedade hiperconectada de cerca de 216 milhões de habitantes, de acordo com as últimas estimativas do censo, com cerca de 118 telefones celulares por 100 habitantes, o quinto maior mercado de mídia social do mundo e com pouca paciência para fontes de notícias convencionais.

O país há tempos sofre com a política disfuncional – 23 partidos ocupam assentos no Congresso, transformando cada debate em luta livre – e uma galopante desconfiança no governo, especialmente entre os eleitores jovens. Melhor para  os populistas mais apelativos, que acenam  para a tribuna, transformando o Brasil em um palco de exageros e embustes,  algoritmicamente amplificados.

Mas depois de anos de embates tóxicos na internet e fora dela, o Brasil quer mostrar ao mundo como reagir. A rápida resposta do STF às ameaças na internet – reprimindo fake news e ocasionalmente penalizando seus autores – durante a campanha eleitoral de 2022 é certamente um modelo para outros países. No entanto, não será fácil alcançar um consenso público.

Governos, empresas e ativistas debatem não apenas como conter a desinformação, mas também para defini-la

Embora haja poucas dúvidas sobre o impacto no mundo real da desinformação maliciosa – a começar pelo negacionismo oficial da vacina enquanto o Brasil acumulava o segundo com o maior número de mortes mundiais por Covid-19 –, não há consenso entre os brasileiros sobre como lidar com um dos mais novos e os mais intratáveis ​​problemas da democracia.

Como costuma acontecer na política brasileira, parte do esforço para conter a desinformação também é pessoal. A repressão institucional de Lula se deu após uma bateria de ameaças e ataques online de turbas de direita contra ministros do STF e seus familiares. Grande parte da raiva se concentra em um homem: o ministro Alexandre de Moraes, ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo.

Desde que foi nomeado para o STF em 2017, Moraes assumiu uma postura firme contra as fake news. Ordenou que fossem presos e multados aqueles que as financiam, e derrubou dezenas de contas de mídia social supostamente sediciosas. Moraes tornou-se tão onipresente que a analista política brasileira Beatriz Rey, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), recentemente o chamou, em tom de brincadeira – ainda que com um fundo de verdade –, de "protetor do reino", em referência à série “Game of Thrones”.

Embora a cruzada do Brasil para reprimir a desinformação arranque aplausos, ela também inspira apreensão. Por mais que os brasileiros de esquerda argumentem que a maioria dos ministros, colegas de Moraes, acabam apoiando suas decisões, nenhum deles, nem outra liderança do país, levou o papel de vingador tão a sério. Sugere-se que a inspiração de Moraes seja outra figura jurídica polêmica: Sergio Moro, o ex-juiz que presidiu o escândalo de corrupção da Lava Jato, mas que caiu em desgraça por extrapolar suas funções em decisões consideradas parciais.

“Moraes usa a mesma caneta poderosa [que Moro]”, disse Claudio Lucena, acadêmico da Universidade Estadual da Paraíba, que faz parte do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade. “Sim, a maioria dos juízes tende a apoiá-lo, mas ninguém tem coragem de tomar a iniciativa”, disse Lucena, referindo-se aos críticos que acusaram Moraes de testar os limites da lei. 

Embora o ativismo de Moraes incomode os críticos, ele evidencia a desconfiança em relação a outras instituições nacionais. Legisladores federais têm hesitado sobre um projeto de lei para conter fake news e o chamado "gabinete do ódio", uma fábrica de discurso rancoroso,  alegadamente supervisionada pelo segundo filho de Bolsonaro, Carlos. Em vez de investigar alegações de difamação digital, incitação à violência e conteúdo malicioso, o procurador-geral da República fez vista grossa

A inércia oficial forçou a mão do STF, que se precipitou em algumas oportunidades. Parte do problema é a missão impossível do órgão, que serve simultaneamente como tribunal constitucional, tribunal de última instância do país e tribunal de primeira instância para autoridades  eleitas que gozam da imunidade processual em tribunais inferiores.

O resultado é uma lista anual de dezenas de milhares de casos, conferindo poderes desproporcionais aos 11 ministros, cada palavra da qual é divulgada, examinada e atacada online e offline. O Congresso encoraja o excesso judicial, recorrendo rotineiramente das derrotas legislativas para o mais alto tribunal. Esses processos são onerosos. De fato, o Brasil tem o judiciário mais caro do mundo em termos de paridade de poder de compra.

No entanto, seria enganoso reduzir a resposta do Brasil à desinformação  apenas a um vingador togado. A criação da nova procuradoria faz parte de um esforço contínuo do judiciário e de grupos da sociedade civil para remover fake news, conspirações e discursos de ódio das plataformas de mídia social. Uma nova Secretaria de políticas digitais, vinculada ao Ministério da Justiça, também entrará na luta.

No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça e o STF, juntamente com mais de uma dezena de órgãos e organizações, lançaram um painel multissetorial para conscientizar a população sobre os riscos de produzir e compartilhar desinformação. A campanha #fakenewsnao atingiu dezenas de milhões de pessoas. Enquanto isso, o mais alto tribunal eleitoral do país assinou acordos com grandes empresas de mídia social para reprimir a desinformação e criar um observatório liderado pela sociedade civil para monitorar e relatar conteúdo nocivo online.

Os dissidentes de extrema-direita incluem o deputado federal e herdeiro de Bolsonaro Eduardo, bem como muitos membros de partidos fora da bolha de Bolsonaro, como os deputado federais Kim Kataguiri do liberal-conservador União Brasil, Lucas Redecker do PSDB e Adriana Ventura, do libertário Novo. A principal preocupação deles é o risco de o governo Lula criar um sistema de vigilância estilo Big Brother para espionar adversários e cercear a liberdade de expressão, além de confundir opinião com incitação ao crime.

No Brasil, o debate sobre como regular os danos digitais está esquentando. Com vários dispositivos do decreto presidencial a serem regulamentados, a AGU deve cumprir a promessa de impedir que a vigilância se transforme em censura. Ao mesmo tempo, políticos e influenciadores que transformaram fake news, conspirações e discursos de ódio em um nicho de negócios estão direcionando suas armas digitais para o novo órgão. De qualquer forma, enquanto legisladores e juízes brasileiros desbravam novos caminhos, os governos de todo o mundo estarão observando de perto.

Há muito em jogo – e não apenas no Brasil. Se instituições legadas estão perdendo credibilidade em todos os lugares, o mesmo acontece com a integridade das informações online. A confiança na internet caiu 18% no Brasil desde 2019, uma das quedas mais acentuadas entre os 20 países analisados ​​pelo New Institute, sediado na Alemanha. Talvez não seja nenhuma surpresa que os novos trapaceiros midiáticos  que dependem da via digital sem restrições para disseminar seu rancor pelo mundo possam se transformar em seus próprios piores inimigos. 

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