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A polarização será vitoriosa na Bolívia, independentemente do resultado das eleições

A Bolívia já entrou no círculo vicioso comum na América Latina: um presidente popular se vai sem criar estruturas para dar continuidade a seu projeto, abrindo as portas para a fragmentação política.

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16 Outubro 2020, 4.20
Um manifestante usando máscara durante um protesto contra a presidente boliviana Jeanine Añez, em agosto de 2020
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Gaston Brito/DPA/PA Images

Depois de praticamente um ano, a Bolívia voltará à normalidade institucional neste final de semana. No domingo (18), os bolivianos irão às urnas no que será uma repetição atrasada da votação de 2019, uma eleição tensa, crivada de acusações de fraude, em que um relatório da OEA declarou os resultados nulos. A situação desencadeou um período de turbulência política e protestos violentos.

Os bolivianos provavelmente terão como presidente uma figura conhecida na política do país. Os dois favoritos são o ex-ministro Luis Arce, do Movimento ao Socialismo (MAS), e o ex-presidente Carlos Mesa, da Comunidade Cidadã (CC), que enfrentou o ex-presidente Evo Morales e presidente do MAS no ano passado.

As pesquisas mais recentes antecipam um segundo turno, mostrando Arce com 42,2% e Mesa com 33,1% das intenções de voto. Arce teria que vencer no domingo com pelo menos 10 pontos percentuais de diferença, ou obter 50% mais um voto, para levar a eleição no primeiro turno, conforme ditado pela Constituição e pela lei eleitoral boliviana.

Independentemente de quem vença, a Bolívia já entrou em um círculo vicioso com o qual os latino-americanos estão mais do que acostumados: um presidente popular deixa o poder sem ter conseguido criar estruturas para dar continuidade a seu projeto, abrindo as portas para a polarização extrema.

As eleições de 2019 se deparam com a pandemia

Quando Morales foi forçado a renunciar – em um evento traumático que muitos consideram um golpe – os bolivianos sabiam que teriam um caminho difícil pela frente, mas certamente não calcularam a dimensão do problema.

Ao longo de 2020, a Bolívia enfrentou incertezas políticas em meio a uma pandemia global que atingiu a América Latina como nenhuma outra região do planeta.

Em 12 de novembro, após a renúncia de Morales, atualmente exilado na Argentina, Jeanine Áñez – figura polêmica no cenário político do país – assumiu a presidência interina por meio dos mecanismos de sucessão bolivianos.

Áñez promulgou a lei convocando eleições para 3 de maio. Mas já em fevereiro, a Covid-19 impôs mais uma barreira às eleições e serviu de argumento para prorrogá-las, em uma tentativa de buscar o momento oportuno para a candidata do partido no poder. Finalmente, o dia 18 de outubro foi definido como data final.

Os candidatos

Mesa governou a Bolívia entre 2003 e 2005, quando herdou a presidência de Gonzalo Sánchez de Lozada, que renunciou após a onda de protestos que surgiu em decorrência da Guerra do Gás. O povo voltou às ruas em 2005, desta vez para acusar Mesa de ceder aos interesses corporativos dos Estados Unidos, e ele também se viu forçado a renunciar em junho daquele ano.

Mas além dos dois favoritos, há um terceiro candidato que vem chamando atenção: o ex-líder cívico de extrema direita Luis Fernando Camacho tem sido chamado de 'Bolsonaro boliviano'

Luis Arce também é um político conhecido dos bolivianos. Ministro da Economia durante o governo de Evo Morales, Arce é conhecido como o pai do chamado "milagre econômico" da Bolívia.

Este “milagre” refere-se ao crescimento anual de quase 5% que o país viveu depois da nacionalização dos hidrocarbonetos, em 2006, que coincidiu com um boom sem precedentes dos preços do petróleo em todo o mundo. Durante os mandatos de Morales, a pobreza extrema caiu de 38,2%, em 2005, para 17,1%, em 2018.

Mas além dos dois favoritos, há um terceiro candidato que vem chamando atenção. O ex-líder cívico de extrema direita Luis Fernando Camacho – que tem sido chamado de "Bolsonaro boliviano" – alcançaria quase 17% dos votos, segundo a mesma pesquisa.

Tem havido pressão para que ele abandone sua candidatura (como Áñez já o fez) para não dispersar o voto conservador e impedir o retorno do partido de Morales ao poder. Mas os partidários de Camacho argumentam que ele é o único candidato capaz de impedir a volta de Morales ao poder, já que Mesa e o MAS poderiam se aliar no futuro.

O fantasma de Evo Morales

Durante os muitos meses de incerteza e tensão política em 2020, Morales, impulsionado pelo MAS, entrou em uma batalha judicial para concorrer a um cargo eletivo. No dia 4 de fevereiro, os partidos registraram as listas de seus candidatos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Morales apresentou-se como candidato a senador por Cochabamba.

O TSE desqualificou seu pedido depois que oponentes de Morales contestaram o registro, argumentando que o ex-presidente não cumpria o requerimento de ter dois anos de residência permanente na cidade, como estabelecido pelo artigo 149 da Constituição.

A batalha judicial chegou ao Tribunal de Justiça Departamental de La Paz, que, em setembro, rejeitou uma defesa constitucional apresentada pelo MAS.

Enquanto tudo isso acontece, a Human Rights Watch acusou Áñez de perseguir o ex-presidente, usando o sistema jurídico como arma política. “Seu governo pressionou publicamente promotores e juízes a agirem em defesa de seus interesses, o que resultou em investigações criminais de mais de 100 pessoas ligadas ao governo de Morales e simpatizantes de Morales por sedição e/ou terrorismo”, afirma o relatório.

Morales – e com ele a Bolívia – entrou no mesmo labirinto que seus companheiros da chamada "Maré Rosa", que insistiram na política do homem forte, do líder carismático

Morales também foi acusado de pedofilia em decorrência de uma suposta relação com uma menor de 14 anos, fato ainda não comprovado, mas que causou indiscutíveis danos ao ex-líder indígena boliviano.

O resultado? Polarização extrema, palavra já muito conhecida na América Latina.

Um fim anunciado

Desde o desastre eleitoral de 2019, a Bolívia foi fortemente fraturada. O país dividiu-se principalmente em linhas étnicas (indígenas versus não-indígenas), regionais (rurais versus urbanas) e socioeconômicas (ricos versus pobres). Mas, por um lado – o que se estende regionalmente e até globalmente – estão aqueles que admiram Morales por dar voz a grupos historicamente pobres e marginalizados e implementar uma Constituição que declarou o país como uma república plurinacional; e, de outro, aqueles que o veem como um político demagogo, sedento de poder, que se tornou crescentemente corrupto e autoritário durante seus 14 anos no governo.

Por sua vez, o governo interino que o substituiu, liderado por Áñez, uma política ultraconservadora conhecida por suas declarações racistas e por assumir a presidência com Bíblia em mãos, também foi acusada de minar as instituições democráticas da Bolívia – tensões que aumentaram a lacuna entre os dois campos políticos.

Embora decepcionante, o panorama é previsível. Morales – e com ele a Bolívia – entrou no mesmo labirinto que seus companheiros da chamada "Maré Rosa", que insistiram na política do homem forte, do líder carismático, e não mostraram capacidade ou interesse em dar continuidade a seus projetos.

Em vez de criar uma frente coerente e promover reformas estruturais capazes de garantir o futuro de suas políticas, Morales optou por ir contra a Constituição (e a vontade popular, pois perdeu um referendo que garantiria sua permanência no poder) e concorreu a um quarto mandato.

A Bolívia está no caminho de produzir mais daquilo que já conhecemos. Basta olhar para os seus vizinhos – Brasil, Argentina, Equador, Venezuela, entre outros – para antecipar como terminará este capítulo da história boliviana.

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