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Macri e o pêndulo latino-americano

A América Latina encontra-se num estado de confusão que se deve à crescente desconexão entre um demos em transformação, com uma diversidade de exigências, e um cratos com pouca porosidade para dar respostas. English. Español

Matías Bianchi
1 Dezembro 2015
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Mauricio Macri, Presidente da Argentina. Flickr. Some rights reserved.

A América Latina tem vindo a mostrar nos últimos anos uma crescente fadiga com a onda de governos progressistas. Não tanto com as suas políticas, mas sim com a sua forma de fazer política. O trunfo de Mauricio Macri parece confirmar a mudança de direção do pêndulo latino-americano. Contudo, não fica claro se estas mudanças serão na política, tal como a sociedade exige, ou tão só nas políticas. O resultado está por ver.

Como aprendemos na escola, os processos de transformação sociopolíticos na América Latina tendem a mover-se em ondas. Assim sucedeu com as revoluções independentistas, as repúblicas conservadoras, os golpes militares, o retorno da democracia, e mais recentemente o movimento na direção de uma nova esquerda inaugurado por Hugo Chaves em 1999. Nos últimos anos, com o débil desempenho eleitoral de Dilma no Brasil, a perda das principais cidades pelo MAS na Bolívia, e as mobilizações sociais na Venezuela e no Equador, uma nova onda avistava-se já há algum tempo. Com as eleições presidências na Argentina, o quase certo tropeço de Maduro nas legislativas deste mês e o aviso de Correa de que não vai perseguir a reeleição em 2017, confirmam que o “pêndulo” já mudou de rumo, indo na direção de governos e políticas de corte ideológica mais conservador.

Quero oferecer alguns elementos a este debate a partir de uma sondagem online a 1094 ativistas de todo o hemisfério e grupos focais com partidos políticos e líderes sociais nas Honduras, Equador e Brasil. Ambos trabalhos foram realizados durante o mês de outubro deste ano.

Crise política, corrupção e partidos

O primeiro é a confirmação da sensação de crise que existe em quase todos os países. Surpreende como, ainda no contexto generalizado de estancamento econômico e até nalguns casos de crise económica, o que mais se acentua é a crise política. O principal problema que surge é a corrupção, ainda em países flagelados pelo narcotráfico e pela violência, e onde os níveis de desigualdade económica estão entre os mais altos do mundo. E, quando se indaga a que se deve, a primeira causa a ser apontada é a crise de representação. 

Nos grupos focais, quando se lhes preguntou sobre a política do seu país e o desempenho da democracia, as respostas mais suaves foram ”nefasto”, “este é um modelo acabado”, “a democracia não dá respostas”. Não surpreende que no centro da tempestade se encontrem os partidos políticos, aos que se lhes atribui grande parte do problema. As protestas massivas por todo o continente, e uma muito baixa legitimidade dos presidentes, tanto nos países governados pela esquerda como nos governados pela direita, são sintomas deste fenômeno. “Como não há ninguém preso, vamos para a rua”, dizia um hondurenho. Até aqui não há surpresas e confirmasse a “recessão democrática” sobre a qual Larry Diamond nos alerta, e que o establishment intelectual e mediático da região repete constantemente.

Olhares positivos, expectativas insatisfeitas

O segundo ponto, e isto não emerge muitas vezes nos análises sobre o tema, é que ao consultá-los em comparação com o passado, os olhares sobre o desempenho da democracia são mais positivos. Nas sondagens sobre a comparação com o funcionamento da democracia uma década atrás, os participantes matizaram a sua resposta (fifty-fifty), e no caso dos países do Cone Sul, 73% respondeu que a democracia avançou, ainda que alguns tenham assinalado alguns retrocessos.

Há na região uma maior maturidade democrática, mais democracia, e os setores mais conservadores agora disputam os espaços públicos, organizando marchas ou optando por criar partidos políticos (o PRO na Argentina, o partido NOVO no Brasil, o CREO no Equador ou o partido Anticorrupção nas Honduras), em vez de bater nas portas dos quartéis, como o faziam noutras épocas.

Nos grupos focais apreciaram-se de forma mais clara estos avanços: “as mulheres tem outro role na politica”, “deram-se avanços institucionais, como a consulta popular”, “há uma maior inclusão de atores, paridade de género e agendas sociais”.

Figura I: Quão democrático é o seu país comparado com 10 anos atrás?

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Fonte: elaboraçao própria

Contudo, persiste a manifestação de expetativas insatisfeitas e muitas promessas incumpridas por parte dos governos progressistas:

- “Criaram um poder cidadão que está controlado pelo seu partido” (Equador). Na realidade, estamos perante transformações sociopolíticas profundas que a política não foi capaz de ler.

Por um lado, temos 70 milhões de pessoas que conformam una nova classe média, um 33% da população é jovem e nativa democrática, e estamos a experimentar uma tripla revolução tecnológica (internet-telemóveis-redes sociais) que ainda não compreendemos inteiramente. Estes fatores nutrem a emergência de um animal político diferente.

Ao analisar as protestas que proliferam por toda a região, e também os emergentes políticos, apreciasse claramente uma textura e forma de fazer e entender a política de um demos que se contrapõe ao cratos que temos. Nos grupos focais de líderes sociais e nos dos partidos políticos, pôs-se em evidência estes mundos progressivamente dissociados: um olhar participativo da democracia versus um olhar representativo; uma construção em rede versus o grupo de militância; relações de poder horizontais versus jerarquias; experimentação versus procedimento. São mudanças, que apesar de muitas vezes incipientes, tendem a ser profundas.

Figura II: Protestas no México, Guatemala, Brasil e Argentina

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Não tanto políticas, mas sim política

O terceiro ponto ao que me refiro é sobretudo o já trilhado “banho de humildade”. As queixas de Yasunidos, #YaMeCansé, #PasseLivre, las Antorchas são rebeliões contra a concentração de poder, a arbitrariedade, a corrupção, o neo-extrativismo. São acumulações de frustrações com governos que iam mudar as coisas mas que não mudaram.

O coração destas exigências representa a rejeição de uma forma de fazer política. Um ativista capturou o espirito da época: “eu estou de acordo da Lei de Heranças de Correa, mas jamais a apoiarei porque se fez à porta fechada e o fez exatamente agora porque precisa do dinheiro”. Quer dizer, a principal exigência não é com as políticas, mas sim com a política.

Pior ainda, a reação do oficialismo, ou como lhes chama Salvador Schavelzon, os setores “governistas”, que se tem vindo a antagonizar frente a estos reclamos. Escutei também por parte de Marco Aurélio Garcia, genial intelectual do PT, que eram uns “desagradecidos” e vi como o próprio governo atuou com repressão ou organizou marchas paralelas.

Os Yasunidos foram acusados de ser inimigos da pátria e também subestimámos aqueles que se queixam das cadeias nacionais e das arbitrariedade no reparto dos recursos do Estado. A mensagem leu-se incorretamente, e o banho de humildade não é para dirigentes específicos, mas sim para as práticas do poder. Hoje, os cidadãos entendem matizes, articulam agendas complexas e plurais, e querem participar, mais que votar cada dois anos passando um cheque em branco.

Confusão crescente

O último ponto, mas talvez o mais importante, refere-se ao que está por vir. Estamos num estado de confusão que se deve à crescente desconexão entre um demos em transformação com uma diversidade de exigências e um cratos com pouca porosidade para dar respostas. É nesta confusão que os interesses concentrados e o establishment mediático conseguem impor a sua agenda.

O relato alternativo que se propõe a estes “populismos, como é hábito estigmatizá-los, é a “república”. Uma fanática de Von Hayek como Gloria Álvarez circula pela região como uma estrela de rock. Muitos pensam e votam nesta direção com a melhor das intenções, pensando na necessidade de alternância, de desconcentrar o poder e de estabelecer contrapesos institucionais.

Contudo, as sondagens que levei a cabo e os grupos focais (aclaro que na maioria são opositores) alertam que, frente à crise política, os que ganham ao final são os poderes fáticos. Como disse um brasileiro “mostraram-nos uma ficção do que é um movimento de massas, a verdade é que há outros interesses por detrás”. Ao consultá-los sobre os obstáculos da democracia, surgiram espontaneamente as menções aos grupos concentrados, aos bancos e às elites, como aos atores com capacidade de incidir na toma de decisões.

Quer dizer, frente a uma política debilitada e desprestigiada, em grande medida por falhos próprios, emergem atores políticos que procuram politicas diferentes, com um discurso de mudança de política. Quando olhamos para Salvador Nasrallah nas Honduras, Alejandro Maldonado no Guatemala, o banqueiro Guilherme Lasso no Equador, Aécio Neves no Brasil e Mauricio Macri na Argentina: representam uma mudança de política ou de políticas?

Tudo indica que não falta muito para que o averiguemos.

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