1) Jean, você manifestou seu desejo de retornar ao Brasil “em breve” (entrevista ao Splash, do UOL, em colaboração com o Sul 21, em janeiro - “Eu fiz tanto pelo governo Lula, (...) eu quero voltar e vou voltar agora”). Já há uma data estimada? Quais seriam as condições de segurança que o governo federal precisa oferecer a você e aos outros exilados perseguidos por extremistas para o retorno?
Ainda no há uma data estimada. A única coisa que sei é que quero voltar e vou voltar. Meu amigo Fernando Salis está trabalhando para levar para o Brasil minha exposição “Desexílio”, que esteve em cartaz no Palau de La Virreina - um dos espaços expositivos mais prestigiados da Europa - de novembro do ano passado a janeiro deste ano. Quando fecharmos a data da exposição aí, aí terei uma data concreta para voltar.
Quanto às condições de segurança, eu espero que o novo governo conceda a medida cautelar de proteção à minha vida requerida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, mas negada pelo governo de Michel Temer, que nasceu de um golpe ao qual eu resisti bravamente. Talvez por isso mesmo - por eu ter sido tão central na resistência ao golpe dentro do parlamento e nas mídias sociais - o governo de Temer tenha negado a proteção à minha vida, e negado que existia contra mim a violência organizada pela extrema-direita que depois se estendeu a outras pessoas, inclusive aos ministros do STF.
Então, eu espero que o governo Lula, não só no plano simbólico, mas também no sentido prático, dê as condições para que pessoas como eu, Marcia Tiburi, Debora Diniz e outros exilados possam voltar para o Brasil e seguir atuando intelectual e politicamente.
2) Você é um ser político, disputando eleições, no jornalismo (como “o informante” na versão brasileira do Open Democracy) ou em sua arte. É, também, voz importante da esquerda brasileira. Qual seu desejo de participação na arena pública nesta volta ao Brasil? Consideraria um cargo no governo Lula? Houve convite? Voltaria a disputar eleições? A militância partidária, filado ao PT que é, ainda te interessa? De que modo você gostaria de interagir com o país de Lula-3?
É tão difícil fazer afirmações sobre o futuro… O que eu poderia dizer agora, neste momento, é que eu não tenho qualquer vontade de retornar ao parlamento; de fazer campanha eleitoral para pra qualquer cargo que seja, legislativo ou executivo. Creio que já fiz minha contribuição nesse sentido.
Fiz dois mandatos de vanguarda que já entraram para a história, e abri o caminho para muita gente bacano que veio depois. Penso que posso contribuir com o novo governo Lula pensando políticas públicas nas áreas em que transito; um tipo de inteligência estratégica que possa ajudar o governo a fazer a nossa tão sonhada interseccionalidade; um lugar que me permita devolver o que acumulei de experiência e que aproveite as relações internacionais que estabeleci no exílio.
Contudo, dizer que posso contribuir dessa forma não significa que isto vá acontecer. Não tive qualquer convite por parte do governo ou do partido. E é muito importante que fique claro que tudo que eu fiz em defesa do governo Dilma; na denúncia dos abusos da Lava Jato; na defesa intransigente da inocência de Lula quando ele era considerado “radioativo” até mesmo por parlamentares do PT na época de sua prisão (dos anti-lulistas do PSOL eu nem vou falar, tampouco dos oportunistas!); no enfrentamento da extrema-direita no momento em que esta era sequer reconhecida; e na restituição da democracia no Brasil; tudo que eu fiz, inclusive a filiação ao PT como forma de fortalecer a futura candidatura de Lula, não foi esperando nada em troca, nem mesmo “obrigado!”.
Não sou do tipo que faço cálculo político. Tenho princípios e paixão. E também discernimento (rs): lealdade e gratidão não são os fortes da política no Brasil.
3) O quão difícil foi renunciar ao mandato de deputado federal e aos votos dados por milhares de eleitores fluminenses? Como vê o avanço do bolsonarismo no Estado, a possível candidatura de Flavio Bolsonaro à prefeitura da capital e a fragilidade da esquerda local?
Jamais conseguirei expressar o quão difícil, o quão doloros, quão sofredor foi aquele momento em minha vida e na vida de minha família. Aquela decisão mudou o rumo da minha história, claro, mas eu não tinha alternativa. Ou abria mão do mandato ou morreria. Era uma escolha entre seguir vivo ou ser destruído por completo.
Após o assassinato de Marielle Franco a violência contra mim se intensificou. Antes do assassinato dela, em 2016, eu escapei por pouco de um linchamento na Lapa no qual morreríamos eu e dois dos meus assessores, Rodrigo e Mira. A partir da morte de Marielle, eu passei a viver em cárcere privado e acompanhado por seguranças sem ter feito mal e ninguém, sendo uma pessoa absolutamente honesta e boa. Não, você não tem ideia dos danos que essa violência me causou e de como me vi só - porque, de fato, eu estava só - nessa luta.
Pedro Abramovay, Fernando Salis, Noemia Boianovisky, James Green, Flávio Elias, Sidney Chalhoub e Fernando Tibúrcio foram pessoas que sabiam mais de perto, cada um à sua maneira, o horror que eu estava vivendo. E cada uma à sua maneira me ajudou a tomar essa decisão e a sair e me manter fora do país. Eu era ameaçado de morte até por taxistas no Rio. O Rio de Janeiro virou um narco-estado, em que as fronteiras entre instituições e crime organizado estão borradas.
Não me espanta, portanto, que um escroque como Flávio Bolsonaro pretenda, depois de todos os crimes que seu pai e seu irmão perpetraram contra tanta gente, ser prefeito da capital desse estado, onde todavia o problema é mais grave. Chocante é a maior parte da “elite” desse estado ter se permitido chafurdar nessa merda. Para sorte dos fluminenses, ainda há no Rio uma esquerda ilustrada que resiste e à qual agradeço os votos. Esta, contudo e infelizmente, não tem o poder de garantir a vida. E o terrível assassinato de Marielle Franco está aí para provar isto.
4) Como você qualificaria sua experiência como parlamentar em anos de crescente polarização política? E como responde aos que apontam episódios protagonizados por você, como o cuspe em Jair Bolsonaro e os embates com Marco Feliciano, como cenas que acabaram por aumentar a projeção de seus antagonistas? Teria sido possível/melhor ignorá-los ou combatê-los de modo menos explícito? Hoje, com algum distanciamento, você faria algo significativo de modo diferente em relação à sua atuação no Congresso?
Claro que não faria nada de diferente. Sua pergunta seria ingênua se não tivesse como objetivo tentar culpar a vítima pelo crime. O Brasil sempre foi um país polarizado. E pelo que eu sei de nossa história, para ficar só na mais recente, foram os arautos da “tradição, família e propriedade” ou os que falavam em nome de “Deus, pátria e família” que torturaram, assassinaram e exilaram pessoas de esquerda.
Foi nesse país que Chico Mendes foi executado. Foi nesse país em que, em 1989, quando eu era um menino, uma televisão manipulou um debate eleitoral contra um candidato de esquerda, o Lula. Então, não me venha com perguntas mistificadoras sobre uma polarização que sempre esteve aí, antes mesmo de eu nascer.
Crer que minha bravura em enfrentar escroques que me insultavam, assediavam-me e me ameaçavam aos olhos de uma imprensa covarde - para não dizer quase cúmplice deles - era o que “promovia” uma extrema-direita com igrejas milionárias, horários comprados em tevê aberta e estruturas partidárias poderosas; crer nisto é quase um insulto à minha inteligência.
Quando a extrema-direita decidiu me usar de escada e de bode expiatório, e a esquerda e a imprensa que se diz democrática se lixaram para isto, o que me restava era me defender e defender a agenda política que eu representava. Era ter a coragem que ninguém teve.
Se vocês, da imprensa, em vez de me atacar por ter cuspido na cara de um apologista da tortura que me insultou numa noite decisiva para o país, tivessem cobrado das instituições uma punição para o apologista da tortura, talvez o país não tivesse elegido uma genocida. Já pensou como seria tudo diferente? Eu não tenho do que me arrepender. Já a imprensa e a direita brasileiras não podem dizer o mesmo.
5) O que é a pauta de Direitos Humanos hoje, pós-Bolsonaro, e especificamente a voltada para nós, pessoas LGBTQUIA+? E como espera ser recebido pelos militantes que seguiram lutando no Brasil contra a homofobia durante o governo Bolsonaro?
A pauta LGBTQIA+ é diversa. Hoje ela não me interessa mais do que a defesa da democracia e o combate à desigualdade social e ao aquecimento global, até porque os mais vulneráveis a estes são os que já são vulneráveis em função do gênero, orientação sexual e/ou etnia. Parte da agenda e da comunidade foi cooptada pelo mercado e pela publicidade, ao ponto de casais gays burgueses se darem “ao luxo” de atacar imigrantes e de serem racistas.
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