
A luta de Lourdes: a obstetrícia tradicional na Amazônia
Lourdes Firmino Araújo, do povo tikuna, luta por condições dignas para indígenas que se dedicam à obstetrícia nas fronteiras entre Brasil, Colômbia e Peru.

Com suas mãos macias, Lourdes Firmino Araújo massageia a barriga de sua nora. Ela percebe que o bebê, de sete meses de gestação, está bem posicionado no útero. Ela usa óleos naturais de plantas da floresta tropical amazônica para esfregar o abdômen da mãe para acalmar mãe e bebê. Ambos estão na sala da casa de Lourdes, iluminada por uma luz cálida que vem da janela. Lourdes diz à mãe que tudo está indo bem, a aconselha e a prepara para o nascimento de seu filho.
Aos 53 anos de idade, Lourdes já fez mais de 40 encontros como este, entre mãe e parteira. Aos 12 anos, acompanhou sua avó a um parto. Ela se lembra que ficou ao lado da grade da cama onde estava a então mãe e seguiu o conselho avó, que lhe disse: "apenas escute o que eu digo. Você não deve olhar porque ainda é muito jovem". Daquela vez, a avó recebeu quatro meninas. "Ela as colocou no quarto uma ao lado da outra e cuidou da mãe com muito carinho", diz Lourdes com admiração. Esse momento marcou sua vida e lhe abriu um caminho: ela entendeu que carregaria o legado de parteira da comunidade.

De olhos escuros, cabelos pretos ondulados e pele acobreada, Lourdes é nativa do povo magüta (tikuna) nascida em Santa Rosa, Peru. Seu nome materno é Purinare Ñairure e é do clã Cascabel. Ela vive na comunidade Umariaçu 2 em Tabatinga, Brasil, na fronteira com a Colômbia e o Peru, para onde se mudou aos 12 anos com seus avós, originalmente de Napo, Peru. Um ano depois, se casou com João Coelho Araújo, com quem tem sete filhos.
"Eu costumava acompanhar minha avó aos partos para aprender. Ela me dizia para ir com ela, para que eu ganhasse experiência. Me ensinou a falar com as mães e com os bebês, tanto no útero quanto ao nascer. Todos os seus conselhos fizeram a parteira que eu sou."
A avó a ensinou a massagear os bebês no útero, a cortar o cordão umbilical do recém-nascido e a compreender o corpo da mãe e suas dores. Ela também a ensinou a produzir óleos naturais e remédios para os cuidados da gravidez e do parto, e como aconselhar a mãe sobre dieta e cuidados para o bebê em seus primeiros meses de vida.
As mãos de Lourdes receberam diversas gerações de indígenas tikuna, cocama, yagua, assim como brancos e mestiços do Brasil, Colômbia e Peru. Para ela, "somos todos filhos da terra", não importa de onde viemos ou que língua falamos. Mas ela reconhece que falar os três idiomas (tikuna, sua língua nativa, português e espanhol) lhe permitiu desempenhar melhor seu papel de parteira comunitária porque a comunicação com as mães é mais próxima.



Em Umariaçu 2, a vida de Lourdes consiste em cuidar de sua família e das mulheres grávidas. Quando ela não tem que fazer visitas às mães, ela fica em casa. De manhã, realiza as tarefas domésticas, como lavar a roupa e preparar a comida, e almoça com o marido, a filha e os netos. À tarde, ela passa tempo com os habitantes de sua comunidade (há cerca de 8.200 indígenas tikunas em toda a aldeia) e desce até a pequena praça localizada às margens de um dos braços do rio Amazonas, a cerca de 20 minutos a pé de sua casa. Lá, ela compra peixe fresco, sável e curimbatá, e frutas tradicionais como sementes de umari e sementes de açaí, abundantes na região, bem como goiaba, ingá, pupunha, farinha de mandioca e banana-da-terra.
No trajeto da sua casa até a praça é possível ver que as casas são feitas de madeira e cimento, e têm serviços básicos, como água e energia. Além disso, a abundância de igrejas é evidência do processo de evangelização. Lourdes comenta que estes lugares de culto aumentaram nos últimos três anos.
Nesta região fronteiriça, os habitantes subsistem da pesca, da agricultura, do comércio informal, do transporte fluvial e de vários ofícios tradicionais como a obstetrícia, a medicina e o artesanato. "O dia-a-dia às vezes é complicado", diz Lourdes, "aqui muitas famílias vivem com o básico, há famílias necessitadas”.

Entre a tradição e os sistemas de saúde
Tradicionalmente, as mulheres indígenas dão à luz em casa e são atendidas por parteiras que as acompanham por vários meses antes do nascimento. Para elas, parir é sagrado e natural, e simboliza a continuidade do legado dos magüta e o conhecimento do povo.

Lourdes explica que, nos dias que antecedem o nascimento, é tradicional dar às mulheres bebidas quentes com plantas medicinais para preparar o útero e o corpo. Ela também permite que as mães comam e caminhem no dia do parto.
"Nós, parteiras, preparamos o remédio. Também as fazemos sentar em água morna quando é hora do nascimento. Depois, cuidamos para que não tenham hemorragias e infecções em geral".
Esse costume mudou desde que as agências locais de saúde estabeleceram regulamentos que exigem que as mulheres que vivem perto dos centros populacionais dêem à luz em hospitais. Para Lourdes, os cuidados lá são diferentes, e os quartos são um pouco frios e solitários. Nos centros de saúde, diz ela, elas não deixam as mulheres tomarem nada e "falta mais cuidado".
"Eu vejo que durante os partos de brancos, eles te banham em água fria, o que faz o frio subir até a cabeça. O que isso causa é a morte. Não acho isso certo. Além disso, os médicos são homens, não sabem quando uma mulher deve empurrar e não conhecem a dor que uma mulher sente."
Lourdes compara os cuidados prestados pelos brancos com os prestados pelos indígenas e explica que, embora a presença do pai e dos avós durante o parto seja importante para sua cultura, a maioria dos hospitais não o permite.
"Nosso costume é de ter o marido ao nosso lado quando damos à luz em casa, porque ele nos dá força."
Ela também observou como os hospitais não respeitam o momento natural do parto e, em muitos casos, realizam cesáreas desnecessariamente.

"No hospital, os médicos colocam o cotovelo na barriga da mulher antes do tempo para forçar o nascimento. Os médicos às vezes não se preocupam com a higiene e dieta."
A experiência de Lourdes lhe deu a força para melhorar os cuidados com as mulheres e lutar para manter a profissão de parteira tradicional em suas comunidades. Ela também sabe que mudar os padrões de saúde pública é muito difícil, por isso concorda que as duas formas de cuidados devem se unir.

Lourdes disse que, após vários diálogos com autoridades tradicionais e estatais e com os diretores da Unidade de Emergência do Hospital Central de Tabatinga, ela conseguiu melhorar a maneira como as mulheres indígenas são tratadas. Por exemplo, os pais e as parteiras agora são autorizados a entrar.
"Antes, eles não me deixavam entrar na sala de parto, o que me causava muita tristeza e dor. Eles diziam que eu não valia de nada (...) o pai e sua família tinham que estar em casa. Eu lutei para que o hospital também o permitisse."
Ela se orgulha dessa administração que respeita seus costumes. Ela aponta que as mães agora decidem se querem dar à luz em casa ou no hospital, e acrescenta que a sala de parto está bem equipada. Elas até mesmo contam com redes, e não macas como é comum nos hospitais, para colocar a mulher. Além disso, os médicos agora vão às casas para verificar e acompanhar as mães grávidas.
"Em Umariaçu e Tabatinga nós, parteiras, trabalhamos juntos com os médicos, indo de casa em casa. E no hospital também há um médico e uma parteira."
Lourdes sorri aos contar suas conquistas. Ao mesmo tempo, ela olha para o céu e agradece ao seu criador. Ela acredita que, devido à maneira como ela se preocupa e compreende o momento de dar à luz, "ninguém nunca morreu na minha mão. Não importa o que fosse necessário fazer, os bebês sempre nasceram sãos e salvos."
Em 5 de maio de 2020, em comemoração ao Dia Internacional das Parteiras, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) declarou que em tempos de crise e pandemia, quando os sistemas de saúde em muitos países estão sobrecarregados, "parteiras estão demonstrando sua coragem e resiliência ao continuar apoiando mulheres grávidas nas circunstâncias mais difíceis".
Lutando por salários dignos
Sua luta pela obstetrícia tradicional não se detém aos cuidados de mães e filhos. Lourdes também trabalha para o reconhecimento de condições dignas para mulheres e homens praticantes de obstetrícia nas fronteiras dos três países amazônicos: Brasil, Colômbia e Peru. Em suas palavras, a profissão requer "coragem", exigindo muita vezes que ela não durmam. Ela considera honesto e justo que eles tenham um salário.
"Quando me chamam, eu vou, não o faço por dinheiro, para mim é o desejo de atender, de dar amor e de dar o que sei; estou para servir. Mas, acho que deveríamos ganhar um salário. Agora atendemos de graça, a maioria de nós não é paga, é a nossa vontade, é a nossa cultura."
Hoje, Lourdes lidera uma associação comunitária que se dedica à obstetrícia. A organização é composta por 145 pessoas. Em Umariaçu 2, há 12 mulheres e um homem. Os outros estão distribuídos pelos povoados localizados em diferentes rios, sendo o principal deles o Amazonas que chega a Manaus.
"Eles me olhavam como uma líder. A associação está em Manaus. Eu acredito que eles devem receber salário para que possam comprar seu pão e suas necessidades. Essa é a minha luta."
No começo de 2020, como delegada das parteiras do Estado do Amazonas, Lourdes esteve na capital, Manaus, em uma reunião de parteiras em que discutiram a urgência de integrar a obstetrícia nas políticas de saúde pública do governo nacional. Entretanto, ela sabe que a luta será longa, porque durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro, muitas das demandas dos povos indígenas não estão sendo levadas em consideração.
À medida que essa luta avança, Lourdes também lidera campanhas que procuram o reconhecimento do trabalho de parteiras dentro das próprias aldeias (como o "Eu apoio nascimento com parteira. Nasci com parteira”), e realiza encontros entre mulheres e homens das três fronteiras em Tabatinga (do lado brasileiro), em Leticia (do lado colombiano) e em diferentes vilarejos no Peru.
"As reuniões são realizadas com as parteiras das comunidades próximas de cada país. Elas nos contam que seu trabalho não é reconhecido em seus países."
Nas mesas de conversa, Lourdes compartilha seu legado e seu aprendizado. Quando ela recorre as aldeias, ela convida as jovens a seguir seus passos para manter vivo um dos ofícios mais tradicionais das mulheres indígenas.
"Para aqueles que querem aprender, têm que aproveitar agora que eu estou viva. Há meninas que se sentam e querem ouvir, querem aprender."

Aos olhar nos olhos de sua filha, Katia Firmino, e uma de suas netas, Lourdes se enche de esperança de que elas continuarão o legado de parteira para as mulheres tikuna. Katia e sua neta estão aprendendo o conhecimento de parteira.
Nota: Esta história é parte da série intercultural "Ome, Pütchi, Poraû | Mulher, Palavra, Resistência", realizada pelo coletivo jornalístico Agenda Propia.
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