democraciaAbierta: Opinion

Donald Trump, o escorpião, e o ataque à cidade brilhante na colina

O ataque ao Capitólio abalou a democracia americana por algumas horas. A lição só pode ser uma: cuidado ao votar em um escorpião, pois ele vai picar.

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Francesc Badia i Dalmases
8 Janeiro 2021, 3.09
6 de janeiro de 2021, Washington, D.C., EUA: forças de segurança respondem com gás lacrimogêneo depois que partidários do presidente Donald Trump violaram a segurança do Capitólio
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Probal Rashid/Zuma Press/PA Images

O dia 6 de janeiro de 2021 viverá na infâmia na história dos Estados Unidos. O auge do ataque ao templo da democracia americana por hordas de fanáticos encorajados por um egomaníaco demente exemplifica como democracias liberais podem colapsar sem a necessidade de serem derrubadas por um inimigo externo. O populismo nacional mais cínico e autodestrutivo visto desde a Revolução Russa e a ascensão do fascismo na Europa tentou atacar a democracia americana e reverter à força o resultado legítimo das eleições democráticas. Ele quase conseguiu.

É um fato inédito em uma república que é, desde sua fundação, a referência mundial de governo baseado em uma ordem constitucional, que consagra o povo como soberano, o Estado de Direito, a separação de poderes e que tem eleições livres, diretas, periódicas e transparentes como base de sua legitimidade.

Durante o século XX, acabar com a democracia liberal foi uma tarefa à qual Hitler e o nazismo se aplicaram primeiro e depois a União Soviética, até o fim da Guerra Fria. Para os soviéticos, a democracia de estilo ocidental nada mais era do que uma ordem corrupta e burguesa destinada a apoiar o sistema capitalista baseado na exploração da classe trabalhadora pelo capital. Mas a URSS fracassou, e o muro caiu.

O vácuo deixado pelo colapso da URSS foi preenchido pela Al-Qaeda, quando atacou o coração do capitalismo simbolizado pelas torres gêmeas em Nova York. Esse evento catastrófico deu início à primeira década do século XXI, marcada pela guerra contra o terrorismo islâmico, cuja fantasia era o estabelecimento de um califado universal que finalmente acabaria com o grande Satanás personificado pelos Estados Unidos.

Para o império americano, ter um inimigo externo tão claro quanto bin Laden justificava continuar seu esmagador desdobramento militar global e gastar trilhões de dólares em guerras que não podia vencer, mas que continuava a enriquecer uma indústria americana nas mãos de uns poucos empresários inescrupulosos.

Os colegas de Trump o ouviram bradar este ataque à democracia e se calaram. A conivência dos republicanos também os faz culpados do que aconteceu

Mas dado que a Al Qaeda e seus aliados não tinham capacidade real de derrubar a democracia ocidental, buscar um novo inimigo foi a solução proposta pelo populismo de extrema direita, um movimento político em ascensão em todo o mundo que usou a consolidação da globalização e a grande crise financeira de 2008 para aprofundar o ressentimento daqueles que ficaram de fora.

Culparam a China pelos males da globalização e os imigrantes, especialmente os latinos, pela falta de emprego. Mas a estes inimigos externos juntou-se um inimigo interno, e Donald Trump, um outsider que venceu as eleições de 2016 contra todas as probabilidades, encontrou o culpado perfeito em seus rivais políticos: os democratas.

Trump, um personagem duvidoso e abusivo que cresceu à sombra de fraudes imobiliárias e da fama da televisão, encarna uma parte perversa do sonho americano, que afirma que qualquer um pode se tornar rico e famoso na terra das oportunidades e que não há nada de perverso em usar o poder em seu benefício e de sua família.

Trump lidou com o imenso poder que lhe foi dado pela Casa Branca de forma arrogante, arbitrária e desprezível e deslumbrou milhões de americanos com sua retórica mentirosa e manipuladora, usando qualquer meio para elevar sua figura acima de tudo e de todos. E com sua visão transacional das relações humanas, baseada em um épico impiedoso onde tudo vale em um jogo de soma zero, e onde mentir a todo custo e destruir pessoas é parte do caminho para o progresso nos negócios e na vida. Essa estratégia pode servir para construir um império imobiliário, onde a especulação é o motor do lucro, e para sonegar impostos em massa, mas não serve para governar um país.

É difícil compreender como o Partido Republicano, o "Velho Grande Partido" de Abraham Lincoln, se jogou nos braços de um personagem tão psicopata sem calcular o perigo que representava para a democracia e suas instituições. Durante os quatro anos de Trump, testemunhamos o pior da política, uma que exige que políticos e autoridades públicas bajulem cegamente o líder com lealdade pessoal inabalável para manter o cargo e subir de posição.

Mas no momento da verdade democrática, representado pelas urnas e a possibilidade de alternância no poder, as máscaras caíram. Meses e meses antes das eleições, como fez nas eleições de 2016, Trump iniciou uma campanha para convencer a todos de que ele só perderia por uma razão: fraude em massa. Seus colegas republicanos o ouviram bradar este ataque à democracia e se calaram. A conivência dos republicanos também os faz culpados do que aconteceu.

Um partidário de Donald Trump escala as paredes do Capitólio dos EUA durante a invasão de 6 de janeiro de 2021
Un partidario de Donald Trump escala los muros del Capitolio de los Estados Unidos durante el mitin pro-Trump.
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Um partidário de Donald Trump escala as paredes do Capitólio dos EUA durante a invasão de 6 de janeiro de 2021

O resultado da eleição de 3 de novembro de 2020 chegou e Trump perdeu o voto popular. Ele obteve 7 milhões de votos a menos que seu rival democrata, Joe Biden, e 74 votos a menos do Colégio Eleitoral. Eu ganhei! Fraude em massa! Nos roubaram as eleições! Sua resposta foi imediata, no que alguns subestimaram como um acesso de raiva de um egomaníaco ferido. Mas não foi uma simples birra, mas a demonstração flagrante de que o personagem, um ditador em forma e substância, nunca acreditou na democracia. Ele governou como um autocrata e terminou seu mandato da pior maneira.

Ao convocar um de seus comícios-espetáculo em Washington e incitar seus partidários mais fanáticos a marchar no Capitólio no dia em que os representantes do povo ratificaram formalmente o veredicto nas urnas, Trump encerrou a presidência mais perigosa da história dos Estados Unidos Unidos. Ele tentou um golpe de Estado e escapou impune. Isto é algo que os americanos encorajaram muitas vezes na América Latina (e além), mas nunca imaginaram que pudesse acontecer em sua casa.

"É um espetáculo digno de uma república das bananas!", afirmaram muitos congressistas e comentaristas de televisão diante das chocantes cenas de centenas de trumpistas vandalizando o Capitólio. Os comentários ressoaram ofensivamente em muitos cantos da América Latina, que sabe muito bem que a "república das bananas" é uma consequência do tratamento imposto pelos Estados Unidos àqueles que sempre consideraram moralmente inferior a seu país sagrado, aquele lugar brilhante na colina.

O dia 6 de janeiro de 2021 foi certamente um dos dias mais sombrios da história centenária da democracia americana. E embora as instituições tenham se mostrado robustas, a lição para as democracias só pode ser uma: cuidado ao votar em um escorpião, pois ele vai picar.

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