E jovens negros detidos por pequeno delitos sempre correm o risco de se perderem para sempre, transformados tanto pela violência a que são submetidos quanto pela exposição às redes do crime organizado que operam dentro das prisões brasileiras.
A ativista de direitos humanos do Rio Monica Cunha viu isso em primeira mão com seu filho Rafael. Preso aos 15 anos, ele passou cinco anos em uma instituição correcional para menores. Ele nunca mais foi o mesmo. “Eu vi a mudança do Rafael, eu vi como ele entrou para o sistema e quem ele se tornou”, lembra. “ No dia 5 de dezembro de 2006, quando eles botaram o corpo do Rafael no chão com tiro de fuzil, aquele Rafael já não era o Rafael, ele era o Zé, porque ele se transformou nesses cinco anos dentro desse sistema."
Depois, Cunha fundou o Movimento Moleque, uma ONG que ajuda mães de vítimas de violência estatal a se organizarem. Ela também as incentiva a não deixar que as pessoas chamem seus filhos mortos de criminosos. “Não passei cheque em branco para ninguém falar sobre o Rafael”, diz. “Quem tem que falar sobre o Rafael sou eu. Eu que pari, eu sei o que foi criar, eu sei o que foi amamentar, eu que vi quando ele começou a se transformar, então ninguém tem que falar pelo meu filho. É isso que eu digo a essas mulheres: Não deixe ninguém dizer que seu filho é bandido, porque ele não é, ele nunca foi. Ele pode ser varejista, porque o que a gente aqui dentro é uma porrada de varejista, mas bandido nenhum.”
Após a operação no Jacarézinho, Bolsonaro foi ao Twitter para difamar os familiares enlutados e parabenizar a polícia por matar “traficantes que roubam, matam e destroem famílias”. No momento de sua declaração, um inquérito policial sobre o real envolvimento dos homens mortos com atividades criminosas ainda não havia começado. O presidente também foi fotografado com um cartaz que trazia as palavras “CPF cancelado”, gíria para pessoas mortas em operação policial.
O número de mães enlutadas e familiares de vítimas de violência estatal continua a crescer. Em maio, um ano após a operação policial no Jacarézinho, outra operação policial deixou 23 mortos na Vila Cruzeiro, favela da zona norte do Rio.
Nenhuma ação, nenhuma investigação
Enquanto isso, as mães enlutadas do Jacarézinho continuam assombradas pela inação das autoridades. O Ministério Público (MP) arquivou inquéritos sobre 24 das mortes, acusando policiais de homicídio e de adulterar provas em apenas três dos assassinatos. O caso de Matheus, filho de Santos, é um dos que foram arquivados. Ela diz que ele foi morto sentado, desarmado, em uma cadeira de plástico enquanto sofria um ataque epiléptico. “Não tinha drogas com ele e o mataram mesmo assim”, afirma.
Olliveira, do Fogo Cruzado, diz que o Ministério Público deve responsabilizar a polícia. “Eles têm a responsabilidade de fiscalizar a atuação das polícias. A omissão do Ministério Público significa a manutenção do status quo de uma polícia que mata e morre muito - e no caso, mais mata do que morre.”, argumenta.
De fato, acrescentou, o GAESP, uma unidade do MP destinada a supervisionar as ações policiais havia sido esvaziada de funcionários e recursos, resultando em um acúmulo de casos pendentes de investigação.
O ataque ao Jacarézinho foi um ponto fora da curva, de certa maneira. O caso atraiu atenção nacional e internacional e até levou a uma investigação. Muitas vítimas de violência armada nunca têm suas mortes investigadas. Pior, seus corpos nunca são encontrados. Esse fardo é então transferido para os familiares das vítimas, geralmente mulheres, segundo Adriano de Araújo, sociólogo e coordenador do Fórum Grita Baixada, movimento social que luta por direitos humanos, segurança pública e justiça na Baixada Fluminense.
“São normalmente as mulheres que se envolvem no processo de busca de paradeiro, são elas que vão aos hospitais, IMLs, colocam cartazes nas ruas, fazem rodas com os amigos pra tentar encontrar, são elas que vão atrás da boca de fumo, no tráfico, na milícia", diz. “A violência é duplicada, porque além de não saber onde está o neto, filho, irmão, elas ainda escutam que são omissas, que foram negligentes, que elas não são boas mães, que elas não foram boas esposas, que elas deixaram seus filhos abandonados.”
A culpa e a vergonha contribuem para o sofrimento das mulheres. Muitas delas já sofrem de problemas de saúde anteriores por falta de assistência médica. “Elas param de se cuidar, param de ir ao médico, esquecem de tomar os remédios porque elas ficam emocionalmente envolvidas com aquilo”, diz Araújo.
Elas também sofrem o encargo financeiro adicional de perder uma fonte de renda, o que faz toda a diferença para famílias em que a mulher já é a principal provedora.
Sem direito à memória
Um ano depois da operação do Jacarézinho, a ferida continua aberta. Toda vez que há tentativa de cura, a ferida se abre novamente. Em 11 de maio de 2022, menos de uma semana após o primeiro aniversário do massacre, um simples memorial erguido por parentes das vítimas e outros moradores da favela foi destruído pela polícia. Em uma cena carregada de simbolismo, a pequena placa memorial com os nomes de todas as vítimas foi derrubada por um Caveirão. “Nenhuma morte deve ser esquecida; nenhuma chacina deve ser normalizada”, dizia a placa.
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