
Conheça as mulheres latino-americanas por trás do dia mundial pelo aborto seguro
Em novembro de 1990, ativistas se reuniram na Argentina para lançar novas campanhas – e compartilhar novos conhecimentos


Há três décadas, milhares de feministas se reuniram em uma pequena cidade litorânea da Argentina e lançaram o que mais tarde se tornaria o Dia Global de Ação pelo Acesso ao Aborto Legal e Seguro, que é comemorado em 28 de setembro.
Lá também aprenderam, de ativistas brasileiras, sobre o misoprostol – medicamento usado no tratamento de úlceras gástricas, que também era eficaz e seguro para interromper a gravidez (e que costuma ser administrado em combinação com o mifepristone).
“Foi uma coisa incrível”, destaca a cirurgiã chilena Marisa Matamala, hoje com 81 anos, sobre esse achado que se espalhou entre as mulheres de boca em boca – antes que esses medicamentos fossem usados em diferentes partes do mundo em abortos farmacológicos (não cirúrgicos).
“Foi catártico. Houve consenso. Havia muitas lideranças latino-americanas, mulheres de várias partes. Encheu-nos de energia”, acrescenta Matamala sobre o encontro em San Bernardo, a 340 km ao sul da capital argentina.
Matamala era uma das muitas mulheres presentes no evento – o V Encontro Feminista da América Latina e do Caribe (EFLAC), realizado em novembro de 1990 – que falou com o openDemocracy sobre sua importância e seu legado.
Decidimos que não toleraríamos o sacrifício contínuo da vida das mulheres
Mais de 3 mil pessoas participaram da cúpula, que incluiu um workshop sobre aborto com centenas de feministas da Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, El Salvador, Guatemala, México, Nicarágua, Paraguai, Peru e Uruguai. Havia também algumas representantes de fora da região, incluindo Canadá, Holanda e Estados Unidos.
“San Bernardo foi uma oportunidade para analisar como o aborto clandestino afeta a situação das mulheres e refletir sobre a maternidade indesejada como outra forma de escravidão”, diz Elvira Lutz, parteira uruguaia, hoje com 85 anos.
Na época, Lutz explica, as mulheres na América Latina tinham pouco ou nenhum acesso a anticoncepcionais seguros ou qualquer forma de educação sexual, e o aborto não era discutido abertamente. “Decidimos que não toleraríamos o sacrifício contínuo da vida das mulheres.”

"A América Latina", lembra a médica uruguaia Cristina Grela, de 77 anos, que fundou em 1987 o escritório regional das Católicas pelo Direito de Decidir em Montevidéu, sofria com um alto "número de mortes por abortos clandestinos". Eram necessárias medidas urgentes para conter o fenômeno.
Por isso, o grupo de Grela junto com a Comissão pelo Direito ao Aborto, criada em 1988 na Argentina e liderada pela já falecida advogada Dora Coledesky, propôs ao EFLAC um workshop sobre aborto, que estabeleceu o dia 28 de setembro como dia da luta por esse direito.
Inspiração do Brasil
A ginecologista argentina Alicia Cacopardo, hoje com 85 anos, lembra que as brasileiras propuseram o 28 de setembro como o dia para reivindicar o direito ao aborto por motivos simbólicos.
Em 28 de setembro de 1871, o Brasil adotou a Lei do Ventre Livre, que concedia liberdade às pessoas nascidas de mulheres escravas. “Para nós, liberdade do ventre é poder fazer um aborto gratuito”, diz Grela.
Várias feministas que participaram do workshop de San Bernardo se lembram de ter ouvido atentamente suas colegas do Brasil sobre o potencial do misoprostol para proporcionar abortos seguros.
No Brasil, farmacêuticos e mulheres descobriram, na década de 1980, que um efeito colateral desse medicamento, comercializado como Cytotec, eram as contrações uterinas. Esse conhecimento se espalhou e o misoprostol tornou-se um insumo essencial para as redes solidárias de aborto.
“Foi muito importante conhecermos o misoprostol. Não sabíamos nada sobre ele”, diz a epidemiologista argentina Mabel Bianco, hoje com 80 anos, mas que ainda trabalha pelos direitos sexuais e reprodutivos na Fundação para o Estudo e a Pesquisa da Mulher.
Em 2005, a Organização Mundial da Saúde o incluiu em sua lista de medicamentos essenciais. Mas o acesso ao misoprostol continua difícil para muitas mulheres na América Latina e em outros lugares, apesar do número crescente de países que flexibilizaram suas leis sobre o aborto.
Lenços verdes
Em 2012, o Uruguai foi o primeiro país da América do Sul a descriminalizar o aborto nas primeiras 12 semanas de gestação. Em 2017, o Chile pôs fim à proibição total e autorizou o aborto em casos de estupro, perigo de vida para a mulher e inviabilidade fetal.
A legalização do aborto na Argentina, aprovada no final de 2020, impulsionou o ativismo em outros países. Os lenços verdes – símbolo do movimento argentino pela legalização – cruzaram fronteiras.
Eles estavam presentes no Equador no início deste ano, quando o tribunal constitucional legalizou o aborto em casos de estupro, após uma longa batalha de grupos feministas.
Mais recentemente, também foram vistos no México, quando Veracruz e Hidalgo se tornaram o terceiro e o quarto estados do país a remover as restrições ao aborto. Em 7 de setembro, a Suprema Corte de Justiça descriminalizou o aborto, declarando inconstitucional a prisão de mulheres por obter o procedimento.

Matamala afirma que as feministas chilenas voltaram a usar seus lenços verdes no último 28 de setembro, em uma manifestação em frente à sede da Convenção Constitucional para pressionar pela inclusão do direito ao aborto na nova constituição.
Grela, do Uruguai, está menos otimista com o futuro. “A Igreja Católica trava tudo. As chilenas lutam há anos. No Peru, o debate não muda. Na Colômbia [...] não se está considerando uma reforma legal”, diz.
Em 1990, uma das participantes mais jovens no workshop de San Bernardo era a salvadorenha Morena Herrera, ex-guerrilheira da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional de 30 anos.
“Vi um papelzinho que dizia ‘debate sobre aborto’ e fui [...] Naquela época, não tinha ideia da grande importância que esse encontro iria ter. Eu me apaixonei pelo feminismo lá”, diz Herrera.
Desde 2009, Herrera lidera o Grupo de Cidadãos pela Descriminalização do Aborto, que luta para libertar dezenas de mulheres presas em seu país por interromper a gravidez.
Três décadas depois desse encontro, muitos países ainda devem às mulheres o pleno direito de decidir sobre seus corpos. Essas feministas não se contentarão com menos.
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