
Como direitos trans estão sendo politizados por populistas de direita na América Latina
Brasil é o lugar mais perigoso para pessoas trans e de gênero diverso, com 125 mortes entre outubro de 2020 e setembro de 2021


Pelo menos dez países latino-americanos promovem iniciativas que podem alimentar ainda mais a violência contra pessoas trans e de gênero diverso.
As propostas incluem banir linguagem inclusiva e as perspectivas de gênero das salas de aula, dar aos pais o poder de vetar educação sexual nas escolas, perseguir professores que discutem sexualidade com seus alunos e empurrar ainda mais as pessoas LGBTIQ para as margens da sociedade.
Os principais grupos de direitos humanos veem essas ações como um “ataque oportunista antidemocrático a um grupo minoritário”, em esforços para conquistar eleitores conservadores ou galvanizar a opinião pública em tempos de crise política.
As Américas já são o continente mais perigoso para pessoas trans. Entre outubro de 2020 e setembro de 2021, a região foi responsável por 70% dos 375 assassinatos de pessoas trans e de gênero diverso reportados, de acordo com um relatório da Anistia Internacional.
Sonia Corrêa, co-coordenadora do Sexuality and Policy Watch, um fórum global de pesquisadores e ativistas, acredita que é importante distinguir entre campanhas públicas contra os direitos trans – nas quais ativistas de direita podem se engajar para capitalizar o que veem como crescente conservadorismo – e políticas anti-trans implementadas por um governo.
“Embora as mobilizações sociais antigênero promovam ou defendam mudanças legislativas ou políticas públicas, [elas] não podem ser comparadas a essa ideologia instalada no aparelho estatal. Essa diferença tem que ser feita com bastante firmeza”, insistiu.
Este último é o caso do Brasil. “É um dos países onde a ideologia antigênero, antitrans e antiaborto é política de Estado em nível federal, de forma sistemática e estrutural”, Corrêa disse ao openDemocracy.
O mesmo está acontecendo em vários países, incluindo Hungria, Polônia, Rússia e Sérvia, com tendências semelhantes encontradas na Turquia, Guatemala, Uruguai, algumas regiões espanholas e alguns estados dos EUA.
A expectativa de vida das pessoas trans no Brasil é de apenas 35 anos
Cristian González, pesquisador de direitos LGBTIQ da Human Rights Watch (HRW), descreve o ataque em toda a região às identidades trans como uma “tendência antidemocrática: o ataque oportunista a um grupo minoritário em tempos de crise”.
Enquanto a região enfrenta graves problemas de inflação, violência e corrupção, “alguns políticos usam questões de gênero e sexualidade para distrair seus cidadãos... em um exemplo de manipulação nefasta às custas de pessoas marginalizadas na sociedade”, adiciona.
Para González, essa cortina de fumaça deveria preocupar todos os cidadãos da região. “O objeto da manipulação hoje é gênero e sexualidade; que outros direitos serão politizados em futuras crises?”
As mudanças legislativas propostas na América Latina também prejudicam a educação sexual, ferramenta de combate à violência sexual e à gravidez infantil e adolescente. A América Latina e o Caribe já têm a segunda maior taxa de gravidez na adolescência do mundo – quase 18% dos nascimentos na região são de mães com menos de 20 anos, segundo o Fundo de População das Nações Unidas.
“Muitas dessas gestações são resultado da falta de informação, acesso limitado à contracepção e violência sexual e de gênero”, alerta a agência.
Ataques anti-trans do Estado
O Brasil é de longe o lugar mais perigoso para pessoas trans e de gênero diverso, com 125 mortes relatadas entre outubro de 2020 e setembro de 2021, de acordo com a Transrespect versus Transphobia Worldwide.
Mais do que qualquer outro governo na América Latina, o governo do presidente brasileiro Jair Bolsonaro orquestrou uma política federal para limitar a igualdade de direitos para pessoas LGBTIQ.
“Bolsonaro destruiu o pouco que tínhamos e fez um expurgo das políticas trans existentes”, alerta o professor Marco Aurélio Máximo Prado, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Cursos de combate ao preconceito entre professores não são mais oferecidos, ambulatórios para pessoas trans foram desativados e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT extinto. A expectativa de vida das pessoas trans no Brasil é de apenas 35 anos.
Parlamentares pró-governo também apresentaram legislação contra atendimento médico para jovens e crianças trans, incluindo projetos de lei apresentados no estado de São Paulo e na cidade do Rio de Janeiro para proibir serviços de saúde de terapia hormonal para pessoas trans menores de 18 anos e cirurgia de redesignação sexual para menores de 21 anos.
Até agora, nenhuma dessas iniciativas foi aprovada. Mas a retórica dos projetos costuma ser usada “para mobilizar a sociedade em determinados momentos políticos”, explica Prado.
“Existem projetos que visam enquadrar o fornecimento de tratamentos hormonais para crianças e jovens trans como ‘violência institucional’… porque consideram que as crianças estão sendo violadas pelo que chamam de ‘ideologia de gênero’”, adiciona.
Educação é principal alvo
As escolas são um alvo particular para ativistas e políticos anti-LGBTIQ. No Brasil, 217 projetos de lei foram apresentados desde 2014 – alguns dos quais foram aprovados – para proibir o ensino sobre gênero e sexualidade nas escolas, de acordo com um relatório da HRW publicado em maio.
Tais projetos “continuam acontecendo, apesar de o Supremo Tribunal Federal [ter] emitido várias decisões que os revogam”, González disse ao openDemocracy.
“Os políticos… usam esses argumentos de ‘ideologia de gênero’ e ‘doutrinação’ para seus propósitos políticos”, explica. Na campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro afirmou que o Partido dos Trabalhadores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, caso vencesse as eleições, imporia a ‘ideologia de gênero’ nas escolas.
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Professores e profissionais de saúde afirmam que, desde 2020, o Disque 100 – criado em 1997 pelo Ministério da Mulher e Direitos Humanos do Brasil denúncias de violações de direitos – vem sendo desvirtuada. Os profissionais dizem que a linha está sendo usada para monitorar aqueles que se envolvem em debates relacionados a gênero em instituições públicas e privadas. Afirmam também que são incentivados a denunciar anonimamente aqueles que discordam das opiniões do governo sobre questões como vacinação contra a Covid-19, identidade de gênero e orientação sexual.
Em 2021, a imprensa brasileira noticiou que uma professora de filosofia e um diretor foram investigados pela polícia após serem denunciados ao Disque 100 por discutir gênero, racismo e diversidade com seus alunos. Os casos foram posteriormente arquivados.
“As pessoas acabam dizendo que não querem que seus filhos aprendam esses assuntos, embora Bolsonaro nunca especifique o que realmente está sendo ensinado nas escolas brasileiras: igualdade de gênero, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada”, diz González.
A questão voltou à tona diante das eleições de outubro, nas quais Bolsonaro busca a reeleição. A HRW tem documentado acusações e ataques nas ruas, redes sociais e até no judiciário contra professores que ensinam educação sexual.
Censura semelhante está acontecendo nas escolas do Peru, com uma lei aprovada este ano que dá aos pais a autoridade para decidir o que pode ser dito – ou, crucialmente, não dito – nas escolas. A legislação afirma que grupos organizados de pais devem ser consultados sobre materiais educativos e currículos escolares, independentemente de terem algum conhecimento sobre o assunto. Também estabelece sanções para professores e diretores que não cumprirem essas normas.
A lei foi apresentada pelo presidente do Comitê de Educação, Esdras Ricardo Medina Minayas, pastor evangélico e membro do movimento peruano “Con mis hijos no te metas" (Não se meta com meus filhos), que busca eliminar a perspectiva de gênero e a educação sexual abrangente das escolas públicas.
O projeto foi aprovado por 91 votos a 18, um duro golpe três anos depois de a Suprema Corte peruana rejeitar uma tentativa do grupo conservador Pais em Ação – como parte da campanha Con mis hijos no te metas – de remover a educação com perspectiva de gênero do currículo nacional.
Embora o governo federal da Argentina reconheça os direitos das pessoas trans, há esforços de autoridades locais conservadoras para resistir ou distorcer políticas federais.
No ano passado, o governo da província de Chaco, no norte do país, emitiu um decreto para fazer cumprir uma lei federal de 2006 que implementa a educação sexual abrangente, mas afirmou que seria “baseada ... em valores sociais fundamentais” – sem definir esses “valores”.
Pouco depois, as autoridades de Chaco endossaram uma conferência de treinamento opcional para professores, chamada “educação sexual abrangente baseada em ciência e valores”, organizada pelo Conselho Evangélico Metropolitano e realizada na Igreja de Jesus Cristo.
Mil professores participaram do treinamento, no qual diversas identidades de gênero foram descritas como “patologias” – em desacordo com a lei.
Após duras críticas da Anistia Internacional e da Rede de Educadoras Feministas, o governo de Chaco tentou se distanciar da polêmica conferência. Mas seu decreto, que permite a implementação da lei “baseada em valores sociais”, permanece em vigor.
Uma guerra contra a linguagem
Dezenas de projetos de lei foram apresentados em toda a América Latina – principalmente no Brasil, mas também na Argentina, Chile e Uruguai – para impedir qualquer tentativa de abalar as estruturas rigidamente binárias e masculinas das línguas espanhola e portuguesa.
Cerca de 34 projetos de lei para proibir e punir o uso de linguagem inclusiva nas escolas foram apresentados em metade dos 27 estados do Brasil e no Congresso Federal. Tais proibições foram aprovadas nos estados de Santa Catarina, Rondônia e Mato Grosso do Sul, embora possam ser suspensas por inconstitucionalidade pelo STF.
Enquanto isso, na Argentina, o ministro da educação da cidade de Buenos Aires anunciou, em junho, que proibiria nas escolas a prática de usar 'e', 'x' ou '@' para remover o gênero das palavras. A decisão, que foi condenada por especialistas linguísticos e sindicatos de professores, está sujeita a uma impugnação judicial, tendo sido acusada de infringir a Lei de Identidade de Gênero de 2012.
Dois membros da assembleia legislativa da província de Buenos Aires (vizinha da capital homônima e o distrito mais populoso do país) apresentaram um projeto de lei semelhante.
Para Sonia Corrêa, esses projetos não estão enraizados em uma genuína “crença ideológica”, mas em um esforço para “atrair o eleitorado de [político de extrema direita] Javier Milei” – cujo apoio está aumentando diante das eleições de 2023 na Argentina.
No Uruguai, as autoridades de educação pública decidiram, em abril, que “o uso da linguagem inclusiva deve estar de acordo com as regras da língua espanhola”, o que significa que ‘e’, ‘x’ e ‘@’ não podem ser usados nas escolas.
Um projeto de lei apresentado por um legislador do partido de extrema-direita Cabildo Abierto – parte da coalizão governista – busca estender o projeto através de uma proibição a nível nacional de linguagem inclusiva em instituições públicas. O projeto foi acusado de plágio, uma vez que é praticamente idêntico ao apresentado no Chile no ano passado.
O Paraguai, por sua vez, tornou-se o primeiro país do mundo a proibir qualquer referência a “gênero” de aparecer na educação pública.
Após uma intensa campanha de grupos conservadores, apoiada pela Alliance Defending Freedom, com sede nos EUA, um decreto de 2017 “proibiu a distribuição e o uso de materiais impressos ou digitais relacionados à teoria e/ou ideologia de gênero em instituições públicas de ensino”.
Um departamento do ministério da educação recebeu 60 dias para revisar todos os livros e trabalhos escolares e “emitir um relatório com propostas para as emendas correspondentes”.
A proibição “criou um tabu contra a própria palavra ‘gênero’”, disse Mirta Moragas, advogada de direitos humanos e ativista feminista que analisou os resultados da revisão. A medida tornou os professores “relutantes em abordar certas questões, como a violência contra mulheres e meninas”.
A questão é particularmente preocupante porque o Paraguai tem a maior taxa de gravidez na adolescência do Cone Sul – região que tradicionalmente abrange também Argentina, Chile e Uruguai. Quase todos os dias, duas meninas entre 10 e 14 anos dão à luz, mostram os números oficiais. Nos primeiros quatro meses de 2022, o país registrou média diária de sete denúncias de abuso sexual contra crianças.
Os professores “ficaram sem ação… e de alguma forma passaram a ser cúmplices da situação de violência sexual contra crianças e adolescentes e gravidez na adolescência”, diz Moragas.
Para piorar as coisas, quando Moragas examinou a revisão, ela descobriu que os materiais educacionais proibidos “não continham quase nenhuma menção de gênero” em primeiro lugar.
“A revisão em si é vaga e inconsistente”, diz ela. Embora afirme que os livros didáticos e os trabalhos escolares devem ser alterados, não faz sugestões concretas sobre como.
A proibição foi adotada seis meses antes das eleições de 2018. “Provavelmente, houve uma motivação puramente populista, sem qualquer preocupação legítima com o assunto”, diz Moragas. O ministro da Educação que assinou o decreto, Enrique Riera, prometeu pessoalmente “queimar os livros que contenham ideologia de gênero em praça pública”.
Proibição da identidade trans
Em algumas partes da América Latina, pessoas trans ainda enfrentam discriminação total e tentativas renovadas de suprimir suas identidades.
Em 2017, legisladores conservadores na Bolívia ganharam uma decisão constitucional que nega direitos iguais para pessoas trans, apesar da discriminação baseada na identidade de gênero ter sido banida pela Constituição do país de 2009 e de duas leis subsequentes – uma lei de 2010 contra o racismo e todas as outras formas de discriminação e a Lei de Identidade de Gênero de 2016 – que ampliou esse princípio.
Legisladores entraram com uma impugnação judicial contra a lei de identidade de gênero. Embora o Tribunal Constitucional tenha rejeitado parcialmente o caso, defendendo o direito das pessoas trans de mudar seu nome e gênero registrado ao nascer, decidiu que um segmento do Artigo 11, que garantia direitos iguais para pessoas trans, era inconstitucional. Um exemplo de consequência no mundo real é que as mulheres trans que concorrem a cargos eletivos na Bolívia agora enfrentam mais obstáculos do que as mulheres cis, uma vez que não têm direito a cotas eleitorais.
Esta é uma “decisão realmente vergonhosa”, Ronald Céspedes, conselheiro executivo da Rede Latino-Americana GayLatino, disse ao openDemocracy. A decisão "reconhece o direito das pessoas à identidade de gênero, mas as priva de seus direitos fundamentais... É como dizer a uma pessoa trans: 'você pode mudar seu nome e gênero registrado, mas não tem direitos iguais'".
A Guatemala apresentou no ano passado um projeto de lei para “proteger crianças e adolescentes de distúrbios de identidade de gênero”, uma iniciativa que González, da HRW, julga ser “completamente discriminatória”.
O artigo 1 do projeto afirma que “crianças e adolescentes têm o direito... de não ter sua identidade violada de acordo com seu gênero sexual [sic] ao nascer”, enquanto o artigo 2 estabelece que as crianças devem ser “protegidas” de todo conteúdo que “represente, promova ou demonstre alteração do sexo de nascimento, mudança de sexo ou variação da identidade sexual natural”.
O projeto de lei busca banir informações sobre identidade de gênero nas escolas e forçar a mídia a rotular programas que mostram ou falam sobre pessoas trans como não apropriados para menores de 18 anos.
O projeto, aprovado pela Comissão de Educação e tramitando lentamente no processo parlamentar, também pretende “distrair o público” sempre que surgir uma questão política urgente, segundo González.
“Com esta iniciativa, os transfóbicos têm liberdade para discriminar pessoas trans”, a ativista Stacy Velásquez, diretora do grupo de direitos trans Reinas de la Noche, disse ao openDemocracy.
Em 8 de março, o Congresso da Guatemala aprovou o Projeto de Lei para a Proteção da Vida e da Família, que, entre outras coisas, legalizou a homofobia e endureceu as punições para o aborto. No entanto, não foi sancionada pelo presidente Alejandro Giammattei, pois suas disposições falhas foram consideradas inconstitucionais e em desacordo com os tratados internacionais de direitos humanos.
No período de 2019-20, 18 pessoas trans foram assassinadas na Guatemala, de acordo com o Centro de Documentação sobre Pessoas Trans na América Latina e no Caribe. Nenhum desses casos está sendo investigado pelas autoridades.
A presidente do Reinas de la Noche, Andrea González, foi morta a tiros em junho de 2021. Dois dias antes, uma ativista do grupo Redtrans, Ceci Ixtapa, foi espancada até a morte. Ambas as mulheres haviam relatado ameaças às autoridades. O Observatório Nacional de Direitos Humanos registrou outros sete assassinatos de pessoas trans em 2021.
A violência contra pessoas LGBTIQ é um problema persistente em El Salvador, de acordo com González, da HRW.
Essa violência levou ao deslocamento forçado de 166 pessoas LGBTIQ no país no ano passado. E a perseguição a pessoas trans se agravou após o controverso estado de emergência aprovado pelo Congresso em março e prorrogado pela quarta vez em 19 de julho, porque suspende as liberdades constitucionais.
“Antes de o presidente Nayib Bukele chegar ao poder, havia acontecido algum progresso”, diz González.
Por exemplo, as autoridades estabeleceram uma unidade de diversidade sexual dentro da Secretaria de Inclusão Social, que foi eliminada por Bukele e substituída por uma unidade de gênero no Ministério da Cultura.
“Muitos ativistas viram essa mudança como um ataque aos seus direitos porque a violência contra as pessoas LGBTQ e a inclusão não são necessariamente uma questão cultural, mas de inclusão social”, explica.
Um projeto de lei de identidade de gênero, destinado a aumentar os direitos trans em El Salvador, também foi arquivado depois de Bukele assumir o cargo.
“A lei atual diz que o nome de uma pessoa deve corresponder ao seu sexo de nascimento. Se você tem vagina, não pode se chamar Pedro, deve ter um nome ‘de acordo’ com seu sexo”, explica o ativista trans Ambar Alfaro.
Em fevereiro, no entanto, a câmara constitucional da Suprema Corte decidiu que as pessoas trans têm o direito de mudar seus nomes e deu aos legisladores um ano para agir de acordo.
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