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Abortos forçados das FARC passam a ser reconhecidos como violência reprodutiva

Em decisão histórica, comissão da verdade que analisa a guerra na Colômbia adota definição sobre o que o termo constitui

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Mariana Ardila
29 Julho 2022, 12.01
Rebeldes das FARC marcham nas selvas do sul da Colômbia, em 22 de junho de 2001
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Eliana Aponte/REUTERS/Alamy Stock Photo

A Colômbia deu um grande passo na luta pela garantia dos direitos das mulheres vítimas de sua guerra civil de quase 60 anos.

Em seu relatório final, a Comissão da Verdade (CEV) reconheceu que o conflito envolveu “violência reprodutiva”, incluindo contracepção e abortos impostos a mulheres combatentes adultas e meninas menores de idade recrutadas ilegalmente por grupos armados.

É a primeira vez que uma comissão da verdade adota essa definição.

A CEV foi estabelecido pelos acordos de paz assinados em 2016 entre o governo colombiano e o extinto grupo guerrilheiro FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). A comissão foi concebida como um mecanismo extrajudicial para estabelecer a verdade sobre crimes cometidos por combatentes, a polícia e as forças armadas e milícias paramilitares de direita.

A violência reprodutiva é muitas vezes invisível e, portanto, não processada. Isso é ainda mais provável quando ocorre dentro de grupos armados. Além disso, a violência reprodutiva é um conceito relativamente novo, sem uma única definição aceita. Na Women's Link Worldwide, onde co-lidero um grupo de advogadas, a definimos como uma forma de violência de gênero que, por meio da força ou coerção, afeta a autonomia reprodutiva das pessoas.

As esterilizações forçadas impostas a mulheres indígenas e empobrecidas no Peru na década de 1990 são um exemplo de violência reprodutiva, mesmo que não fosse reconhecida como tal na época.

No caso colombiano, a CEV define o termo como violência “relacionada ao controle da reprodução e da maternidade ... que ocorreu principalmente nas fileiras das FARC de forma não ocasional ou isolada”.

De acordo com o relatório, muitos abortos forçados foram realizados através de procedimentos inseguros que deixaram levaram à problemas de saúde e até mesmo à morte em alguns casos. “Mais uma vez, o patriarcado e seus soldados assumiram o controle dos corpos das mulheres e sua autonomia para decidir sobre eles”, acrescenta.

O reconhecimento da violência reprodutiva pela Comissão da Verdade não é uma questão trivial, uma vez que permite reconhecê-la como uma forma de violência de gênero separada da violência sexual. Essa distinção também nos ajuda a compreender as consequências e os danos específicos que esse tipo de violência causou às vítimas, em um contexto em que o controle sobre o corpo das mulheres era tão normalizado.

Falta de autonomia reprodutiva

As FARC adotaram uma política específica para o controle da reprodução em 1993, com a contracepção obrigatória usada para garantir que as mulheres combatentes pudessem continuar suas funções militares. Agora também existe evidência irrefutável que muitas mulheres foram forçadas a fazer abortos. A promotoria estima que mil abortos forçados foram realizados por ano, embora seja muito provável que os casos tenham sido subnotificados.

Helena foi recrutada à força aos 14 anos e posteriormente forçada a tomar anticoncepcionais e realizar um aborto

Outros grupos guerrilheiros também cometeram violência reprodutiva, como o pequeno Exército Revolucionário Guevarista (contracepção forçada e abortos forçados) e os paramilitares de direita Autodefesas Unidas da Colômbia (esterilizações forçadas e maternidade forçada).

Embora a mídia e ONGs tenham relatado casos de abortos forçados dentro dos grupos armados ilegais por anos, as autoridades nunca promoveram esforços para buscar a verdade, justiça e reparação para as vítimas.

Na Women's Link, defendemos a autonomia reprodutiva de todas as pessoas, acreditando que civis, combatentes e ex-combatentes têm o mesmo direito de escolher ter ou não filhos. Ninguém, nem o Estado nem os grupos armados, deve decidir por elas. Por isso, optamos por ficar do lado das vítimas e explorar diferentes formas de expor a verdade e encontrar as reparações a que tinham direito.

Começamos com um amicus curiae (amigo da corte) em 2016 em um processo criminal contra "Karina", pseudônimo de uma ex-comandante da 47ª Frente das FARC. Nosso objetivo era que o processo penal contra ela levasse em consideração os abortos forçados sofridos por mulheres sob seu comando. Graças a essa intervenção, um tribunal reconheceu recentemente que, dentro das FARC, a contracepção obrigatória e o aborto forçado eram sistemáticos e generalizados, práticas que constituem uma forma de violência de gênero.

Com essa experiência em nosso currículo, passamos a representar Helena*, vítima da violência reprodutiva das FARC. Helena foi recrutada à força aos 14 anos e posteriormente forçada a tomar anticoncepcionais e realizar um aborto. Seu caso é emblemático porque reflete as experiências vividas por muitas mulheres e meninas camponesas recrutadas ilegalmente por grupos armados durante a guerra civil.

Helena deixou as fileiras das FARC já adulta. Por esta razão, as autoridades inicialmente se recusaram a reconhecê-la como vítima, apesar de ela ter sido recrutada quando criança. Sua história nos inspirou a pensar em formas de usar o sistema judicial para evitar a exclusão legal de mulheres como ela. Para tornar as coisas ainda mais difíceis, havia ambiguidade em relação à capacidade das leis humanitárias internacionais de proteger ex-combatentes, uma vez que se concentram principalmente nos efeitos do conflito armado sobre os civis.

Vitória histórica

Depois de passar por vários juízes, o caso de Helena finalmente chegou à Corte Constitucional. Em 2019 conseguimos uma vitória histórica com a decisão que a reconheceu como vítima do conflito armado com direitos a indenização. A decisão teve um significado especial para ela, marcando a primeira vez que uma autoridade judiciária acreditou nela. De fato, o resultado é bastante incomum entre vítimas de violência reprodutiva.

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Sou uma das advogadas que levou o processo ao Tribunal Constitucional colombiano que descriminalizou o aborto

A decisão foi aplaudida nos círculos jurídicos internacionais por ser uma das poucas a proteger vítimas de violência de gênero dentro de grupos armados. O precedente também tem sido útil para outras organizações locais que defendem pessoas como Helena.

Também vimos uma oportunidade de lutar pelas vítimas de violência reprodutiva no sistema de justiça de transição criado pelo Acordo de Paz, que incluiu mecanismos judiciais, como a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), e mecanismos extrajudiciais, como a Comissão da Verdade.

Em nosso primeiro e único relatório sobre violência reprodutiva apresentado à JEP, Helena foi reconhecida como vítima em seu caso 007, que investiga recrutamento e uso de crianças no conflito armado. Como resultado, o caso 007 passou a incluir instâncias de violência de gênero, incluindo aborto forçado, contracepção forçada e “outras condutas relacionadas a ataques à integridade sexual e reprodutiva”.

Também apresentamos um relatório intitulado “Violência sem nome: violência reprodutiva no conflito armado colombiano” à Comissão da Verdade. Nele incluímos a história de Helena como um caso modelo e um exemplo de como esse tipo de violência era cometido por guerrilheiros e paramilitares.

Em 15 de julho, a JEP concordou em abrir o Caso 011, sobre violência sexual, violência reprodutiva e outros crimes baseados em discriminação, preconceito e ódio devido ao gênero, sexo, identidade e orientação sexual — algo que havia sido solicitado repetidamente por membros da Aliança das Cinco Chaves que a Women's Link estabeleceu junto com os grupos da sociedade civil Sisma Mujer, Corporación Humanas, Colombia Diversa e Red Nacional de Mujeres.

Esta jornada continua a dar frutos. A Comissão da Verdade sugeriu que as autoridades alterassem a Lei 1.448 de 2011, conhecida como Lei das Vítimas, para incluir pessoas que sofreram esse tipo de violência e fortalecer o sistema de saúde para lidar com os impactos específicos e desproporcionais da violência sexual e reprodutiva sobre os sobreviventes.

Reconhecer essa violência é relevante para as devidas reparações. Uma mulher que sofreu um aborto forçado em condições inseguras, por exemplo, pode precisar de cuidados especiais.

Esses passos na direção certa nos encorajam a continuar lutando para tornar a violência reprodutiva crime processável, o que permite que vítimas recebam indenização e auxílio necessário. Independentemente do contexto, a autonomia reprodutiva de todas as mulheres deve ser respeitada.


*Seu nome foi alterado para proteger sua identidade

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